"Pequenas Coisas Como Estas" é sutil e poderoso ao mesmo tempo
- Guilherme Cândido
- 13 de mar.
- 4 min de leitura

Vencedor do Oscar de Melhor Ator no ano passado por Oppenheimer, Cillian Murphy não poderia ter escolhido melhor seu projeto seguinte. Enganou-se quem esperava por um blockbuster bombástico ou um período sabático. Irlandês de nascença, ele usou seu prestígio para ajudar a tirar do papel um filme que reconta um capítulo sombrio da história de seu país.
Baseado no romance de Claire Keegan, a mesma autora do conto que gerou o ótimo A Menina Silenciosa (2022), Pequenas Coisas Como Estas é aquele tipo de drama construído lenta e silenciosamente, refletindo em sua atmosfera a angústia interna de seu protagonista. Bill Furlong (Murphy) é um homem de família íntegro e sem vícios. Vendedor de carvão, ele passa os dias fazendo entregas através de sua velha picape, percorrendo as ruas escurecidas que entrecortam os campos verdejantes de New Ross, cidade pequena no sudoeste irlandês.

Estamos na década de 80 (como o rádio deixa claro) e o Natal se aproxima, mas ao invés de estar feliz na companhia da esposa Eileen (Eileen Walsh) e das filhas, ele mostra circunspecção. “Você anda muito calado”, observa a esposa, sem perceber que a quietude do marido tem raízes profundas. O tormento de Bill é tamanho, que ele mal consegue ter uma noite completa de sono, acordando no meio da madrugada, pensativo como sempre. E a tomada com o homem sentado no escuro, observando o mundo através da janela é preciso ao ilustrar sua preocupação com o que o rodeia, mesmo sendo acometido por turbulências psicológicas. Para piorar, durante uma entrega ao convento local, algo o perturba. De dentro do galpão escuro, ele vislumbra uma jovem aos prantos, tentando escapar dos braços da mãe que a empurram em direção às freiras. Uma cena que não deveria ser corriqueira e Bill sabe muito bem disso.

Trata-se de um retrato sutil do impacto da Igreja Católica na sociedade irlandesa pós-Guerra Civil. Mais de 10 mil mulheres foram mantidas dentro das chamadas “Lavanderias de Madalena”, sendo submetidas a trabalho forçado e atrocidades piores. Um escândalo institucional que passava incólume graças ao silêncio cúmplice de cidadãos e cidadãs irlandeses. Como a dona de um bar alerta a Bill, “ninguém quer ser inimigo da Igreja”. Aos poucos, através de flashbacks que sacrificam a tração da história por não contarem com a presença marcante e evocativa de Cillian Murphy e muito menos com a lógica visual tão bem estabelecida na linha temporal principal, ficamos sabendo que a infância de Bill é a causa para a sua angústia. Ele conseguirá fazer como seus conterrâneos e ignorar o que acontece dentro daquele ambiente supostamente sacro?

Murphy é essencial para o filme ressoar tão poderosamente no espectador, mas é o roteiro assinado pelo dramaturgo Enda Walsh que acaba chamando atenção por evocar tanto com tão pouco. Não há uma linha de diálogo sequer explicando qualquer elemento da trama (não por acaso, você nunca ouvirá “Lavanderias de Madalena” sair da boca de algum personagem), assim como a própria natureza introvertida de Bill o impede de falar abertamente sobre o que o aflige. Nesse ponto, até o ato de lavar as mãos serve como metáfora, contando mais sobre Bill do que ele mesmo jamais conseguiria fazê-lo. Murphy mostra-se uma escalação certeira, com sua expressão incessantemente distante, mas com um olhar triste e melancólico. Ele também é hábil ao jamais permitir que o espectador duvide de suas intenções, mesmo que Eileen o repreenda por ser “generoso demais”.

Tecnicamente, o longa-metragem não fica atrás: O diretor de fotografia Frank van den Eeden e o designer de produção Paki Smith concebem um universo sempre nublado e sombrio, destacando-se o contraste entre o interior de cores frias do convento e o lar aconchegante dos Furlong. Além disso, o design de som se encarrega de captar detalhes como as já citadas notícias do rádio, a respiração pesadíssima de Bill e o eco resultante do imenso vazio que permeia o lar das freiras, mas também o caos alegre que envolve o protagonista ao chegar em casa e os grunhidos que ele deixa para trás ao sair dos domínios católicos.

E se sequer vemos as freiras protagonizando alguma atrocidade, é porque o diretor Tim Mielants prefere deixar os horrores fora do quadro, beneficiando-se da paisagem sonora para sugerir o sofrimento que reina no convento. Mielants é partidário de uma lógica reativa, empoderando o pano de fundo e manuseando o tom indiretamente. É como se ele almejasse um exercício prático de empatia através de seus personagens, sempre tentando desvendar o que se passa na cabeça de Bill, um observador nato incapaz de facilitar a observação alheia. E se havia alguma dúvida a respeito do poder exercido pelas Irmãs e sua perpetuação, a sequência com Emily Watson é matadora. A atriz, em pouco tempo, resume com exatidão o modus operandi de uma instituição que só em 1996 viu sua influência ruir, com a última “Lavanderia” sendo fechada.

Triste e comovente sem recorrer a rompantes, Pequenas Coisas Como Estas ainda se permite um final repleto de simbolismos, podendo ser interpretado como o início da retomada da esperança, sem soar artificial e admiravelmente mantendo a coerência exibida por seus muito bem aproveitados 98 minutos de projeção. Uma pérola do Cinema Europeu, abertura do último Festival de Berlim, diga-se, que infelizmente não contou com uma campanha capaz de levá-lo ao Oscar 2025.
NOTA 9