Majestoso, 'O Brutalista' é uma proeza que reforça o Cinema como Arte
- Guilherme Cândido
- 28 de fev.
- 5 min de leitura

Quem olha a ficha técnica de O Brutalista, indicado em dez categorias do Oscar 2025, tende a pensar se tratar de um longa-metragem do século passado, ainda mais no mundo capitalista em que vivemos. Afinal, como viabilizar um filme com mais de 3 horas e 20 minutos de duração sem a presença de super-heróis em sua narrativa, um grande estúdio/marca por trás ou o respaldo de um cineasta consagrado? Em tempos políticos mais acalorados, é possível ir além: por que o público iria ao cinema para ver a epopeia de um imigrante judeu sofrendo nas mãos da elite enquanto tenta viver o sonho americano? Felizmente, O Brutalista está chegando às telas graças à perseverança e ao empenho do diretor/roteirista Brady Corbet, que ousou investir neste monumento anacrônico sem vislumbrar retorno financeiro. Como é possível?

Para retomar esse pensamento nostálgico de quando os filmes ainda não eram majoritariamente encarados como uma commodities, Corbet também resgatou o VistaVision para dar vazão à apoteose visual de sua criação, dificultando ainda mais a empreitada. Após muito batalhar e tirar leite de pedra com o orçamento irrisório que teve à disposição, o norte-americano finalmente nos disponibiliza sua obra-prima. Não que sua carreira seja vasta ou difícil de escolher um ponto alto – seus dois longas-metragens anteriores são A Infância de um Líder (2015) e o irregular Vox Lux: O Preço da Fama (2018), desenvolvidos em paralelo com seu trabalho como ator (cujo projeto mais notório foi o remake estadunidense de Violência Gratuita). Brady Corbet tem a perfeita noção da dimensão de sua criação, seja como empreendimento cinematográfico ou mesmo como narrativa, talvez por isso, sua coragem e/ou ousadia, esteja sendo confundida com presunção.

A história tem início em 1947, quando László Toth (Adrien Brody, conhecido pelos mais novos como o Luca Changretta da série Peaky Blinders), um arquiteto brutalista judeu, é obrigado a abandonar a família e fugir de sua terra-natal, ainda sob a atmosfera densa do pós-Guerra. Seu destino é a “América” (eles se apoderaram do continente, afinal), uma nação construída com os esforços de imigrantes europeus como ele, pronta para se tornar a capital do mundo moderno. Em dificuldades para se estabilizar, o destino de Toth acaba se cruzando com o de Harrison Van Buren (Guy Pearce, de Assassino Sem Rastro) um misterioso magnata que enxerga o forasteiro como a pessoa perfeita para tirar do papel um ambicioso projeto arquitetônico. Além da compensação financeira, Van Buren promete trazer a família de Toth, que mais cedo ou mais tarde descobrirá o preço a se pagar pelo sonho americano.

A primeira coisa que vemos através dos olhos do protagonista quando este desembarca em Nova York é a imagem da Estátua da Liberdade, mas focada de cabeça para baixo. Trata-se do primeiro de muitos simbolismos ajambrados por Brady Corbet e não à toa. Os Estados Unidos vistos aqui não são exatamente como costuma-se ouvir por aí e o próprio tratamento recebido por László confirma isso. Inicialmente, é relegado ao trabalho braçal até que seu talento finalmente é notado. Guy Pearce não encarna apenas o personagem Van Buren, mas também personifica e sintetiza a elite estadunidense. Por trás do tratamento cortês inicial e da generosidade subsequente, se esconde alguém interessado apenas na contrapartida financeira que aquele “investimento” trará. Como um imigrante, László é visto pelo “americano” não como um ser humano, mas como uma ferramenta funcional capaz de executar seus planos e, claro, aumentar sua riqueza.

A sacada do texto assinado por Corbet em parceria com a norueguesa Mona Fastvold é usar a natureza calculista e ardilosa de Van Buren para apontar a hipocrisia da minoria abastada que parasita Nova York, cujos membros são, em sua maioria, descendentes diretos ou indiretos de imigrantes; italianos, poloneses, irlandeses, “forasteiros” que chegaram à terra das oportunidades em busca de uma nova vida. Mas a quantidade de dinheiro na conta bancária costuma ser desproporcional à memória.

