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Foto do escritorGuilherme Cândido

'Robô Selvagem' empolga como aventura, mas cativa com discurso emocionante


Quando se fala em desenhos ou animações, muitos imediatamente lembrarão da Disney, tamanha a popularidade das obras concebidas pelo estúdio do velho Walt. Embora as bilheterias ratifiquem a tradição da Casa do Mickey, o reconhecimento por parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas demorou a acontecer. Claro, prêmios especiais foram concedidos a marcos como Branca de Neve e os Sete Anões (pela inovação e pelo pioneirismo) e Toy Story (primeira animação inteiramente computadorizada), mas uma categoria voltada para longas-metragens animados só foi criada em 2002. E o primeiríssimo vencedor desse mais novo Oscar, surpreendentemente, não foi um filme da Walt Disney Pictures e, sim, Shrek, da novata DreamWorks Animation.

Braço especializado em animações do estúdio criado por Steven Spielberg, a DWA não precisou de dez anos para se tornar a principal concorrente da Disney, criando personagens e lançando franquias que rapidamente conquistaram gerações ao redor do globo. Além do ogro mais famoso do mundo, a empresa também é responsável por FormiguinhaZ, Spirit - O Corcel Indomável, Madagascar, Kung Fu Panda e Como Treinar o Seu Dragão. No entanto, enquanto a Casa do Mickey seguia inovando, principalmente ao absorver a Pixar, a DreamWorks optou por explorar suas marcas até desgastá-las junto ao público. O que rapidamente se esgotou, também, foi a “Fórmula DreamWorks”, o tipo de storytelling consagrado pelo estúdio que se escorava em referências a grandes filmes (para os adultos) enquanto partia de premissas básicas para assegurar os mais jovens (quem não se lembra dos golpes de Fiona a la Matrix?; ou do leão Alex imitando a cena mais famosa de Beleza Americana?). Os anos se passaram e a mudança finalmente chegou, com a reformulação afetando até a vinheta, que passou a valorizar os sucessos da empresa.

Os Caras Malvados, apesar de narrativamente mundano, trouxe um traço mais rudimentar à animação da DreamWorks, mas foi Gato de Botas – O Último Desejo o projeto responsável por consolidar essa nova fase, trazendo um roteiro surpreendentemente sombrio e emotivo a serviço de uma tecnologia de animação estonteante. O resultado rendeu mais uma indicação ao Oscar para o estúdio e pavimentou o caminho para a criação deste Robô Selvagem, adaptação do premiado livro homônimo de Peter Brown e ponto alto da, digamos, "DreamWorks Animation 2.0". Trazendo o mesmo apuro estético das duas obras supracitadas, a produção escrita e dirigida por Chris Sanders é a consolidação da nova identidade do estúdio, um diamante finamente lapidado.

A história é daquele tipo simples que parece fácil de ser contada, começando com um robô inteligente “despertando” numa ilha aparentemente intocada pelo Homem. Após rodar alguns protocolos, Roz (como pede para ser chamado) percebe estar num ambiente hostil, cercado por animais selvagens que não querem sua presença. Perturbando o ecossistema à procura de seu comprador, Roz finalmente encontra uma tarefa ao descobrir um bebê ganso órfão. Mas a maternidade (sim, “ela” se considera uma mãe)  é muito mais complexa do que se imagina e para isso o robô pede ajuda a Fink, uma raposa muito mais interessada em atender as próprias necessidades.

O que salta aos olhos logo de cara é a forma crua com que Sanders (de sucessos como Lilo & Stitch e Os Croods) ilustra a vida selvagem, mostrando de forma impiedosa a aplicação da Lei da Selva. O resultado são imagens que não esperamos encontrar numa aventura voltada para crianças, com criaturas sendo devoradas, queimadas vivas e até decapitadas, mas o choque, felizmente, é suavizado pelo humor, especialmente vindo de Fink. Se em termos de verossimilhança, Robô Selvagem não alivia para os pequenos, ao menos oferece um banquete visual, estabelecendo a ilha como um lugar cheio de vida e personalidade. A quantidade de cores espelha a diversidade de espécies, com Roz se destacando em meio à fauna.

Se Roz é o melhor elemento do filme, o motivo tem nome e sobrenome: Lupita Nyong’o. Quando escrevi sobre Anora, premiado com a Palma de Ouro em Cannes, manifestei preocupação a respeito de uma precipitação em reconhecer a obra de Sean Baker, mas é preciso aplaudir a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas por consagrar Nyong’o, uma das atrizes mais brilhantes de sua geração, logo em seu debute no Cinema. A performance arrebatadora em 12 Anos de Escravidão (2013) foi apenas o início de uma carreira marcada pela versatilidade e pelo carisma. E se reconheci o acerto da Academia em premiá-la, já aproveito para cobrar novas indicações para a moça (esnobar sua atuação em Nós beirou o constrangimento).

Ainda não há uma categoria voltada para a dublagem no Oscar, mas se houvesse, a mexicana já poderia começar a preparar um discurso, tamanha a complexidade de seu trabalho. Ela é capaz de soar mecânica (é um robô, afinal) e humana em uma mesma frase, fria e calorosa com uma sutil inflexão, além de provocar arrepios numa meia dúzia de momentos pelos mais diversos motivos. Seus colegas de elenco também não fazem feio, principalmente Pedro Pascal (indicado ao Emmy pela série The Last of Us), que incute uma ironia saborosa ao ácido Fink. Da mesma forma, é inevitável analisar a escalação de Kit Connor como o jovem Bico-Vivo, sem lembrar de seu papel na série Heartstopper, trazendo uma bagagem que enriquece os dilemas sociais do ganso. Pertencimento é uma pauta forte no enredo.

Embora mais discreto ao comentar os desajustes do filho postiço de Roz, o roteiro é enfático em seu discurso pró-comunhão entre as espécies, pregando o senso de comunidade acima dos interesses individuais. O respeito às diferenças e, mais importante, uma total aversão ao ódio. Numa época de polarização política, com a sociedade mais efervescente do que nunca, o papel de uma produção hollywoodiana é fundamental ao propagar valores atualmente postos em segundo plano. Nesse aspecto, Roz tem uma função quase messiânica, ao convencer os co-habitantes da ilha a substituírem o instinto pela gentileza. Pois há mais de uma forma de sobreviver e a violência não deveria ser encarada como a primeira opção a ser considerada. Não por acaso, a resposta dos animais ao gesto de Roz em salvá-los mesmo depois de ser desprezada, representa um dos momentos mais catárticos do longa. Que também é recheado de lições para outras questões, como a união perante uma grande calamidade e, em última análise, mostrando as recompensas conquistadas através da resiliência, do esforço e do companheirismo.

Todavia, The Wild Robot (no original) não funciona apenas do ponto de vista narrativo e semiótico, proporcionando um tremendo tempo de qualidade para as famílias. Além de ostentar uma mensagem edificante, a produção se revela uma aventura de primeira grandeza, com sequências de ação empolgantes e um design de som absolutamente extraordinário. Não se engane, estamos falando do tipo de longa-metragem capaz de provocar reações extremadas da plateia (o momento “eu sou um robô selvagem” parece saído de um filme da Marvel), mas que, ao contrário de tantos blockbusters, possui coração.

Contando com algumas homenagens que farão os pequenos urrarem para a tela (há espaço para Naruto e Capitão América no cardápio de referências), Robô Selvagem não é apenas um espetáculo sensorial digno das melhores salas de projeção, mas também um sopro de esperança e humanidade num momento em que a empatia e a coletividade parecem fora de moda.


NOTA 9

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