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Foto do escritorGuilherme Cândido

"O Assassino" é mais do que o retorno de David Fincher ao seu melhor


O prestígio que David Fincher nutre entre os cinéfilos mundo afora não é proporcional ao reconhecimento que possui junto à Academia. Tanto que, mesmo depois de assinar obras-primas como Se7en – Os Sete Crimes Capitais e Clube da Luta, o cineasta estadunidense só foi receber sua primeira indicação ao Oscar em 2009, com O Curioso Caso de Benjamin Button. E mesmo quando tudo indicava que finalmente conquistaria a estatueta com A Rede Social, sucesso absoluto de crítica e que definiria uma geração, os “acadêmicos” optaram por premiar O Discurso do Rei. A derrota de Fincher já seria incompreensível por si só, mas ser preterido pelo conservador longa de Tom Hooper quando A Origem, Cisne Negro, Bravura Indômita e Toy Story 3 também estavam na disputa, despertou uma curiosidade que persiste até hoje. A verdade é que nunca houve uma sintonia entre o diretor e os votantes do Oscar, talvez pelo passado como (premiado) diretor de videoclipes ou pela abordagem mais moderna numa época em que os “velhinhos” ainda eram maioria nas votações. Como explicar a ausência de Garota Exemplar e Millenium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres entre os indicados; e o protagonismo de O Curioso Caso de Benjamin Button e Mank em suas respectivas campanhas?

Fato é que sempre que sai de sua zona de conforto, isto é, abandona a frieza e o niilismo de obras sobre personagens moralmente questionáveis, David Fincher flerta com a mediocridade. Benjamin Button e Mank comprovam isso. A experiência com o lúdico e o fabulesco é um corpo estranho na filmografia carregada de cinismo e desesperança do autor nascido em Denver. O apelo de Mank é mais fácil de entender, não apenas pelo lado de Fincher, mas também pela ótica da Academia. A história falha e mecânica de uma das figuras centrais na concepção do clássico seminal Cidadão Kane, um dos pontos mais altos de Hollywood, dialoga frontalmente com os fetiches nostálgicos dos votantes, enquanto o envolvimento do pai de Fincher se encarrega de preencher as lacunas faltantes. Isso tudo para dizer que O Assassino marca o reencontro não apenas de David Fincher com o roteirista Andrew Kevin Walker, seu parceiro em Se7en, mas também com sua própria identidade como realizador. É como se o diretor se projetasse no protagonista quando este se entrega a devaneios explicitando seus métodos e sua visão de mundo. Uma terapia compartilhada entre criador e criatura.

A trama, na verdade, é um mero gatilho secundário. Finamente concebido por Walker, diga-se de passagem, mas que serve essencialmente para que possamos adentrar na psique do assassino sem nome vivido por Michael Fassbender. Sua narração, penetrante e suave na mesma incomum medida, não é um daqueles artifícios utilizados por roteiristas preguiçosos, uma facilitação na hora de prover um aprofundamento da personalidade do (anti) herói. Afinal, o protagonista não está explicando o que está acontecendo. Na realidade, ele sequer está falando conosco. O que ouvimos é um homem lutando para vencer o tédio (“é fascinante como pode ser fisicamente exaustivo não fazer nada”), uma característica inerente à sua linha de trabalho ao contrário do glamour normalmente imaginado. Alguém que, em momentos de crise, tenta se lembrar do próprio treinamento, recitando mantras (“antecipe, não improvise”, “atenha-se ao plano”) enquanto retoma o controle. Ou pelo menos é nisso que a tal voz interior aparenta acreditar, porque em última análise, o Assassino precisa rebaixar suas vítimas para que possa se sentir bem tirando suas vidas.

Pois um dos grandes prazeres oferecidos por The Killer (no original), não está no acompanhamento minucioso e ininterrupto das ações do protagonista e, sim, no mergulho de cabeça que damos em sua mente. É fascinante perceber como Andrew Kevin Walker concebe uma noção cristalina de controle apenas para destruí-la paulatinamente na nossa frente. Apesar dos esforços do fenômeno da identificação, é justamente quando aceitamos o fato de que o protagonista não é confiável, que a experiência se torna gradativamente recompensadora. Não esqueçamos da verdade pura e simples de que estamos lidando com um assassino profissional. O que ele está dizendo em off, a rigor, são mentiras em que ele precisa acreditar para permanecer eficiente. Mas assim como o protagonista está sendo desonesto quando discursa falsamente sobre a empatia (sua amada existe para desmentí-lo), o filme está sendo pragmático ao se desenvolver precisamente através de suas falhas, que estão lá, apresentadas para quem quiser ver.

