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Foto do escritorGuilherme Cândido

Longe do lugar-comum, "Até os Ossos" vai além do romance adolescente


Conforme os anos se passaram, meu relacionamento com os trailers (não os veículos, mas os vídeos produzidos para instigaram o público) mudou drasticamente. Numa época em que ainda não desfrutávamos do advento das Smart TVs, já fui capaz de gravar discos contendo apenas aquelas peças publicitárias, que ficavam ainda mais espetaculares quando reproduzidas através de um sistema de home theater. Porém, com o tempo, essas pequenas edições passaram a revelar cada vez mais informações, estragando surpresas dos filmes que promoviam. O primeiro exemplo que vem à mente, O Exterminador do Futuro 5: Gênesis (de 2015) é, possivelmente, também o mais chocante, pois chegou ao ponto de mostrar a grande revelação da trama, o que enfureceu os espectadores na época, especialmente os fãs da franquia.


Hoje, sete anos depois, já podemos dizer que se tratava do início de uma tendência. O que era para ser um simples vislumbre, feito sob medida para despertar o interesse de quem assiste, tornou-se algo mais próximo de um resumo da obra, contando detalhes que seriam preciosos caso descobertos durante a experiência. E “experiência” é a palavra-chave aqui.


Certa vez, vi uma entrevista do cineasta britânico Christopher Nolan explicando sobre a fama que adquiriu por manter em sigilo os detalhes de seus filmes antes de serem lançados nos cinemas. Ele disse que durante a adolescência se deu conta de que quanto menos soubesse sobre um filme, maiores seriam as chances de ser surpreendido no cinema, o que resultaria numa experiência potencialmente superior e basta dar uma olhada rápida em sua filmografia para constatar a solidez de seu argumento, pois boa parte do êxito de obras como A Origem, Interestelar e a trilogia d’O Cavaleiro das Trevas, está diretamente ligada aos mistérios que conseguiu preservar.

Diante também do fato de que deixei de fazer parte do público-alvo dos trailers (partindo do pressuposto de que considero assistir a qualquer filme, não necessitando de outros motivos além do profissional), hoje opto por não vê-los, resguardando minha experiência, já que filmes recentes como Convite Maldito, A Queda, Não! Não Olhe! e Doutor Estranho no Multiverso da Loucura comprovam a vocação que essas peças publicitárias possuem de entregarem informações demais. Para ser justo, reconheço que tais vídeos não são produzidos pelos estúdios, e sim por agências terceirizadas, além de geralmente sequer contarem com o envolvimento do diretor da obra que estão promovendo. Além disso, produções focadas na experiência, como Top Gun: Maverick e Avatar, normalmente são "à prova de trailers", passando ilesos pelo período de divulgação.


Tudo isso para dizer que quando fui à cabine de imprensa de Até os Ossos, tinha conhecimento apenas de alguns membros da equipe técnica e de dois atores do elenco principal, pois não li a sinopse e nem sabia se era um filme de gênero. Ainda bem, pois fui pego desprevenido logo com o primeiro plot point do roteiro, numa sequência que já era impactante por si só, mas que foi potencializada pelo meu total desconhecimento. E mesmo sabendo que esse momento supracitado está em pelo menos um dos trailers de Até os Ossos (logo nos primeiros segundos), torcerei para que você assim como eu, caro leitor, tenha mantido distância de qualquer peça publicitária do filme.


Dito isso, recomendo ler os próximos parágrafos apenas quem já assistiu ao filme e/ou aos trailers. Alerta de spoiler!


