Novo "Pinóquio" se destaca com coragem e imaginação
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Reconhecido mundialmente pelo apuro estético de obras geralmente estruturadas como fábulas, Guillermo Del Toro construiu sua carreira na órbita do fascínio que possui por monstros. Admirador confesso de obras como O Monstro da Lagoa Negra e Nosferatu, o autor mexicano invariavelmente busca subverter a expectativa dos espectadores acerca dessas criaturas habitualmente temíveis. Em seus elogiáveis longas-metragens falados em espanhol, por exemplo, Del Toro se empenhou em humanizar desde vampiros (Cronos), até espíritos (A Espinha do Diabo e A Colina Escarlate), mas foi com Hellboy que ele abraçou seu desafio definitivo, ao retratar um demônio como potencial salvador da humanidade. Nas histórias assinadas pelo realizador, a monstruosidade reside nas piores facetas do ser humano e o Mal nem sempre é fácil de ser identificado, pois pode se apresentar como um chefe aparentemente gentil num determinado momento e se revelar um perverso assediador em outro, como o vilão Strickland de A Forma da Água, grande vencedor do Oscar 2018. Essa é a visão que Del Toro traz para sua versão de Pinóquio, personagem central do romance escrito por Carlo Lorenzini (ou Collodi, seu pseudônimo) e publicado no final do século XIX.
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Ao contrário do que acontecia na adaptação dos estúdios de Walt Disney, que (merecidamente) conquista fãs desde sua estreia há mais de 80 anos, a Itália não é um ambiente colorido e hospitaleiro, muito pelo contrário, pois o roteiro escrito pelo próprio Guillermo Del Toro ao lado de Patrick McHale (do desenho Hora de Aventura), situa a trama em plena primeira guerra mundial, quando Benito Mussolini (que inclusive dá as caras em determinado momento) personificava o fascismo que tanto aterrorizava os pacatos e submissos habitantes do vilarejo onde vive Gepetto, um simpático velhinho que fazia da marcenaria o veículo perfeito para extravasar sua criatividade como inventor. Mas nessa história, Gepetto não é exatamente aquela figura radiante que cantava e dançava ao lado de adoráveis animais de estimação no longa de 1940. Aqui, o marceneiro está de luto pela morte do filho, Carlo, que aos dez anos de idade teve a infelicidade de estar no lugar errado (interior de uma igreja) e na hora errada (durante um bombardeio completamente fortuito).
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Entregue à bebida, o antes amado Gepetto, agora é discriminado pela sociedade, tratado como um ébrio incapaz de seguir em frente. Numa noite de lamentos perante o túmulo de Carlo, o homem decide desafiar as leis da natureza e trazer o menino de volta. Seu impulso resulta na confecção de um boneco de madeira mais assustador do que adorável, frustrando-o até desistir de terminá-lo. Vendo-o sucumbir ao desespero, uma fada azul aparece para dar vida àquele projeto inacabado, na esperança de que o velho marceneiro possa reencontrar a alegria. E é aí que as diferenças entre Del Toro e Disney começam a se acentuar. A fada não concede ao inocente Pinóquio a possibilidade de se tornar um menino de verdade e, sim, a dádiva da vida sob o caro preço da imortalidade, uma maldição que o boneco só entenderá de fato através de duras experiências.
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Não se trata apenas de saber discernir entre o certo e o errado - para isso, bastaria seguir o coração, a consciência, um grilo falante, ou o que o valha – mas aprender as lições que a vida nos dá. E as aulas são ministradas com rigor comparável ao que vemos no nosso dia a dia. O que Del Toro e McHale fazem é dificultar ainda mais o caminho já tortuoso de Pinóquio, atirado no meio de uma sociedade absorta em valores soturnos e empoderados por um regime fascista. Através desses componentes sombrios, potencialmente estranhos aos olhos de um espectador acostumado às fábulas do estúdio do Mickey, o roteiro adiciona camadas e as explora até as últimas consequências.
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O discurso de aceitação, um exemplo nada novo na filmografia de Del Toro, aliás, recorrente em suas obras mais recentes, não é solto a esmo. Com o pano de fundo totalitário, o realizador consolida argumentos sem a necessidade de recorrer a repetições. Há espaço para o simbolismo (detalharei adiante), evidente na primeira sequência de Pinóquio na igreja ou na utilização da Arte como propaganda, sutil na relação entre a religião e a política ou até mesmo na concepção do boneco, plantado como uma pinha ao lado da lápide de Carlo.
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Além disso, o desejo angustiado de Gepetto por rever seu filho resulta no arco mais poderoso deste filme e que repousa no laço diligentemente construído entre o criador e sua criatura. Pois este Pinóquio é, em essência, um filme sobre o amor. A grande mudança desta versão em relação às demais revela-se justamente em mostrar Pinóquio almejando ser amado por seu “papai”, algo que ele aprende ser muito mais valioso do que possuir um corpo de carne e osso, pois o amor passa pelo entendimento da identidade do outro, a aceitação da aparência é uma consequência ilustrada menos como uma metáfora do que como a ode às diferenças tão bem costurada durante a vasta carreira de Del Toro.
