Mostra de SP 2023 | "Fremont" retrata com simplicidade a culpa do sobrevivente
Atualizado: 22 de nov. de 2023
Após um longo trabalho como tradutora para as tropas estadunidenses (função que desempenhou exclusivamente pelo dinheiro) em Cabul, a afegã Donya consegue o cobiçado visto americano, mas sua mudança para a Terra das Oportunidades acontece por um motivo bem mais amargo do que ela imaginava. As ameaças do Talibã por “ajudar o inimigo” são o estopim que faltava para que ela finalmente deixasse sua pátria, mas fugir para o país norte-americano nunca foi realmente seu sonho “poderia ser qualquer lugar, eu só não queria continuar vivendo no Afeganistão”, ela confessa em certo momento.
Uma vez em solo americano, ela se estabelece numa comunidade de refugiados afegãos na cidade californiana que dá nome ao filme. Sozinha e num lugar estranho, ela tenta se habituar à nova rotina, que inclui um trabalho modesto, mas digno em uma pequena fábrica de biscoitos da sorte em São Francisco. O local, inclusive, funciona como um microcosmo repleto de humanidade, com funcionárias sonhadoras (uma delas almeja construir uma piscina comunitária) defendendo o pedaço que conquistaram do sonho americano. Mesmo assim, Donya permanece calada, com a expressão fechada e sem conseguir dormir à noite. Por quê?
O motivo, apesar de conhecido, pouco interessa a ela, que só aceita procurar um terapeuta a fim de conseguir comprimidos para dormir. Nas conversas com o tal Dr. Anthony (Gregg Turkington), ela dá pistas sobre o passado sofrido em sua terra-natal e por mais que se esquive de perguntas mais pessoais, é justamente lá que se encontram as respostas que ela precisa dar. Sofrendo da chamada “culpa do sobrevivente”, Donya não se sente merecedora da vida que tem, sabendo que sua família continua à mercê de um regime terrorista. Isso a impede de ter paz, algo tão significativo que meras pílulas jamais serão responsáveis por prover. “Você pensa muito na hora de dormir?”, questiona o psiquiatra. “Não tenho tempo para ficar pensando”, ela responde, mentindo descaradamente quando tudo que ela faz é... pensar.
Conduzido pelo iraniano Babak Jalali (indicado ao BAFTA de melhor curta em 2006), Fremont é uma história cuja potência dramática reside nos detalhes. Também autor do roteiro, o estilo de Jalali é marcado por diálogos aparentemente corriqueiros, mas que ganham relevância graças às inflexões com que são proferidos. As nuances não repousam em sequências grandiosas ou rompantes emocionais. Até o humor, quando irrompe, é eficaz especialmente pela surpresa. Nesses momentos, aliás, Fremont parece saído diretamente da filmografia de Jim Jarmusch, outro adepto da fotografia cinzenta para contar histórias contidas.
A maior força desta produção, que injustamente passou despercebida pelo Festival de Sundance, no entanto, não é proveniente de seu realizador, mas sim de sua protagonista, a também refugiada afegã Anaita Wali Zada. Estreante, a atriz se esforça ao máximo para manter a expressividade de Donya no mínimo, como se estivesse num elenco dirigido por Aki Kaurismäki, mas passagens delicadas, como aquela em que ouve uma colega de trabalho cantar, são poderosas demais para o autocontrole da imigrante. Em outro momento inspirado, quando o Dr. Anthony se emociona ao ler um trecho de Caninos Brancos (provando que Turkington merecia uma carreira melhor), a reação de Donya é reveladora.
Espécie de continuação espiritual do ótimo O Pacto, obra lançada no primeiro semestre e em que o britânico Guy Ritchie também joga luz sobre o drama vivido pelos intérpretes afegãos que aceitaram trabalhar para as forças armadas estadunidenses, Fremont ainda guarda uma participação especial marcante de Jeremy Allen White (sim, o chef da série The Bear) para os minutos finais, encerrando a projeção de um projeto que talvez seja erroneamente encarado como um filme menor, quando deveria ser exaltado precisamente por alcançar grandes feitos fazendo o simples.
NOTA 7,5
Filme intenso e muito simples que conta com a interpretação maravilhosa da Anaita. Somente os grandes artistas conseguem fazer filmes simples e tão marcantes onde tudo é dito sem precisar de cor nem palavra. Aliás onde a ausência de cor, de emoção e de palavra é que “fala”.
Espetacular. Ótimo