Baseado no romance de Camille DeAngelis, o roteiro de David Kajganich (da refilmagem de Suspiria) se passa em meados da década de 80, começando dando indícios de que será um coming of age convencional ao apresentar a jovem protagonista Maren (Taylor Russell, de Escape Room 2: Tensão Máxima) e suas desventuras escolares numa pacata cidade do estado de Virginia, onde vive com o pai (André Holland, de Moonlight). Até aí, nada incomum, mas é justamente quando Maren resolve ir a uma “festa do pijama” na casa de uma amiga que as coisas mudam bruscamente. Uma das garotas está pintando as unhas e resolve mostrar o resultado para a protagonista, que não hesita em dar uma violenta mordida em um dos dedos da moça, tentando devorá-lo. Todas gritam apavoradas e Maren volta correndo para casa, mas nem precisa se explicar para o pai, que ao vê-la ensanguentada já imagina o que aconteceu.

Trata-se de um prólogo conduzido com maestria pelo diretor italiano Luca Guadagnino (responsável pelo excepcional Me Chame Pelo Seu Nome). Repare como ele conduz a sequência mencionada anteriormente: A câmera mostra Maren e a amiga deitadas sob uma mesa de vidro, eliminando a profundidade de campo enquanto fecha o quadro nas duas. Maren está olhando fixo para a garota (distraída) antes de se aproximar para cheirá-la intensamente (com os olhos fechados). Mas o gesto, que poderia ser interpretado como algo que avançaria para uma investida amorosa, na verdade, antecipa um surpreendente gesto animalesco, ressaltado pelo desenho de som cru e a trilha sonora minimalista. Ouvir o dedo sendo mastigado só não é mais desconcertante do que vê-lo sair da boca de Maren quase sem pele, num momento grotesco que sintetiza o que está por vir e ganha uma rima com o título da produção, que surge logo em seguida.

A partir daí, Até os Ossos se transforma num road movie, com a garota tendo de mudar de estado sempre que sucumbe ao desejo por carne humana. E como bom road movie, a ela acaba se deparando com figuras marcantes pelo caminho, sendo a primeira delas Sully, vivido por Mark Rylance (vencedor do Oscar por Ponte dos Espiões) como o típico senhor de modos bondosos e fala claudicante que se especializou em interpretar. Farejando a garota há centenas de metros de distância, é ele quem apresenta o mundo dos “Devoradores” a Maren, ensinando-a lições valiosas sobre como aproveitar o faro, por exemplo, além de mostrar que há outros como eles.

Funcionando inicialmente como uma alegoria para a solidão, o longa muda de direção mais uma vez com a chegada de Lee (Timothée Chalamet, de Duna), um jovem de atitude rebelde que aceita ajudar Maren a sobreviver neste mundo recém-descoberto. Os dois acabam se envolvendo romanticamente e é aí que Até os Ossos oferece todas as ferramentas para o roteiro explorar a questão envolvendo o canibalismo. Kajganich até coloca um jovem gay na trajetória de Lee e Maren, mas o máximo que consegue extrair da situação é um raso debate ético sobre que tipo de pessoa deveria servir como vítima para o casal poder se alimentar.

Elemento comumente explorado em filmes de terror, o canibalismo aqui é retratado não como uma escolha, mas como uma necessidade. Maren não fica feliz ou satisfeita por ter de devorar pessoas, mas o faz para atender a um desejo mais forte do que ela. Lee entra em cena, então, como uma bússola moral, ainda que indiretamente. Mesmo jovem, ele encara os assassinatos que comete como algo natural, inerente à sua condição como um canibal que precisa matar para saciar-se. É através da escolha de suas vítimas que se separa da vilania, ao mesmo tempo servindo ao filme para suavizar o impacto das mortes.

Afinal, embora abrace o grotesco para ilustrar as sequências canibais (com direito a gore), Até os Ossos se esforça para justificá-las, como ao mostrar Sully indicando moribundos a Maren ou ao colocar Lee para devorar um homem logo após flagrá-lo maltratando uma mulher (e posteriormente sugerindo se tratar de um pervertido). Maren também questiona o modus operandi do amado momentos depois de o casal descobrir que uma vítima possuía família (“Como você ousa deixar isso tudo ainda mais difícil?” ele responde). A própria busca da moça pela mãe representa mais uma tentativa do roteiro de humanizar seus personagens, fornecendo pistas que, por outro lado, jamais apontam para respostas concretas.