No entanto, em seus quase 220 minutos de projeção, O Brutalista provoca outras discussões, aproveitando a duração libertadora para desenvolver cada uma delas com a devida profundidade. O que acaba destoando dessa fábula agridoce sobre uma vítima do Holocausto sendo explorada para enriquecer ainda mais a aristocracia, é a dependência química de László, um componente manuseado com uma frequência tão irregular, que por vezes soa como um artifício do roteiro esporadicamente esquecido por seus escritores.

Outro ponto dissonante é a presença de Felicity Jones, atriz britânica acostumada a desperdiçar oportunidades, sendo as maiores representadas por A Teoria de Tudo (2015), pelo qual inexplicavelmente foi indicada ao Oscar, e Rogue One: Uma História Star Wars (2016). Dez anos se passaram e ela volta a ser nomeada pela Academia com a mesma languidez e o mesmo olhar inexpressivo de sempre. A seu favor, é possível argumentar a respeito da condição de sua personagem, mas fica difícil formular uma defesa quando falta energia até mesmo para... expressar falta de energia. E sua cena-chave, no clímax, torna tudo ainda mais embaraçoso.

Felizmente, temos Adrien Brody para compensar. Mais jovem a ganhar o Oscar de Melhor Ator (aos 29 anos por O Pianista, de 2003), Brody compõe László como uma figura melancólica, mas que não se define por seu tormento. Assim como a Lydia Tár de Cate Blanchett, László Toth é daqueles personagens tão bem escritos e interpretados, que fazem seus filmes parecerem cinebiografias. Há, inclusive um arco dramático bem delineado, no qual vemos o personagem ser tragado pelas próprias (inocentes) ambições. László, por razões outras, é quem mais anseia por ver o empreendimento pronto, demonstrando sentimentos que o cegam para a verdade. Como a classe média brasileira que defende os ricos, o arquiteto não percebe que é oprimido. Cai na conversa fiada de quem brada tratá-lo como igual. Mais do que dar com uma mão e tirar com a outra, a mesma criatura que oferece ajuda, é aquela que fará de tudo para impedir sua ascensão. Nenhuma sequência é mais clara ao ilustrar esse argumento do que aquela em que Van Buren humilha Toth da forma mais primitiva possível dentro de um escuro corredor de concreto.

Aliás, até o concreto é usado como símbolo, seja para traçar um paralelo com o passado do protagonista como prisioneiro dos nazistas, ou para mostrar como Van Buren, de fato, o enxerga como inferior (a passagem dele explicando sua preferência pela madeira, por si só, já mereceria indicações a prêmios). E por falar em explicação, Corbet e Fastvold merecem aplausos pela proeza de escrever uma história tão extensa e carregada sem recorrer a exposições e didatismos (consigo imaginar perfeitamente um grande estúdio exigindo uma narração em off para ‘facilitar’ a compreensão do espectador). Sem menosprezar nossa inteligência, o roteiro assimila subtexto e nuances com a mesma dedicação oferecida aos elementos mais proeminentes.

E é impossível mencionar proeminência sem citar os predicados técnicos da produção, fazendo-se a ressalva de que muito se falou sobre a utilização de inteligência artificial para ‘complementar’ cenas e até mesmo atuações (sotaques foram refinados com a ajuda da tecnologia). A começar pelos cenários, tudo é grandiloquente em O Brutalista, mas sem delírios de grandeza, visto que ambição, ganância e ostentação fazem parte do expediente narrativo. Assim como a fotografia suntuosa de Lol Crawley (dos fracos Ruído Branco e The Humans), combinando azul e cinza numa paleta que funciona principalmente em tomadas noturnas (cortesia do VistaVision), a trilha sonora de Daniel Blumberg, pré-destinado ao topo de Hollywood, é o componente técnico que mais se aproxima da grandiosidade almejada pelo diretor Brady Corbet, ecoando pontualmente para sublinhar os temas discutidos.

Montado pelo húngaro Dávid Jancsó (Fúria Primitiva) com a mesma eficácia constatada em praticamente todos os outros departamentos, O Brutalista ainda apresenta o desafio extra de ter que manter o ritmo durante uma história atipicamente longa, dividida em capítulos e com direito a uma intermissão. Um épico tão ressonante e bem realizado que em mais de um momento trouxe à minha memória Sangue Negro (2007), obra-prima de Paul Thomas Anderson, com o adicional de representar não só um impressionante feito cinematográfico, mas um atestado inconteste de que o bom e velho Cinema vive.
NOTA 9,5