"Sra. Harris Vai a Paris" encanta com simplicidade e subtexto
É sempre curioso perceber como determinados papéis acabam reverberando na carreira de algum(a) artista. Tomemos a britânica Lesley Manville como exemplo: em 2017, no estupendo Trama Fantasma, ela interpretou a irmã de um conceituado estilista na Inglaterra da década de 50. Exalando autoridade e adotando uma postura constantemente fria, Manville fez de Cyril uma figura fascinante e que exercia grande influência sobre o irmão. Que este tenha sido interpretado por Daniel Day-Lewis, conterrâneo vencedor de nada menos do que três Oscars de Melhor Ator, só engrandece o trabalho da atriz, indicada a Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel.
Aqui, neste remake de um filme feito para a TV (que contava com Angela Lansbury e Omar Shariff no elenco), Manville se vê novamente assumindo uma personagem envolvida com a alta costura, com a ambientação na Londres dos anos 50 completando o combo de coincidências. Porém, ela faz de Ada Harris uma mulher que não poderia ser mais diferente de Cyril: com uma energia inebriante sempre acompanhada de um sorriso no rosto, a Sra. Harris é uma daquelas pessoas cuja luz irradia por onde passa, contagiando quem está por perto. Dotada de um otimismo inabalável, ela está sempre pronta para dizer o que precisa ser ouvido, apoiar quem precisa de ajuda e consertar o que precisa ser corrigido.
Trabalhando como faxineira, ela passa os dias lidando com membros das classes mais abastadas, lamentando o fato de ocupar um espaço invisível aos olhos da sociedade londrina, retratada por sua vez como um lugar pouco convidativo para a classe trabalhadora, tradicionalmente sufocada pelos privilégios de uma minoria que não se esforça para diminuir o abismo de desigualdade que os separa. O conformismo que toma conta dessa parcela da população é algo que não entra na cabeça efervescente da Sra. Harris (“quando vim para cá, as ruas eram pavimentadas de sonhos”, ela recorda em certo instante). E é esse sentimento que a leva perseguir sua mais nova obsessão: um suntuoso vestido Dior descoberto no armário de uma patroa.
Essa inocente frivolidade, impensável em circunstâncias naturais para aqueles financeiramente desfavorecidos, é encarada pelo roteiro não apenas como um sonho a ser realizado, mas como o catalisador de um movimento muito maior e mais ambicioso, algo que aproxima a espiral progressista iniciada pela Sra. Harris da jornada transformadora de Forrest Gump, trocando o caráter casual e incidental do filme estrelado por Tom Hanks pela espontaneidade de uma senhora que simplesmente se recusa a dobrar-se perante o sistema. Como se a pré-disposição a lutar fosse inerente ao seu caráter, este, por sinal, tão puro que a impede de enxergar a grandeza de seus próprios atos.
Transcendendo a roupagem de feel good movie que tão confortavelmente veste, Sra. Harris Vai a Paris se sai bem ao discorrer sobre temas melindráveis (o papel da mulher na sociedade, o combate aos estereótipos, a luta pela igualdade) justamente por tratá-los com trivialidade, fazendo com que pautas progressistas cheguem ao espectador despidas de qualquer intenção panfletária, mesmo que durante o processo a produção esbarre em obstáculos narrativos que momentaneamente ofuscam a fantasia, seja pela insistência em adotar a sorte como subterfúgio para conveniências, seja por ignorar consequências (o roteiro escala a amiga de Harris para cobrir suas faltas, mas esquece que a mulher também trabalha) ou por soar repetitivo ao martelar seu discurso.
Mesmo assim, é difícil não simpatizar com um filme que utiliza uma absolutamente adorável senhora inglesa para nos lembrar das recompensas de permitir que o amor guie nossas atitudes, fazendo valer aquela velha, mas nada obsoleta, máxima de que “gentileza gera gentileza”.
Uma fábula edificante trazida pelo Festival do Rio que cai como uma luva num momento em que sonhar e ter empatia, infelizmente, parecem estar fora de moda.
* Crítica originalmente publicada como parte da cobertura do Festival do Rio 2022
NOTA 7
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