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Foto do escritorGuilherme Cândido

Suspense brasileiro "Uma Família Feliz" alfineta hipocrisia da Classe Alta

Pode até não ser um consenso, mas os projetos audiovisuais brasileiros, bem como seus autores, ainda são subvalorizados, pois na sociedade tupiniquim ainda prevalece uma crença de que aquilo que é produzido no estrangeiro tende a possuir qualidade superior, algo que vem sendo observado há décadas, tanto que Nelson Rodrigues, lá nos anos 50, cunhou a expressão “complexo de vira-lata” para rotular esse preconceito às nossas criações e aos nossos criadores:


"Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima".

Esse comportamento, normalmente associado a argumentos apedeutos e até preconceituosos talvez ajude a entender o fato de o paulista José Eduardo Belmonte não receber o reconhecimento que merece.

Natural de São Bernardo do Campo, o cineasta se aproxima dos trinta anos de carreira tendo participado de mais de três dezenas de produções, entre videoclipes, curtas e longas-metragens. No Cinema, inclusive, além de ter revelado uma faceta prolífica, também vem se mostrando um realizador inquieto, explorando novos gêneros a cada trabalho. No campo do Drama, lançou em 2008 o ótimo Se Nada Mais Der Certo e três anos depois tateou desajeitadamente pela comédia com Billi Pig, sendo ajudado por Selton Mello. No entanto, foi na Ação que Belmonte obteve maior êxito, através do filme de câmara Alemão (2012). O longa estrelado por Caio Blat e Cauã Reymond, aliás, provou que o diretor tem boa mão para o suspense, habilidade que seria extremamente valiosa alguns anos depois, mais precisamente em 2022, quando emplacou três grandes estreias nas telonas.

Primeiro, investiu em Alemão 2, que não teve o mesmo sucesso do antecessor; depois acertou em cheio com As Verdades, narrativa policial inspirada em Rashomon (1950), clássico de Kurosawa e que eclipsou O Pastor e o Guerrilheiro, outra boa incursão e que teve sua première no Festival do Rio. Após três acertos consecutivos, Belmonte resolveu voltar a apostar, desafiando-se dessa vez ao explorar o Suspense. Nessa nova empreitada, aliou-se a Raphael Montes, romancista que há muito tempo deixou de ser uma promessa na Literatura para abrir novas frentes criativas. Com diversos best-sellers no currículo, Montes é outro que deixou de lado a zona de conforto e a segurança de seus fãs para encarar novos desafios, como participações na Rede Globo (colaborou na novela A Regra do Jogo e na fracassada série Supermax) e no streaming (é dele a bem-sucedida série Bom Dia, Verônica, disponível na Netflix). Uma Família Feliz, exibido no 51º Festival de Gramado, é o resultado desse casamento criativo.

A trama, ironicamente, contraria o título ao mostrar um lar onde a felicidade não ultrapassa os limites da aparência. Pais de gêmeas angelicais, bem-sucedidos em seus empregos, cercados por amigos e donos de uma casa confortável num bairro nobre, Eva (Grazi Massafera) e Vicente (Reynaldo Gianecchini) veem seu casamento perfeito posto à prova logo após o nascimento de Lucas, o terceiro filho. Acontece que tanto ele, quanto as meninas, passam a apresentar hematomas de origem misteriosa. Eva, sofrendo de depressão pós-parto, se torna a principal suspeita e vê sua vida desmoronar com a reação hostil das pessoas à sua volta, incluindo do próprio marido.

Como Suspense, Uma Família Feliz se desenvolve sem sobressaltos, embora se contente em cumprir apenas os requisitos básicos do gênero, uma opção que talvez frustre seus entusiastas. Já os marinheiros de primeira viagem encontrarão em Raphael Montes, um roteirista que não apenas conhece os mecanismos para estruturar um bom suspense, como sabe colocá-los em prática, dando oportunidades, inclusive, para o diretor José Eduardo Belmonte explorar suas habilidades em provocar tensão e até alguns sustos, beneficiando-se de signos como ambientes escuros, bonecas realistas, invasões domiciliares e uma protagonista cujo ponto de vista talvez não seja tão confiável como o espectador foi levado a acreditar.