Saindo-se admiravelmente ao combinar terror e romance, Luca Guadagnino, que já havia demonstrado boa mão para o gênero ao dirigir Suspíria – A Dança do Medo, revela uma segurança fundamental na condução da produção: Além da habilidade de mergulhar a narrativa numa atmosfera sinistra em determinados momentos (como aquele envolvendo a participação especial do sempre fascinante Michael Stuhlbarg, de A Forma da Água), ele aproveita a ótima fotografia do bielorrusso Arseni Khachaturan para construir momentos esmerados através das belas paisagens estadunidenses, algo que contrasta com os assustadores rompantes de violência que tomam de assalto a narrativa (o encontro de Maren e a mãe, por exemplo).

Em paralelo, a trilha sonora incidental de Trent Reznor e Atticus Ross (dupla que venceu seu segundo Oscar por Soul), com seus sintetizadores misturados a sibilos e ruídos graves, ajuda a criar o clima pretendido por Guadagnino, alternando entre passagens sensíveis e momentos tensos com a mesma eficácia. Além disso, Reznor e Ross também merecem elogios pela escolha das canções que embalam a trama, com destaque para a original (You Made It Feel Like) Home, composta e cantada pelo próprio duo e que serve para resumir com perfeição o relacionamento de Lee e Maren.

Longe da composição sensível que marcou seu Enio em Me Chame Pelo Seu Nome, Timothée Chalamet novamente oferece uma performance carismática, mas desta vez investindo num tom rebelde e até mesmo marrento que ganha uma explicação bem-humorada pelo roteiro (“é o único jeito de uma pessoa de 63 quilos se impor”). Escondendo uma trajetória sofrida por trás de uma máscara de frieza e distanciamento, Lee é um jovem aparentemente inabalável, e a sequência em que aparece conversando aos berros com Maren no interior de uma lanchonete reforçam a impressão que quer passar: a de que não liga para absolutamente nada. O próprio figurino de Lee ajuda a compor essa imagem, através de jeans rasgados e uma camisa dos Thundercats. Entretanto, ao contrário da supracitada obra-prima de Guadagnino, Chalamet tem poucas oportunidades para dar vazão ao seu talento, com apenas dois momentos dignos de nota, mas que empalidecem diante de atuações anteriores (e de possíveis concorrentes em premiações desta temporada).

Ao passo que o veterano Mark Rylance surpreende como o imprevisível Sully: inicialmente encarnado com a mesma ternura de papéis anteriores, Rylance aos poucos salpica indícios que fazem Maren e o espectador desconfiarem das intenções de seu personagem. Entrando em cena como um observador à distância, Sully passa de mentor generoso até um perseguidor obsessivo. E quando um sujeito, até então, pacato como Sully se entrega a palavrões para insultar Maren, é porque a coisa realmente ficou feia e seu disfarce foi pelos ares. Todavia, é mesmo em seus últimos momentos que Rylance brilha de verdade, ao exalar uma frieza ainda mais assustadora por ser pouco usual em sua carreira. Babando (literalmente), Rylance abraça a psicopatia de Sully e se apresenta como um justo candidato aos prêmios da temporada.

Tropeçando em pequenos e pontuais equívocos durante a narrativa (o personagem que esquece de usar as mãos para se libertar de uma sacola na cabeça, uma localização achada de forma estranhamente rápida num mapa, conveniências envolvendo a família de Lee e um desfecho piegas), Até os Ossos proporciona uma experiência singular ao espectador ao mesclar gêneros (terror e romance) e subgêneros (coming of age e road movie) para elaborar uma articulada metáfora sobre a solidão enquanto mostra personagens em busca de identidade. Trata-se de um filme distante daquela (antiga) realidade em que adaptações de livros Young Adult eram sinônimo de histórias que não conseguiam sair do lugar-comum.


Obs: Até os Ossos estreia dia 1º de Dezembro no Brasil


NOTA 8


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