'O Sabor da Vida' constrói jornada catártica e memorável via Gastronomia
Alguns meses atrás, o mundo do Cinema ficou perplexo com a decisão da França de não selecionar o vencedor da Palma de Ouro como seu representante na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional. Apesar de não ser uma regra (nem acontece com frequência), é natural esperar que o Festival de Cannes exiba o que de melhor o berço da Sétima Arte tem a oferecer. Esse ano, por outro lado, tivemos o drama de tribunal Anatomia de Uma Queda e o romance gastronômico O Sabor da Vida dividindo os principais prêmios distribuídos na croisette. E embora o primeiro tenha levado a Palma, foi o segundo que acabou escolhido para tentar colocar a França pela 41ª vez na briga pela estatueta dourada (com 12 vitórias, tem duas a menos que a Itália, a recordista). Apesar de ainda não ter visto o novo filme de Justine Triet, ao final da sessão de O Sabor da Vida, os motivos ficaram mais do que cristalinos. Na verdade, absurdo mesmo será não incluí-lo entre os cinco finalistas. Trata-se de um trabalho tão complexo e ao mesmo tempo tão delicado, que espero fazer jus com meu humilde texto.
Vencedor do prêmio de Melhor Direção em Cannes, o vietnamita Anh Hung Tran pode não ser conhecido pelo grande público, mas comprova que “nem todos podem se tornar grandes artistas, mas um grande artista pode vir de qualquer lugar”, parafraseando Ratatouille (2007), outra obra-prima e com quem La Passion de Dodin Bouffant (no original) divide uma série de semelhanças. A frase, dita pelo lendário Chef Gusteau se refere a cozinheiros, mas pode ser aplicada em qualquer área. Aliás, essa mistura entre Gastronomia e Cinema é uma das especialidades do roteiro, também escrito por Tran.
A história acompanha a parceria entre Dodin (Benoît Magimel, de Memórias de Paris) e Eugénie (Juliette Binoche, de Vidas Duplas) que há vinte anos trabalham juntos na criação de maravilhas culinárias. O primeiro, considerado “o Napoleão das Artes Culinárias” é dono da mansão que emprega a segunda como cozinheira-chefe, que por sua vez é frequentemente chamada de “artista” em função de seu talento praticamente artesanal. Dedicando-se a verdadeiros banquetes para uma aparente confraria, os cozinheiros vivem para a culinária em todos os sentidos e processos. Mas se você está pensando que a narrativa se resume a duas horas e vinte e quatro minutos da dupla cozinhando e trocando flertes, está muito enganado. O Sabor da Vida é muito, mas muito mais do que isso.
O dom que os protagonistas possuem para cozinhar é diretamente proporcional às habilidades de Anh Hung Tran como roteirista, que impressiona pelo grau de sofisticação alcançado nos traiçoeiros paralelos que traça. Afinal, estamos falando de personagens que buscam as belezas da vida através da Gastronomia. Dodin e Eugénie vivem para dar felicidade às pessoas e a melhor forma encontrada é justamente cozinhando. E eles aproveitam cada etapa do processo: repare, por exemplo, como mal conseguem esconder a empolgação ao anunciarem um cardápio. Depois, vem o procedimento minuciosamente sincronizado de materializar o que estava no papel. E, por fim, a parte mais aguardada: comer. E se Dodin participa ativamente das conversas que acontecem durante as refeições, Eugénie prefere ficar na cozinha (“converso com vocês através da minha comida”, ela justifica).
Em contrapartida, Dodin não esconde o prazer de ver as pessoas comendo, especialmente sua parceira (“posso vê-la comer?”, pergunta inocentemente). E não estamos falando de almoços tradicionais, mas legítimas experiências gastronômicas, compostas por diversos pratos (ou serviços, como é dito). Nem a bebida escapa (“o vinho é a parte intelectual da refeição, enquanto a carne é a material”, alguém chega a dizer). Para os artistas da cozinha, comer é tudo (“a invenção de uma receita traz mais alegria à humanidade do que a descoberta de uma estrela”).