Caso mergulhasse de cabeça nas convenções e confiasse em sua expertise, a produção tinha todos os atributos necessários para construir um legítimo e competente filme de gênero, superando um desafio que, por si só, já seria admirável, dada a dificuldade que os realizadores enfrentam para lançarem esse tipo de obra no Brasil. O problema é que Montes estufa o texto tentando abraçar temáticas que além de desvirtuarem a narrativa, jamais ganham espaço suficiente para serem desenvolvidas a contento e ainda são prejudicadas, por tabela, ao serem comparadas a outras obras superiores quando algumas semelhanças são constatadas.

Há uma abordagem, por exemplo, sobre a cultura do cancelamento, um assunto cujo auge de popularidade já passou e que foi tema tanto de filmes estrangeiros (como o dinamarquês A Caça) quanto de nacionais (o brasileiro Aos Teus Olhos). Para piorar, Uma Família Feliz ainda inclui uma sequência com Eva invadindo uma festa assim que descobre que seu carro foi vandalizado, soando mais como uma derivação desgastada do que um momento catártico para a personagem. E não fica só nisso, pois o texto ainda busca debater sobre o papel da Mulher na Sociedade, com Vicente sugerindo a Eva que abandone a carreira para se dedicar exclusivamente aos filhos, enquanto a deixa sozinha para jantar com amigos. Infelizmente, ficamos apenas com esses comentários machistas, pois o longa jamais torna a questionar a visão retrógrada do personagem. Também somos bombardeados por passagens que sublinham as intenções em levantar a bandeira do trauma de infância, mas que não passam de repetições.

E esse é o grande problema do texto, que dilui o impacto de suas reflexões ao acumular questionamentos sem conseguir desenvolvê-los. Na analogia “melhor um pássaro na mão do que dois voando”, o que vemos são três aves majestosas escapando das garras habilidosas de Raphael Montes. Nesse aspecto, senti falta principalmente de um acabamento melhor da imagem pintada sobre a burguesia brasileira: a presença de estrelas “globais”, ainda mais Gianecchini, reforça o comentário sobre uma bolha frequentemente glamourizada nos folhetins de Manoel Carlos. A bandeira do Brasil estendida na varanda é o tipo de sacada sutil que surge da união entre o brilhante e o óbvio.

Em termos técnicos, Uma Família Feliz mantém os altos e baixos, especialmente em relação à montagem. Se merece alguns pontos por raccords significativos (mãe e filha deitadas na mesma posição), perde outros pela preguiça, seja pelo excesso de transições por justaposição ou por exagerar na estratégia de acelerar o crescimento do som antes do corte. O design de produção, por sua vez, é eficiente ao mostrar o lar da família quase como uma casa de bonecas, tamanha a artificialidade (no bom sentido) de cômodos pintados de branco e cuidadosamente decorados.

Já o elenco é capitaneado por uma Grazi Massafera esforçada, usufruindo da fluidez do roteiro. Nos momentos em que a sanidade mental de Eva é questionada, Massafera se beneficia do rosto benevolente para lançar a dúvida que o espectador tanto precisa para seguir intrigado pelos mistérios da narrativa, da mesma forma que Reynaldo Gianecchini, usa as décadas como galã de novela ao seu favor, embora suas recentes viagens ao campo da vilania estejam frescas na memória de quem acompanha seu trabalho. Grazi e Giane produzem mais quando seus personagens estão em desacerto, mas até a falta de química entre os dois pode trabalhar a favor da trama, impedindo o espectador de nutrir falsas expectativas.

Os fãs de suspense e os espectadores mais atentos talvez decifrem a parte mais saborosa do enigma (“quem machucou as crianças?”) lá pela metade, mesmo que ainda surjam dúvidas a serem sanadas ao longo da narrativa até chegar à fatídica reviravolta final, coroando um filme de gênero tipicamente brasileiro que, se não atinge todo o potencial sinalizado pela premissa, ao menos servirá para abrilhantar as noites de quem ainda não se deu conta da diversidade do Cinema Brasileiro.


NOTA 5,5

2 comentarios


Andreia Eneida Dias
Andreia Eneida Dias
06 abr

Vc é brilhante! Parabéns pela crítica 👏🏼👏🏼

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Jnei Cândido
Jnei Cândido
06 abr

Parabéns pela crítica.

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