Tão violento quanto divertido "O Esquadrão Suicida" exala anarquia
Desde que chegou às telonas (e telinhas) no último final de semana, muito tem se falado sobre este Esquadrão Suicida ser o sonho molhado de David Ayer, diretor responsável pela bagunçada (e lucrativa) versão anterior, o que não passa de pura especulação. Mas é seguro afirmar que o novo Esquadrão Suicida oferece toda a diversão e todo o descompromisso prometidos por seu antecessor. Como se não bastasse, o cineasta James Gunn mostra claramente estar no controle do que se vê na tela, ao contrário do que alega seu colega David Ayer, supostamente uma vítima da intromissão dos executivos da Warner.
Verdade seja dita, após sua polêmica demissão da Disney - onde comandou os dois ótimos Guardiões da Galáxia - Gunn recebeu carta branca para trabalhar com o que quisesse dentro do vasto portfólio de personagens da DC Comics, arquirrival da Marvel. Assim, Gunn surge absolutamente descontrolado (para o bem e para o mal) a frente do que certamente figurará como um dos mais peculiares e profanamente divertidos filmes de super-heróis desde Kick Ass: Quebrando Tudo em 2010.
Essa falta de amarras, como tudo na vida, tem seus prós e contras. Entre os pontos positivos, podemos destacar a óbvia liberdade criativa e a possibilidade de dar vazão a uma mente que já provou ser fértil em ocasiões anteriores. Por outro lado, a ausência de filtro lhe faz cruzar os limites da autoindulgência, permitindo a execução de ideias ora controversas, ora puramente descartáveis (isso quando não desafiam o bom gosto), como o excesso de diálogos e as piadas desbocadas, personificadas numa conversa entre o Pacificador (John Cena) e o Sanguinário (Idris Elba) sobre uma praia enquanto adentram uma floresta e principalmente ao excesso de violência gráfica, que parece executada apenas porque a classificação indicativa permite. O mesmo vale para a nudez, que surge absolutamente gratuita nessa mesma sequência supracitada.
Isto posto, é preciso ressaltar a competência de Gunn em conduzir histórias irreverentes sobre personagens díspares. A dinâmica estabelecida em seu roteiro funciona quase tão bem quanto em suas incursões na Marvel. Outro mérito do cineasta é abrir a história com o pé na porta, fazendo jus (em poucos minutos) ao título da obra, acabando com uma velha piada que envolveu a versão anterior (ora, se a maioria do esquadrão sobrevive, como pode ser suicida?). O choque promovido pelo prólogo serve também para mostrar ao público que ninguém está seguro e se apegar aos personagens pode ser arriscado.
Com isso, Gunn transforma O Esquadrão Suicida numa aventura imprevisível e aparentemente sem regras, negando um porto seguro ao espectador, que permanece inseguro navegando na completa escuridão sob o comando de um capitão que faz questão de borrar as linhas que separam protagonistas de coadjuvantes. Se estamos acompanhando uma sequência centrada no personagem X, isso não significa que ele não possa ser destroçado a qualquer momento pelo rotor de um helicóptero em queda, por exemplo. E acredite, ele não apenas "pode": ele "irá".
Lembra quando escrevi que a produção "aparentemente" não tem regras? A anarquia funciona até a página dois, quando entra o estúdio para dizer que personagens lucrativos não devem ser eliminados. É o que explica, por exemplo, o fato de a Arlequina estar tão deslocada, afinal, Gunn não sabe exatamente o que fazer com ela, que acaba praticamente protagonizando sua própria história independente, apenas minimamente conectada à trama principal.
E se isso não impede Margot Robbie de nos brindar com mais uma performance carismática e adoravelmente tresloucada, não deixa de ser decepcionante notar as semelhanças entre sua grande sequência de ação (ambientada no interior de uma mansão) e aquelas que protagonizou em Aves de Rapina, demonstrando um raro misto de preguiça e falta de criatividade por parte de James Gunn.
