O inventivo, mas difuso "Disco Boy - Choque Entre Mundos" chega às telas
Aleksei e Mikhail são dois jovens bielorrussos apaixonados pela cultura francesa, tanto que mal disfarçam a empolgação ao acompanharem uma caravana de torcedores de um clube de futebol até a Polônia, país vizinho ao berço do Iluminismo. Os amigos não estão particularmente interessados no jogo, mas sim na oportunidade de finalmente migrarem para o país que tanto admiram, afinal. Para isso, eles sorrateiramente se desprendem do inflamado grupo de torcedores e partem para a estrada, onde conseguem uma carona com um simpático caminhoneiro. Simpático o bastante para acolher a dupla de estranhos, mas não a ponto de evitar cobrar para que pudessem escolher a música que embalaria a viagem de cinco horas. A melodia selecionada, uma batida eletrônica, sinaliza a identidade do tal "Disco Boy" presente no título, mas em breve descobriremos que há muito mais por trás disso.
Para chegar à França, no entanto, é preciso também atravessar um rio fortemente resguardado pelas autoridades e se forem pegos, as consequências podem ser maiores do que uma mera deportação, tanto que apenas Aleksei consegue alcançar a outra margem e o telefonema doloroso que faz para a família de Mikhail sacramenta o destino do companheiro de viagem. Uma vez em solo francês, o jovem cujas posses cabem todas numa singela sacola azul, não vê outra alternativa senão alistar-se na Legião Estrangeira, corpo militar representado por um comandante que não faz muita questão de esconder que não é preciso muito para ser recrutado, orgulhosamente bradando que não há distinção entre os soldados (advogados, médicos, traficantes e gigolôs são tratados igualmente). O treinamento brutal, similar àquele imposto aos aspirantes do BOPE em Tropa de Elite, é o preço a se pagar pela tão sonhada cidadania francesa, mas só depois de cinco anos como legionário. É através de sua primeira missão que Aleksei se depará com outra figura importante da narrativa, o guerrilheiro Jomo.
Um manancial de diferenças separa os dois homens: enquanto é revelado que o bielorrusso é órfão, sem uma causa aparente pela qual lutar, daí a sedução pela Legião Estrangeira (“quem tem medo fica em casa”, ele responde ao ser lembrado dos riscos envolvidos), Jomo é o líder do MEND ou Movimento pela Emancipação do Delta do Níger, em tradução literal e defende sua aldeia, impactada pela presença cada vez forte de corporações petrolíferas, que cortam a paisagem com suas chaminés flamejantes e poluem as águas que garantem a subsistência do povo. O roteiro, porém, não quer nossa atenção voltada para as diferenças, mas sim para as semelhanças, com Jomo sendo encarado como um espelho de Aleksei através de paralelos construídos sem muito apego pela sutileza. É o nigeriano, por exemplo, quem reivindica o título do filme, confessando que, caso nascesse “do lado branco do rio”, buscaria uma carreira como dançarino de boate, o tal disco boy, cujo trabalho seria embalado justamente pelo tipo de canção favorito do legionário.
O iminente encontro entre os dois é encenado pelo diretor italiano Giacomo Abbruzzese (em seu primeiro longa-metragem) plenamente consciente de seu potencial catártico. Tanto que até a Legião Estrangeira se encarregar de libertar reféns do MEND, o filme se beneficia de um suspense ponderado, mais preocupado em alimentar a expectativa pela colisão de dois mundos, do que criar uma atmosfera carregada de gatilhos de gênero. Tanto que quando finalmente dividem a cena, Jomo e Aleksei lutam sob uma fotografia que emula o efeito da visão de calor, como aquela utilizada pelo vilão alienígena de O Predador, empregando uma aura esotérica à colisão dos corpos. Embora confusa, a luta não é coreografada para gerar adrenalina, valorizando a troca de golpes, mas sim, para reforçar seu significado, que ditará o desenvolvimento não apenas da narrativa, mas de Aleksei como indivíduo.
