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Foto do escritorGuilherme Cândido

Zöe Kravitz segue os passos de Jordan Peele em 'Pisque Duas Vezes'


Modelo, cantora e atriz, Zöe Kravitz encarou todas as provações possíveis de quem deseja ter sucesso no showbiz se desvencilhando dos parentescos famosos. Afinal de contas, antes de se destacar pelos predicados artísticos, Zöe era conhecida como a filha única do roqueiro Lenny Kravitz e penou para ser reconhecida por seu talento. O momento finalmente chegou, pois a californiana de 36 anos, que já vinha empilhando sucessos como atriz (seu ápice talvez tenha sido como a Mulher-Gato do Batman de 2022), agora lança Pisque Duas Vezes, seu primeiro longa-metragem como realizadora.


A história, também assinada por Kravitz (em parceria com E.T. Feigenbaum, em seu primeiro trabalho no Cinema), gira em torno de Frida (Naomie Ackie, protagonista de I Wanna Dance With Somebody, cinebiografia de Whitney Houston), garçonete que sonha conquistar seu espaço no mundo ao invés de sempre ouvir para “ficar invisível”. Um dia, porém, durante um evento de gala para homenagear o bilionário da tecnologia Slater King (Channing Tatum, o Gambit de Deadpool & Wolverine), ela e a amiga Jess (Alia Shawkat, a Maeby da série Arrested Development) são convidadas pelo próprio para uma festança em sua ilha particular. Espécie de Ibiza para convidados exclusivíssimos, o lugar além de paradisíaco serve como um detox digital para quem tiver o privilégio de visitá-lo, pois é preciso entregar o celular no momento da entrada (um péssimo sinal em qualquer filme de terror).

Frida e Jess, meras mortais da classe trabalhadora norte-americana, mal conseguem acreditar nas férias que estão curtindo, o que inicialmente provoca reações distintas dos demais convidados, todos interpretados por figuras conhecidas do grande público como Haley Joel Osment (o eterno garotinho da obra-prima O Sexto Sentido), o astro noventista Christian Slater (de Amor à Queima Roupa e Robin Hood – O Príncipe dos Ladrões), a veterana Geena Davis (de Os Fantasmas Se Divertem e Thelma & Louise) e o subestimado Simon Rex (de Todo Mundo em Pânico e Red Rocket). O que antes corria às mil maravilhas, começa a inspirar desconfiança à medida que coisas estranhas passam a acontecer, como uma mancha de vinho que some em instantes, terra sob as unhas e, claro, um desaparecimento.

Seguindo a tendência recente posicionar os ricos como figuras excêntricas e entregues ao hedonismo absoluto, Pisque Duas Vezes faz eco a produções como O Menu,  A Ilha da Fantasia e, até certo ponto, Pobres Criaturas, com quem, inclusive, compartilha alguns traços feministas. Escrito em meados de 2017, Kravitz reverbera o auge do movimento #MeToo, o que explica as semelhanças do King de Channing Tatum com Jeffrey Epstein, magnata condenado em 2008 por comandar uma rede de exploração sexual de menores de idade. Epstein se declarou culpado pelo abuso de uma menina de 14 anos e chegou a ser acusado por crimes sexuais envolvendo 36 jovens, quase sempre em sua ilha particular no Caribe.

Acostumado a interpretar galãs e personagens cômicos, Channing Tatum tem a oportunidade de encarnar um tipo mais sombrio e traz uma bem-vinda aura de bom moço a Slater, que se beneficia de uma primeira impressão amigável. Além disso, a postura atenciosa do bilionário, sempre preocupado com o bem-estar de seus convidados, especialmente Frida, desperta uma dúvida essencial ao público: seria ele um lobo em pele de cordeiro? Pois Frida (um nome nada sutil para as pretensões da narrativa), apesar de não esconder suas ambições, está na tal ilha apenas para curtir. Naomi Ackie mostra versatilidade ao ilustrar as camadas da moça e traz certa semelhança com a ótima Sophie Wilde, estrela de Fale Comigo.

É interessante perceber como Ackie é capaz de evocar inocência e malícia com a mesma facilidade (num mesmo sorriso). O restante do elenco, no entanto, é mal aproveitado, com os coadjuvantes desempenhando funções-chave dentro da história (Geena Davis protagoniza um momento catártico, Simon Rex tem uma piada recorrente e Haley Joel Osment só é desperdiçado mesmo). Adria Arjona, que brilhou intensamente no estupendo Assassino Por Acaso, é quem aproveita melhor o pouco tempo de tela, percorrendo uma jornada dramática digna das grandes final girls do Cinema.

Por falar em final girl, Pisque Duas Vezes até ensaia um clímax explosivo, incluindo alguns signos do Terror, mas Zöe Kravitz ainda precisa evoluir nesse aspecto, substituindo a atmosfera pela violência. A produção, aliás, possui uma transição nada sutil entre o suspense psicológico e o horror. Dando vazão à premissa high concept do projeto, Kravitz se sai bem ao espalhar pistas durante o desenvolvimento. Pegar essas peças e formar o quebra-cabeça faz parte do divertimento proposto pela roteirista. Como por exemplo o fato de a mansão de Slater King ser vermelha e guardar as respostas buscadas pela protagonista, conectando-se diretamente ao momento em que alguém é chamado de “coelho vermelho”. Na história, a verdade é vermelha, afinal.  As cores, sempre fortes, dão um tom quase artificial aos cenários da história. Seja o líquido verde apresentado na metade final ou o isqueiro amarelo (complementado por um casaco da mesma tonalidade), nada é construído a esmo.

Se Zöe Kravitz vai bem na construção desse universo e no estabelecimento de suas regras, o segundo ato se arrasta enquanto a inspiração em Corra!, de Jordan Peele, fica evidente, mas sem o mesmo impacto da obra vencedora do Oscar de Melhor Roteiro Original. Falta contundência à direção Kravitz que permite longos segmentos (alguns repetitivos) sem uma inclinação ao gênero no qual se propõe a articular suas ideias. Por confiar muito em nosso fascínio pelo mistério inicial, há uma negligência em instigar os sentidos do público. Algo ruim se esconde nos meandros da ilha, mas qual o nível de ameaça enfrentado pela heroína? O que está realmente em jogo? Até finalmente tomarmos ciência do que realmente acontece, o ritmo emperra.

De qualquer forma, Pisque Duas Vezes jamais perde de vista a ótima impressão deixada por Zöe Kravitz, cujo olhar apurado, beneficiado pelo design de produção extravagante de Roberto Bonelli (Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades), se encaixa numa trama ambiciosa, bem construída e com camadas suficientes para motivar altas discussões pós-filme.


NOTA 7

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