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Tudo isso embalado numa animação que combina técnica e beleza, de uma forma que só o o stop-motion é capaz de proporcionar. A atenção aos detalhes impressiona: Notar, por exemplo, o brilho emanado pelo corpo do Grilo Falante através das gotas de água que refletem a luz ambiente ou as mãos trêmulas de Gepetto enquanto soluça ao lado do túmulo de Carlo, é constatar o trabalho meticuloso de genuínos artesãos à serviço de uma arte tão preciosa quanto rara nos dias de hoje, tomados por animações pasteurizadas. A riqueza do design de produção ainda se beneficia de efeitos visuais estonteantes como aqueles que transformam um quartel fascista num pesadelo arquitetônico mergulhado em tons escuros e iluminação vermelha, contrastando com as ruelas italianas salpicadas por cores fortes de veículos e outros adereços.
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Comentar, como prometido, sobre os simbolismos ofertados pelo texto é um deleite à parte. Começando pela reinterpretação da Fada Azul, da qual mantém-se apenas a silhueta cintilante, Del Toro apaga a função narrativa “fada ex machina” (lembremos que ela surgia esporadicamente a fim de livrar Pinóquio de obstáculos aparentemente intransponíveis), concebendo uma figura visualmente inspirada no Anjo da Morte de Hellboy II – O Exército Dourado (repare nas asas com olhos), mas que surge ligeiramente menos sombria do que a Morte, personagem idealizada como a Quimera da mitologia grega ao trazer consigo não só a aparência bestial, mas também a representação do desejo utópico, ainda que realizável através de uma barganha tipicamente faustiana.
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O cineasta também se esbalda com outra criatura, o Grilo Falante, encarado como o “coração” de Pinóquio numa analogia nada sutil ao trazê-lo morando num buraco (ou lorga, já que se trata de parte do tronco de uma árvore) em seu peito. Segundo o roteiro, a consciência do boneco provém de seu coração, numa mistura imperfeita entre razão e emoção. Não por acaso, é o Grilo (autoproclamado escritor) que se dispõe a narrar a história, um recurso incorporado diegeticamente e longe da tradição preservada por roteiristas preguiçosos. Grilo Falante que, diga-se de passagem, tem a sorte de ser vivido pelo excelente Ewan McGregor, ator lembrado como o Obi-Wan de Star Wars, mas com um repertório invejável de dublagens (Rodney em Robôs e Lumière no live-action de A Bela e a Fera são só dois exemplos). O ator escocês faz do personagem uma divertida referência ao estereótipo do artista atormentado.
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Não se furtando a exibir cacoetes como a obsessão com lemas de três palavras (“crer, obedecer e combater”) e a usurpação de símbolos nacionais (a bandeira italiana estendida em sacadas), o roteiro pinta o fascismo como a falência definitiva daquilo que nos torna humanos, por isso, o grito “vida longa à Arte!” e o momento em que uma criança enfrenta o pai (um oficial fascista), são a resposta dos roteiristas aos ideais de uma política que, além de temer o pensamento crítico e a empatia (especialidades da Arte), depende do medo e do ódio para se perpetuar. Nesse ponto, a sequência em que Pinóquio é achincalhado no interior de uma igreja dominada por fascistas é a síntese perfeita desse argumento, ecoando não apenas o que infelizmente ainda acontece nos dias de hoje, como também expondo a natureza peçonhenta da união entre religião e política. E não deixe de perceber o brilhantismo de Del Toro na apresentação de Mussolini, uma figura pequena, mas que fica ainda menor ao sair de um carro gigantesco.
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Entretanto, há espaço de sobra para o amor e a inocência, transmitidos, obviamente, por Pinóquio: contraponto à melancolia de Gepetto, o boneco vai além de um simples receptáculo de valores e comportamentos infantis, permitindo-se uma evolução acerca da adaptação ao meio hostil em que vive. Do nascimento expressionista (a movimentação trôpega acompanhada de cliques vindos de um corpo disforme) à vivacidade com que protagoniza os pontuais números musicais (mais a seguir), o Pinóquio de Del Toro é um tremendo aprimoramento em relação às versões anteriores, ganhando um arco dramático que potencializa suas principais virtudes como personagem.
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Conduzidas com maestria ao explorarem a mise-en-scène de forma orgânica e irreverente, as sequências musicais de Pinóquio combinam ótimas canções (especialmente “Ciao Papa”) e um olhar moderno que brinca com aqueles momentos de estranheza típicos dessas produções (perceba as frequentes interrupções quando o Grilo tenta cantar). Enquanto isso, a melodia melancólica de Alexandre Desplat (vencedor do Oscar por A Forma da Água), faz jus ao tom da narrativa, incorporando acordes tristes ao tema principal.
Em tempos de adaptações ipsis litteris engessadas pelo medo de contrariar tendências nostálgicas, como é bom ter um realizador imaginativo e corajoso como Guillermo Del Toro, cuja obra também merece aplausos pela proeza de soar singela mesmo transmitindo uma mensagem tão poderosa e repleta de significados. Poucos meses depois de a Disney fracassar com a adaptação de seu próprio clássico, Pinóquio por Guillermo Del Toro chega aos assinantes da Netflix posicionando-se facilmente como a melhor versão live-action já produzida.
NOTA 8,5