'Misericórdia', a nova e inclassificável esfinge fílmica de Alain Guiraudie
Mais conhecido pelo seu trabalho no singular Um Estranho no Lago (2013), a obra do autor francês Alain Guiraudie é escorregadia quando tentamos classificá-la, um costume inerente aos tempos em que vivemos. Há um fascínio quase doentio em colar rótulos no que quer que seja, pois tudo, supostamente, deve ser decodificado e caber perfeitamente numa caixa, pronta para o escrutínio público abrí-la. Não há mal algum em investigar gêneros, prática advinda da Literatura, mas é muito mais fácil quando nos limitamos a separar os filmes entre bons e ruins, sem a necessidade de enquadrá-los num padrão. Misericórdia nos dificultará até nessa tarefa, pois é, em última instância uma história camaleônica como seu protagonista, mutável em vários níveis, mas o desafio de apreciá-lo com a mente aberta e livre de pré-conceitos será recompensado.
A primeira sequência, gravada no parque nacional de Cévennes, situado no montanhoso sudoeste francês, é uma tomada subjetiva, com a câmera posicionada na frente de um carro. Vemos todo o trajeto percorrido, mas pelos olhos do misterioso motorista enquanto os créditos iniciais dividem a tela com a estrada sinuosa e pedregosa. Essa longa passagem termina revelando Jérémie (Félix Kysyl, em sua melhor forma), chegando de Toulouse a uma pequena e afastada comuna para velar o corpo de Jean Pierre, padeiro local e seu ex-chefe. Voltando após anos de afastamento na cidade grande, Jérémie mostra-se fascinado desde o início pela paisagem bucólica do lugar, tanto que não hesita em fazer longas caminhadas pela opressora floresta que entremeia o vilarejo.
Logo descobrimos que o sujeito é um velho conhecido de praticamente todos os parcos habitantes, não sendo exatamente popular, especialmente com Vincent (Jean-Baptiste Durand), amigo de infância que agora nutre nada além de ranço, opondo-se, por exemplo, à decisão da própria mãe em hospedá-lo. Vincent está certo de que o ex-amigo está na área para envolver-se romanticamente com ela. Tolice. Será? Martina (Catherine Frot, ainda bela), a elegante senhora recém-enviuvada, acredita piamente que Jérémie nutria sentimentos por seu falecido cônjuge. Besteira. O protagonista, impulsionado pelo álcool, deixa escapar um flerte com Walter (David Ayala), rechonchudo parceiro de bebedeiras de Vincent. Será esse forasteiro um sedutor prestes a abalar as estruturas morais daquele diminuto círculo social? Mais informações e a experiência tenderá a perder tração.
A referência de Teorema (1968) fica grande demais para ser ignorada, mas Guiraudie não se furta de adicionar seu toque especial, alternando humor e rubor em situações cada vez mais sombrias (sobretudo quando um padre entra em cena), culminando num assassinato que joga um véu hitchcockiano sobre a trama, até o momento chabroliana, conduzida pelo diretor indicado à Queer Palm no Festival de Cannes do ano passado.
Através da figura esfíngica de Jérémie, o diretor/roteirista pode discorrer sobre temas mais filosóficos como culpa, religião e redenção, sem escantear o subtexto psicossexual tão presente em sua filmografia. E Félix Kysyl ajuda a alimentar essa aura esfíngica, transformando o protagonista num ponto disruptivo ambulante, tamanha a imprevisibilidade de seus atos. É como se suas ações, até as mais prosaicas, estivessem fadadas a causar as mais calamitosas consequências. Isso, claro, pode ser fruto de um risco calculado, puro cinismo ou, vá lá, obra do acaso.
Caso tivesse saído da pena de um realizador menos dotado, esse metafórico objeto estranho poderia soar como um artifício dramático, um fim para justificar um meio, escancarando-se como um instrumento de roteiro concebido para colocar trama e subtramas em movimento. Nas mãos hábeis e ágeis de Guiraudie, revela-se uma peça intrigante e estranhamente irresistível, posto a serviço de uma história com muito mais a dizer do que parece, mas que é melhor servida com paciência e disposição suficientes para buscar seus significados por conta própria.
NOTA 8