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Foto do escritorGuilherme Cândido

Mia Goth eleva o patamar de "Pearl"


Espécie de porn-slasher, o debochado X – A Marca da Morte chegou aos cinemas em 2022 dividindo o público ao tecer uma crítica contundente da hipocrisia do conservadorismo religioso sem perder a oportunidade de ironizar o sonho americano. O resultado, ainda que irregular no campo do slasher, foi uma experiência surpreendentemente divertida não apenas pelo teor satírico da narrativa e suas referências a O Massacre da Serra Elétrica, mas também por se beneficiar da semiótica a fim de expandir o escopo de seu discurso, versando sobre liberdade, puritanismo e até a libido na terceira idade (!). Interpretando simultaneamente a “final girl” Maxine e a vilã decrépita Pearl, Mia Goth revelou uma versatilidade que seria fundamental nesta continuação que, convenhamos, nem esperávamos (ou pedimos). Pois Pearl, lançado nos Estados Unidos poucos meses após X, consolidou a vocação de Goth para o horror. Enfim estreando nos cinemas brasileiros nesse final de semana, Pearl serve como a história de origem da personagem-título, que aterrorizou a jovem equipe de filmagem no longa anterior.

O ano é 1918 e a Guerra começa a arrefecer, mas a esperança é substituída pela apreensão graças à pandemia que assola o mundo, com a Gripe Espanhola ceifando milhões de vidas. Nesse contexto está Pearl (Mia Goth), vivendo com seus pais no meio de uma isolada zona rural estadunidense. Obrigada pela mãe (Tandi Wright, do bom Amor e Monstros) a cumprir suas tarefas domésticas, ela se imagina um dia largando essa vida que julga não ser a que merece. Jovem e repleta de energia, ela se sente limitada, permitindo-se escapar da rotina esporadicamente para ir ao cinema, alimentando o sonho de tornar-se uma estrela de Hollywood. Sua mãe, por outro lado, não vê outro futuro senão o de trabalhar diligentemente para manter a família. Austera como uma clássica madrasta da Disney, ela conduz o lar praticamente sozinha depois que o marido contraiu a Gripe Espanhola. Quando uma trupe itinerante de dançarinas chega à cidade promovendo audições, Pearl vê como sua grande chance de mudar de vida e fará qualquer coisa para conseguir a vaga. E como já vimos em X – A Marca da Morte, quando ela diz “qualquer coisa”, ela não está exagerando.

Contando com uma fotografia supersaturada que reflete as fantasias de Pearl, a produção adota um tom quase satírico ao fazer inúmeras referências a O Mágico de Oz. Seja ao vestir Pearl com um figurino semelhante ao de Dorothy ou ao investir numa sequência perturbadora na qual a protagonista extravasa sua libido com um espantalho, ainda há o bônus de a história se passar no interior, faltando apenas alguém dizer que já não está mais no Kansas. Assim, o diretor Ti West aproveita a atmosfera quase lúdica para desenvolver pacientemente sua protagonista, aproveitando o tom ameno para potencializar o choque de suas atitudes.

Seguindo a tradição de começar a matança com pequenos animais, compreendemos a transição de Pearl, que vai de uma menina ingênua do campo a uma serial killer fria e inconsequente. Nesse ponto, o roteiro também escrito por West em parceria com a própria protagonista Mia Goth, merece elogios por apontar a repressão e a solidão como principais sintomas da psicopatia de Pearl, absorvendo também o clichê da influência negativa da mãe (Carrie – A Estranha, Sexta-Feira 13 e O Massacre da Serra Elétrica são devidamente representados).

Divertindo-se ao resgatar elementos que foram importantes em seu filme anterior, como um forcado e um bem alimentado jacaré, West sai da seara do slasher (ao menos nos dois primeiros atos) para conduzir um verdadeiro estudo de personagem, beneficiando-se imensamente da presença de Mia Goth. Hábil ao transmitir a aura infantilizada de Pearl, Goth impressiona por ser capaz de construir uma personagem quebrada emocionalmente, surgindo vulnerável na primeira metade da projeção apenas para utilizar essa mesma composição com o intuito de evocar medo. Repare como o mesmo olhar dolorido que ela lança na maior parte do tempo, ganha um significado absolutamente aterrorizante no terceiro ato, fazendo com que seu sofrimento chegue ao espectador como um claro sinal de que ela irromperá em violência a qualquer momento. E o que dizer do largo sorriso que abre em seu plano final?

Anacrônico ao apresentar um filme sonorizado oito anos antes de Don Juan se tornar o primeiro filme da História a mixar som e música, o roteiro também derrapa nos diálogos artificiais (praticamente todos envolvendo a cunhada de Pearl), esquecendo-se circunstancialmente de seu contexto pandêmico (as máscaras nem sempre são necessárias, pelo visto), o filme também se cerca de signos. Alguns óbvios (o porco apodrecido, o paralelo entre o pai em X e a mãe em Pearl), outros nem tanto (a trilha emulando os primórdios do Cinema, as semelhanças com a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses), os simbolismos de Pearl também servem, majoritariamente para disfarçarem sua natureza derivativa, quando percebemos que tudo o que a produção tem a oferecer em termos de gênero e estilo são ecos de obras superiores.

Embora X – A Marca da Morte conte com um discurso mais afiado e certeiro, Pearl também contém sua parcela de acertos e os embates entre Pearl e sua mãe, questionando até que ponto a perseguição de um sonho pode ser vista como um ato de egoísmo ou o monólogo que humaniza a dureza da matriarca e desmonta a retórica de Pearl, só rivalizam com o longo desabafo que acontece no terceiro ato, representando o ponto alto da carreira de Mia Goth.

Mergulhando de cabeça no slasher em seu ato final ao abraçar a violência cartunesca com mais confiança do que X – A Marca da Morte, Pearl pode soar melhor estruturado e transmitir uma segurança maior por parte de seu diretor, mas a disparidade entre os discursos é tremendamente desfavorável em relação a esta segunda entrada no universo concebido por Ti West. Entretanto, a força da interpretação de Mia Goth tende a equilibrar a balança.


NOTA 7


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