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'Um Homem Diferente' questiona nossa percepção acerca do grotesco

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

A neurofibromatose tipo I ou Doença de Von Recklinghausen é uma condição genética raríssima (afeta 1 em 4.650 pessoas) marcada por manifestações cutâneas que podem surgir em qualquer parte do corpo. Durante a infância tende a ser mais branda, fazendo-se presente através de “manchas de café” na pele, surgindo com agressividade na fase adulta, quando aparece na forma de tumores benignos. Em alguns casos, um portador de neurofibromatose tipo I pode ficar completamente desfigurado, como é o caso do ator britânico Adam Pearson, que teve de se submeter a 39 cirurgias para remover novos tumores. Mas como alguém como Pearson consegue sobreviver no cruel ecossistema do showbiz? Essa é uma pergunta que ele mesmo ajuda a responder como membro do elenco deste Um Homem Diferente, que chega aos cinemas brasileiros neste final de semana após breve passagem pela Mostra de Cinema de São Paulo.

O filme narra a história de Edward, um ator que além das dificuldades para encontrar trabalho, tem de suportar uma vida de olhares fixos e expressões aterrorizadas. Mas Pearson só aparece na metade final da projeção, pois o intérprete do protagonista é Sebastian Stan, famoso pelo papel do Soldado Invernal na Marvel e que aqui despe-se da imagem de galã para encarnar uma espécie de avatar do próprio Pearson. Mas o roteiro escrito por Aaron Schimberg, também diretor, não se limita ao cotidiano de Edward, propondo uma discussão sobre nossa concepção do grotesco através da inversão de situações. Em última análise, o que Schimberg quer mostrar é que nossa percepção é condicionada por diversos outros fatores além da estética.

Após um início desajeitado em que espreme a apresentação do protagonista e sua rotina ao lado da obrigação didática de esclarecer sobre a neurofibromatose (exagerando no volume de voiceover), A Different Man, no original, mergulha o espectador num universo frio e depressivo, num espelho da vida de Edward, que até chega perto de mudar com a chegada de Ingrid (Renate Reinsve, de A Pior Pessoa do Mundo), vizinha de quem se aproxima, mas cujo relacionamento jamais se solidifica. Por isso, quando aparece a oportunidade de se submeter a um tratamento experimental, Edward não pensa duas vezes, ignorando os potenciais efeitos colaterais na esperança de uma cura, que acontece, mas não gera o impacto esperado. Se inicialmente o protagonista achava que ter um rosto considerado normal o faria se sentir melhor, usufruindo das benesses imediatas do tratamento bem-sucedido, ele é surpreendido com a chegada de Oswald (Pearson), sujeito que parece lidar bem melhor com a neurofibromatose.

É nesse momento que Schimberg puxa o tapete do espectador ao lançar mão de uma reviravolta que possibilita o mesmo discurso que imaginávamos, mas por um viés extremamente mais complexo. Afinal, Oswald não chega apenas para provar a Edward que tudo não passa de perspectiva, pois é dessa forma que ele praticamente apaga o protagonista, como fica claro quando este perde o papel numa peça para aquele. Dessa forma, o ressentimento natural que eclode em Edward dá à narrativa um véu sombrio com doses fortes de ironia.

Se antes estávamos imersos numa atmosfera de desconforto, o que se segue é um mar de inquietude cuja maré é conduzida pelo compositor italiano Umberto Smerilli com notas que reforçam a tensão, como se esperássemos pelo pior mesmo sem saber exatamente o quê, à medida que as atitudes de Edward vão se revelando cada vez mais agressivas. Já a fotografia granulada de Wyatt Garfield (do indicado ao Oscar Indomável Sonhadora) dá um aspecto cru à imagem cuja força é potencializada.

Força, inclusive, é um adjetivo que deve ser atribuído ao script, que desenvolve com inteligência o argumento acerca da forma como nos vemos e como nos sentimos perante a reação dos outros. Segundo Schimberg, a impressão que geramos no próximo tem muito menos a ver com a aparência, por isso, a presença de Adam Pearson é transcendental. Naturalmente talentoso e carismático, o britânico é a personificação do discurso de Um Homem Diferente, levando-nos a perceber que, a partir do momento em que ele abre a boca, tudo muda. É exatamente por isso que torna-se tão doloroso para Edward ver, por exemplo, o colega de palco receber uma cantada, afinal, não faz muito tempo desde que o protagonista sentia-se rejeitado pela vizinha.

Interpretada por uma Renate Reinsve com um tom de presunção que traz humanidade à suas atitudes, Ingrid é outro elemento a abrir um leque de opções para o roteiro. Talvez por isso, Schimberg acabe se perdendo entre um thriller conspiratório, uma comédia de humor negro e um body horror (com direito a sequências que fazem jus aos maiores clássicos desse nicho), frequentemente tendo seu azimute ajustado graças a Sebastian Stan, cuja performance (premiada  no Festival de Berlim) absorve toda a ironia exalada pelo texto.

Mesmo que Stan jamais alcance notas altas o bastante para considerar uma possibilidade de indicação ao Oscar, ele é hábil o suficiente para transmitir a incredulidade que toma conta de Edward. Ele compensa com entrega e intensidade a falta de nuance, talvez fruto de suas habilidades ainda emergentes como ator. Não faz muito tempo desde que começou uma jornada particular para se aproximar cada vez mais dos filmes independentes, onde pode abraçar papeis mais desafiadores do que os arquétipos oferecidos pela Marvel, afinal.

Intrigante do início ao fim, Um Homem Diferente merece elogios por entregar o mesmo tipo de mensagem tão comum em Hollywood numa embalagem complexa o bastante para estimular o espectador. E dado o declínio criativo que acomete a Indústria, trata-se de uma proeza e tanto.


NOTA 7,5

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