Cabe ressaltar que Jomo possui uma distinta característica física que é compartilhada por sua irmã: os olhos de cores diferentes. Essa peculiaridade é vastamente aproveitada, não apenas no campo semiótico, mas também para efeitos puramente plásticos, como no plano em que Jomo está escondido sob uma árvore, com o olho cintilando no meio da escuridão e chamando a atenção de Aleksei. Deixa-se o campo estético, para adentrar no âmbito narrativo quando o próprio protagonista passa a sofrer mudanças após o fatídico choque com o nigeriano. “O que houve com o seu olho?”, ele ouve frequentemente. A mudança gradual, que lembra vagamente a metamorfose do protagonista de Distrito 9 ganha contornos alegóricos, especialmente no ato final, quando uma nova convergência fecha o enredo de forma elegante e apoteótica.
E Franz Rogowski, ator alemão de ascensão meteórica no prestigiado circuito de festivais investe em mais uma performance marcada pela introspecção. Rogowski faz muito, com pouco, expressando os sentimentos de Aleksei pela linguagem corporal e pela expressão constrita. Sujeito de poucas palavras, o protagonista leva o espectador a perceber seu passado sofrido através do rosto quase estoico do ator, frio mesmo perante eventos intensos, muitas vezes evocando a magistral performance oferecida em Great Freedom, seu melhor filme até agora. É uma pena que tamanho espaço seja destinado apenas a Aleksei e negado a Jomo, fazendo com que a magnética presença de Morr Ndiaye seja apenas sentida na maior parte do tempo, ratificando a força de sua atuação, ainda mais impressionante devido ao fato de ser sua primeira.
Mas a história não se resume ao arco dramático de Aleksei e os desdobramentos do embate com o líder guerrilheiro. Num cacoete normal para realizadores novatos, Giacomo Abbruzzese busca relevância e conteúdo a todo instante, cercando-se de temas que acabam se atropelando. Obviamente influenciado pela obra-prima Bom Trabalho, de Claire Denis (outra história envolvendo a Legião Estrangeira), o italiano toca em assuntos demais, nem sempre desenvolvendo-os satisfatoriamente. É o caso da subtrama envolvendo a degradação ambiental, por exemplo, com potencial para pano de fundo, mas que perde relevância na segunda metade. A promessa de uma “colisão de dois mundos”, slogan da produção, não se cumpre, pois o foco passa a ser a transformação do protagonista, oriundo de um lugar que também demandaria comentários até políticos, mas nesse ponto, Abbruzzese é cauteloso até demais. E quanto ao ambiente puramente masculino, cujo obrigatório flerte com o homo erotismo jamais é examinado com mais contundência?
Por outro lado, a produção ganha pontos importantes ao conduzir a conversão de Aleksei sem recorrer a explicações, deixando que as lacunas sejam preenchidas pelo espectador. É possível fazer interpretações que passem pela culpa e pelo arrependimento, afinal, sua recusa em cantar o clássico de Édith Piaf “Non, Je Ne Regrette Rien” (“Não me arrependo de nada”, em tradução livre), corrobora essa tese, mas também é possível traçar diagnósticos mais fantasiosos, já que o visual estilizado e as intervenções oníricas (combinação também presente na filmografia do dinamarquês Nicolas Winding-Refn) abarcam tais conclusões. O uso do azul e do vermelho, com altas pitadas de neon não chega a ser uma exclusividade de Winding-Refn (autor de Drive, Só Deus Perdoa e O Demônio de Neon), cabendo uma lembrança até mesmo de Gaspar Noé, embora a narrativa passe longe da visão mais aberta e arrojada do cineasta argentino.
Só o fato de escancarar a influência de um clássico como Bom Trabalho, já demonstra a ambição de Giacomo Abbruzzese, cineasta seguro e cujo potencial é considerável, tornando-o um promissor nome a ser acompanhado, não apenas pela visão singular, mas também como contador de histórias que refletem o cenário global, cabendo apenas um aprimoramento no recorte escolhido.
NOTA 7,5
Gostei da crítica e vou assistir.