Já o restante do elenco aparece bem entrosado sob a proposta do cineasta, destacando-se o sempre excelente Idris Elba, que dribla as similaridades entre seu Sanguinário e o Pistoleiro de Will Smith e imprime personalidade ao criar seu próprio anti-herói. Em contrapartida, por melhor que esteja o elenco, o maior atrativo de seus personagens reside em seus singulares superpoderes e a forma como lidam com estes, pois Gunn é hábil ao divertir o público enquanto os desenvolve.
Se o poder de Bolinha é, literalmente, atirar dilacerantes bolinhas coloridas em seus inimigos, o roteiro deixa claro que isso só foi possível graças a experimentos conduzidos por sua própria mãe (e a sacada de Gunn ao abordar a manifestação de seus problemas com ela é brilhante e hilária na mesma medida), ao passo que a capacidade de a Caça-Ratos 2 liderar seu próprio exército de roedores está intrinsicamente ligada à sua relação com o pai, vítima das drogas.
Como foi possível notar, Gunn também aproveita a classificação indicativa para abordar temas que normalmente seriam encarados como o pesadelo de qualquer filme de super-herói mais convencional. Indo além da dependência química, o realizador toma uma atitude corajosa ao cutucar a política externa estadunidense: ao utilizar os ícones mais emblemáticos da cultura popular norte-americana (os super-heróis) contra o próprio país, Gunn não apenas joga luz sobre a forma como seu país atua em solo estrangeiro (principalmente latino), posicionando-se no espectro geopolítico atual, como vai ao encontro da recente onda de desconstrução do mito super heroico, ecoado por obras como Watchmen e, mais recentemente, a série The Boys.
Tecnicamente, por outro lado, O Esquadrão Suicida apresenta o mesmo esmero que seus irmãos de gênero, a começar pelo bom design de produção de Beth Mickle (do inesquecível Drive) que faz dos coloridos figurinos de Judianna Makovsky (colaboradora da Marvel) e das locações tropicais o contraponto perfeito para a paleta fria e acinzentada da fotografia de Henry Braham (A Lenda de Tarzan), concebendo um universo cru e realista que só ganha vida quando seus personagens enchem a tela.
Além disso, as frequentes intervenções gráficas que formam legendas, ora através de componentes do quadro (como destroços de uma casa ou folhas no chão), ora por meio de puros efeitos digitais (os créditos iniciais são escritos como se fossem feitos de sangue), dão personalidade enquanto evocam o tom cartunesco da obra, que não economiza na violência gráfica. O banho de sangue inclui personagens sendo partidos ao meio, desmembrados, decapitados e, como não poderia deixar de ser, fuzilados; tudo orquestrado de modo farsesco, bebendo da fonte do humor negro, mas sem perder de vista o realismo chocante, o que pode afastar parte do seu público.
Os problemas começam quando o excesso de sangue passa a ser fácil de notar, como se James Gunn estivesse deslumbrado com a oportunidade de não se preocupar em adequar seu filme ao público adolescente, retomando a faceta grotesca que costumava exibir em seus primeiros filmes, como no atroz Para Maiores ou em Super, onde seus excessos prejudicaram o potencial da história que aqui, por sinal, apesar de simplista (para não dizer se tratar de um fiapo) equilibra-se relativamente bem na tênue linha que o separa do famigerado entretenimento oco.
E se a trilha sonora incidental de John Murphy (Kick Ass - Quebrando Tudo), com acordes de guitarra que trazem uma apropriada sonoridade punk à trama briga o tempo todo com as famosas e ecléticas escolhas musicais de James Gunn (tão certeiras em Guardiões da Galáxia), que vão de Johnny Cash a Karol Conká, o mesmo não deve ser dito a respeito dos ótimos efeitos visuais, cujo realismo fantástico se integra organicamente aos absurdos do roteiro (e se você acha que já viu de tudo, espere para conferir o terceiro ato).
Diametralmente oposto à sua versão anterior, James Gunn nos lembra que, depois de uma leva de filmes de super-heróis sombrios e dramáticos, ainda é possível se divertir a valer sem se levar tão a sério. Excessos à parte, O Esquadrão Suicida nos permite rir de adultos poderosos vestindo colants coloridos e ainda nos oferece sua própria visão daqueles que dominam a discussão política mundial. Em nosso momento atual, fica difícil de resistir...
Obs: Há cenas adicionais após os créditos finais
NOTA 7,5
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