Ainda que feliz (encontrou sua verdadeira vocação e consegue exercê-la livremente) e financeiramente confortável, falta um elemento à vida de Dodin: uma esposa. E a única candidata possível é, claro, Eugénie, mulher que consegue entendê-lo como ninguém. O problema é que a cozinheira não abre mão da independência, algo que perderia com o fim da solteirice (“o casamento é como um jantar que começa pela sobremesa”). Sobra até para Adão e Eva quando a ideia é argumentar contra o matrimônio “lembre-se que o primeiro casal se arruinou por algo que comeram!”. Tendo seu pedido recusado inúmeras vezes, o homem não descansará enquanto não puder chamar Eugénie de esposa, fazendo com que a primeira metade da história se concentre nesses esforços.
E são personagens brilhantemente desenvolvidos: Ambos são pessoas inteligentes e com alta sensibilidade para a Arte (alguma surpresa?). Também utilizam a mesma percepção necessária na cozinha para compreender o mundo, principalmente as pessoas. Não por acaso, eles leem um ao outro da mesma forma que fariam ao desvendar os ingredientes de um prato novo. Nesse aspecto, os parisienses Benoît Magimel e Juliette Binoche não poderiam exibir mais química em cena. O amor de Dodin é tão grande, que é capaz de improvisar uma poesia apenas para atender aos caprichos da mulher de sua vida. Já Binoche possui uma margem ainda maior para explorar sua personagem, fazendo de Eugénie uma mulher aparentemente frágil, vulnerável, mas de grande personalidade.
É fácil entender o encanto que um desperta no outro. Modestos, eles negam os adjetivos superlativos que ouvem com frequência. Alguém chega a chamar um bolo de “milagre” em função do recheio permanecer gelado, mesmo após a superfície ser flambada (“é apenas uma reação química”, Dodin explica). Ele também é humilde o bastante para passar seus conhecimentos a uma promissora aprendiz e quando percebe que a jovem não apreciou o sabor de um alimento específico, mostra compreensão (“isso é normal, você é muito jovem, deve-se acumular cultura e memória para moldar o paladar”, ele explica).
A direção faz jus ao prêmio que recebeu em Cannes e basta prestar atenção à movimentação da câmera para constatar um cineasta com pleno domínio de seu ofício. Quando Dodin e Eugénie estão na cozinha, as lentes não param, acompanhando o balé frenético de talheres, panelas e alimentos que entram em cena e saem com a mesma rapidez. Já nas sequências externas, acompanhamos apenas de longe, sempre com algum elemento impedindo que vejamos tudo com clareza. A fotografia, ousada ao apostar na iluminação natural em determinados momentos, consegue um efeito âmbar que traz elegância às cenas, ao mesmo tempo que ecoa as cores das panelas (o plano de Dodin sentado junto à janela sob um feixe de luz é especial).
A montagem também é eficiente ao dar dinamismo à narrativa, superando os obstáculos da duração. As elipses, por exemplo, são fundamentais nesse sentido: a partir do momento em que sabemos o que Dodin pensa a respeito de algo, o filme não perde tempo mostrando sua reação quando a situação se repete, pulando diretamente para a conclusão (a sequência envolvendo sua resistência em receber uma aprendiz). O destaque técnico, no entanto, fica por conta do som: Tran é inteligente ao reconhecer que os efeitos sonoros seriam muito mais poderosos do que qualquer tipo de trilha sonora, eliminando melodias incidentais para alcançar um efeito imersivo que merece ser reconhecido na próxima temporada de premiações.
Encerrando a história de uma forma absolutamente extraordinária com um movimento de câmera em 360º que ilustra a mudança de estação ao revelar sutilmente um flashback que arremata o enredo com perfeição, O Sabor da Vida transporta a experiência gastronômica almejada por seus personagens para a tela, guiando o espectador por uma jornada, profunda, repleta de significados e inesquecível.
NOTA 10
*Crítica publicada durante o Festival do Rio 2023