Visual refinado de "Tinnitus" não esconde deficiências do roteiro
A jovem Marina (Joana de Verona) é uma promissora atleta de salto ornamental. Durante uma competição, porém, ela acaba acometida por um intenso e constante zumbido (cujo termo técnico dá título ao filme), obrigando-a a abandonar sua parceira, Luísa (Indira Nascimento), em plena plataforma. Tal episódio ocasiona uma aposentadoria forçada, mas Marina não consegue viver longe das águas, arrumando emprego como sereia num aquário pouco movimentado de São Paulo. Longe das competições, ela agora se dedica ao relacionamento que mantém com Santos (André Guerreiro), companheiro e médico responsável por um projeto que encontra em Marina a esperança de cura para sua doença.
Fazendo uso do primeiro ato para estabelecer o relacionamento de Marina com as águas, o cineasta Gregorio Graziosi (Obra) lança mão de recursos pouco sutis, mas eficientes, como ao orquestrar o momento em que a protagonista mal percebe que seu apartamento está inundado, ilustrando como a água, de fato, é seu habitat natural. A ideia de utilizar um rádio para escancarar a elipse narrativa e informar ao espectador o tempo que se passou desde o fatídico acidente que marcou a vida de Marina, cujo anacronismo (em tempos de smartphones, quem ousaria ligar um rádio?) pode até soar artificial, mas sua função também é cumprida. O problema é que tais artifícios, no mínimo limitados, são tudo o que Graziosi tem a oferecer e a partir do momento em que fica claro que a narrativa se resumirá a analogias pouco elaboradas e diálogos mecânicos, Tinnitus aos poucos vai se transformando numa experiência absolutamente contrária às intenções de seu diretor.
Retomando o objeto de interesse de seu curta Saltos (a ligação entre o ser humano e a água), o cineasta até consegue construir uma atmosfera que instiga ao gerar curiosidade acerca do que virá a seguir, mas demora (até demais) a esclarecer os rumos de sua intrincada narrativa. Não fica evidente, num primeiro momento, se o filme seguirá uma vertente Lynchiniana ao abordar a decadência psíquica de Marina ou se abraçará o suspense de duplos, como em Persona, obra-prima de Bergman. Na verdade, o surgimento de Teresa (Alli Willow) trazendo um componente carnal que corrobora a tese de um suposto contágio, serve como um aceno a outro mestre, investindo no flerte (embora tímido) com o body horror de Cronenberg.
Mesmo com todas essas cartas na mesa, todavia, o roteiro escrito por Grazinosi em parceria com o novato Andres Vera e o normalmente competente Marco Dutra (As Boas Maneiras, Trabalhar Cansa), simplesmente não dá jogo, confundindo complexidade com presunção e sofisticação com pedantismo. Do alto de seu pedestal, o trio
demonstra um apreço forte pela linguagem esfíngica, mas negligencia o trabalho de construção de suas metáforas. A falta de sutileza vai na contramão do exercício interpretativo proposto pelo projeto, já que ao espectador não restará alternativa senão a mais óbvia (como no sobrenome da protagonista em homenagem à nadadora Maria Lenk).
Essa falta de polidez é refletida de forma cristalina por diálogos tão artificiais que parecem concebidos com o intuito de embaraçar os atores, que quando não estão falando sozinhos sobre o que já estamos vendo (“está tudo alagado!”), são obrigados a proferirem informações dolorosamente expositivas (“sua parceira se machucou, você não”, “você está aposentada há quatro anos”). Pior é quando os roteiristas tentam ser enigmáticos, (“uma mulher tem que saber esconder os seus segredos”), denunciando um desespero patético em soarem poéticos. Também há uma frequência incômoda de clichês, indo de conversas entreouvidas por frestas até o batidíssimo momento em que um personagem chega tarde em casa e é surpreendido por outro sentado à luz do abajur.
A portuguesa Joana de Verona, destaque de Praça Paris (premiado no Festival do Rio em 2017) faz o que pode para transmitir com credibilidade a confusão mental que afeta Marina, mas esbarra num tratamento pouco convidativo por parte do roteiro, que parece enxergá-la apenas pelo prisma de sua doença. Já o Dr. Santos, inicialmente um indivíduo zeloso que parece devotado ao tratamento da esposa, logo é convertido ao arquétipo do cônjuge controlador. E se Teresa é o avatar de perversidade que ratifica as conexões entre Marina, a Água e o Zumbido (sinalizados pelas cenas de sexo com o marido), Indira Nascimento tem dificuldades para fazer Luísa ir além da mágoa que rege seu relacionamento com a protagonista. Aliás, é curioso notar a animosidade que contamina as interações entre as personagens. Assim como há quem destile ódio (sim, alguém diz, literalmente, “eu te odeio”), também há aqueles que carregam as cicatrizes de um ambiente hostil, como a treinadora vivida por Thaia Perez e que ainda protagoniza um bem-vindo e necessário comentário sobre a ditadura brasileira.
Igualmente elogiável é o design de som (assinado por Fábio Baldo, de Antes o Tempo Não Acabava), que exerce um papel tão fundamental na narrativa de Tinnitus, quanto foi em O Som do Silêncio, para mencionar uma obra tematicamente semelhante. O trabalho de Baldo fica ainda mais impressionante quando analisado no contexto de um mercado cinematográfico conhecido pelo desleixo para com o seu departamento. Além de conferir camadas capazes de estenderem o elogio à mixagem de som (note a mudança de perspectiva na cena final ou a importância da torcida ouvida embaixo d’água), a potência sonora é particularmente incomum e colabora para levar o espectador às mesmas sensações experimentadas por Marina, gerando o efeito incômodo pretendido pela produção. Da mesma forma, a fotografia de Rui Poças (As Boas Maneiras) utiliza bem as cores para ilustrar a percepção de Marina, especialmente o azul e o vermelho, que além de marcarem presença no design de produção, provocam a dualidade citada nos parágrafos anteriores, especialmente numa cena-chave entre Marina (banhada de vermelho) e Teresa (coberta de um azul tremulante) sobre a cama.
Sofrendo para extrair propósito da conexão feita com a cultura nipônica (talvez pelos Jogos Olímpicos de Tóquio?), Tinnitus é um filme plasticamente sedutor, mas irremediavelmente impactado pela vaidade de uma equipe criativa entorpecida pela ideia de construir uma obra rica em signos, mas que se revela dramaticamente pobre.
NOTA 4,5
Vou assistir.