Trata-se de um exercício de gênero conduzido com maestria por David Fincher, um expert veterano na área. Um de seus mais modestos, vale ressaltar, mas não menos relevantes por isso. Ele permanece fiel a essa atmosfera cínica e frígida durante toda a projeção, até mesmo quando se permite incluir alívios cômicos, que surgem ora de situações nervosas como aquela no elevador, com a utilização catedrática do humor negro, ora de intervenções irônicas (o quebra-sol que sugere pedir ajuda à polícia, os trechos musicais). Fincher sabe o que deve ou não fazer para manter o espectador inquieto como o protagonista, mas com o diferencial de não sucumbir a falhas. É um Cinema de controle absoluto, algo refletido também pela montagem do duplamente oscarizado Kirk Baxter, colaborador habitual de Fincher não à toa. Não há espaço para respiros, assim como não há tempo morto. Os cortes são diligentemente calculados de forma a impedir que uma imagem dure mais do que o estritamente necessário.

Trent Reznor e Atticus Ross, que se descobriram como compositores de trilhas incidentais graças a David Fincher, com quem formaram uma parceria que rendeu um Oscar logo de cara, investem numa sonoridade que busca incomodar, deixando o espectador desconfortável graças a elementos sonoros estranhos e, por vezes, enervantes. Assim como tendemos a temer o que não entendemos, a impossibilidade de identificar o que estamos ouvindo serve como uma bela metáfora. Já a fotografia do irregular Erik Messerschmidt (vencedor do Oscar pela paleta cinzenta de Mank), resgata o tom amarelado que marcou o trabalho de Jeff Cronenweth a frente de A Rede Social, mas com um aspecto cru e realista graças ao grão que aparece nas sequências noturnas, principalmente a fuga de motocicleta pelas ruas de Paris.

Toda essa irônica harmonia técnica acaba em segundo plano quando Michael Fassbender entra em cena. O ator com quem compartilho aniversário, teve de penar com papeis pequenos e pouco desafiadores antes de conquistar suas merecidas duas indicações ao Oscar e tem aqui seu melhor personagem em quase dez anos, mais precisamente, desde Steve Jobs, que lhe valeu seu mais recente reconhecimento junto à Academia. O intérprete, que nasceu na Alemanha, mas cresceu na Irlanda, talvez seja mais lembrado como a segunda encarnação do complexo super-vilão Magneto, mas é sua discreta e extremamente multifacetada performance como o andróide David de Prometheus que mereceria créditos na fase mais mainstream de sua carreira. Como o Assassino, Fassbender oferece uma atuação física, mas não truculenta e a síntese desta constatação fica evidente no embate propositalmente feio (o que não justifica a iluminação excessivamente ruim) que o personagem trava com um brutamontes na Flórida. Contra um oponente três vezes maior, é contraproducente investir na força e o protagonista é eficiente justamente por optar pela inteligência. Essa sequência, aliás, merece elogios pela coreografia e pela movimentação de câmera, mas também pela forma com que propicia pequenas pausas ao Assassino, cruciais para que possa pensar na melhor forma de vencer seu inimigo.

Voltando a Fassbender, note como ele é capaz de convencer como um homem prático e narcisista, apenas para, posteriormente, revelar ser uma de suas inúmeras fachadas. Parte desse convencimento reside na linguagem corporal precisa do europeu, que adota uma composição marcada por pequenas mudanças em sua expressão quase sempre congelada. Aliás, repare como o ator praticamente não pisca em cena, fazendo dos olhos seus principais instrumentos de trabalho. O confronto, mais psicológico e verbal do que físico, com a personagem igualmente não-identificada de Tilda Swinton é outro dos pontos altos da narrativa, funcionando como um teste para as convicções e o treinamento do protagonista. Ver intérpretes do quilate de Fassbender e Swinton contracenando é apenas mais um dos deleites presenteados pela produção.

Falta a O Assassino um empenho maior para sedimentar a crença de que alguém como o protagonista é capaz de manter um relacionamento afetivo. Por um lado, fortalece o aspecto mentiroso do personagem e a hipocrisia de sua verborragia internalizada, por outro, abre um buraco que nem mesmo a mecânica sofisticada de David Fincher é capaz de preencher no final das contas. O que não diminui o impacto desse regresso do cineasta a uma área da qual nunca deveria ter saído.


Que sua retomada da boa forma seja definitiva.


* "O Assassino" chegará ao catálogo da Netflix em 10 de Novembro.


NOTA 8

1 Comment


Guest
Oct 31, 2023

Parabéns pela crítica.

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