"Jurado Nº 2" fecha com chave de ouro a carreira de Clint Eastwood
Ator, diretor, produtor, escritor e compositor. Um dos maiores símbolos dos Estados Unidos. Ícone do Cinema. Profissional de renome mundial e inquestionável (nem o Framboesa de Ouro ousou indicá-lo). Já foi cowboy, detetive, treinador de boxe, piloto, jornalista e até astronauta. Quatro vezes vencedor do Oscar, dentre onze indicações, além de um prêmio honorário. Homenageado nos festivais de Cannes e Veneza. Este é Clint Eastwood, artista versátil que fez fama estrelando alguns dos maiores faroestes já exibidos, mas que também marcou época em filmes policiais e chegou a arriscar (e acertar) também em dramas românticos. A persona durona, o olhar penetrante e a facilidade para proferir frases de efeito são algumas das marcas registradas deste patrimônio cinematográfico que pode estar se aposentando. Se tratando de gigantes como Eastwood, o fim nem sempre é definitivo (o animador japonês Hayao Miyazaki está aí para comprovar isso), mas seus 94 anos representam um forte argumento em prol do encerramento de uma carreira com mais de setenta filmes estrelados e outros quarenta e quatro como diretor.
Seu 45º e último filme (de acordo com o próprio californiano) estreou sem muito alarde nos Estados Unidos em poucos cinemas antes de chegar ao streaming. No Brasil, seus fãs sequer terão a oportunidade de se despedir do velho Clint apropriadamente (numa sala de projeção, logicamente), pois Jurado Nº 2 entra direto no mercado de aluguel online e sem qualquer divulgação, com lançamento no Max programado para o dia 20 desse mês. Um desrespeito que já seria difícil de compreender caso o longa-metragem fosse ruim e o fato de fazer jus à filmografia do cineasta veterano torna tudo ainda mais embaraçoso.
E nada mais apropriado para o canto do cisne do que um bom e velho filme de tribunal, feito da forma mais tradicional possível, com o jovem Nicholas Hoult (de X-Men, Mad Max e, mais recentemente, O Menu e Renfield) encarnando Justin Kemp, um pacato repórter subitamente convocado para integrar o júri do julgamento de um suposto feminicídio. Prestes a ser pai, ele até chega a atender o pedido da esposa (a ótima Zoey Deutch, de Influencer de Mentira) ao solicitar dispensa, mas a juíza nega. Kemp, para o próprio infortúnio, representa o jurado ideal perante a corte, mas o que era para ser uma tarefa meramente burocrática e enfadonha ganha contornos tensos quando o sujeito percebe que tem conexões perturbadoras com o caso. Dar mais detalhes estragaria a experiência de uma produção que não faz o menor esforço para soar surpreendente e isso passa longe de ser um demérito.
Eastwood é objetivo ao transpor às telas o enxuto roteiro do estreante Jonathan A. Abrams, começando a projeção sem desperdiçar um segundo sequer. Pelo rádio, contextualiza a trama e com um simples movimento de câmera, revela a identidade, o cargo e as motivações da personagem de Toni Collette (a eterna mãe de O Sexto Sentido), por exemplo. Faith Killebrew é a responsável por tentar levar James Sythe (Gabriel Basso, o competente astro da série O Agente Noturno, da Netflix) para a cadeia sob a acusação de ter assassinado a namorada após uma discussão num bar. Killebrew também está concorrendo à promotoria e, por isso, chega a ser chamada de “política” pelo advogado de defesa interpretado pelo sempre eficiente Chris Messina (Air), o tipo de ator que seria capaz de transmitir caráter até interpretando uma árvore.
Dessa forma, recebemos todas as informações necessárias em poucos minutos, o que permite a Eastwood se concentrar na saborosa dinâmica entre os advogados, mas ele não deixa de exibir o mesmo brilhantismo presente em boa parte de sua carreira, como fica claro em detalhes discretíssimos, como ao mostrar (ao fundo) uma das juradas se gabando por soltar a expressão “viés de confirmação” durante o debate pós-julgamento ou numa excepcional cena protagonizada pela Killebrew de Toni Colette: após visitar alguém para um interrogatório, ela deixa o local e caminha para o carro enquanto permanece no canto do quadro, com a porta da casa em destaque ao centro. É como se o diretor quisesse mostrar que a tal porta abrirá a qualquer momento, causando uma expectativa compartilhada por Killebrew, que não resiste ao olhar para trás, numa brincadeira quase metalinguística que escancara a intenção de provocar suspense.
Como se não bastasse o elenco principal coeso e repleto de intérpretes talentosos, Jurado Nº 2 ainda traz o vencedor do Oscar J.K. Simmons (o sádico professor de música em Whiplash) numa participação especial como um detetive aposentado. Apesar de Nicholas Hoult fazer um bom trabalho ao se beneficiar do rosto angelical e inocente que possui, convencendo como o pai de família que deve motivar a nossa torcida, é mesmo Toni Colette quem acaba por monopolizar os holofotes, alcançando todas as nuances demandadas por Faith Killebrew. Claro que a tarefa da australiana é facilitada pela presença de Chris Messina, com quem constrói uma química fundamental para o envolvimento do espectador com o típico espetáculo performático dos advogados.
E a narrativa vai além, merecendo elogios não apenas pelas críticas ferrenhas que tece à polícia, pintando-a como uma instituição repleta de profissionais preguiçosos e preocupados apenas em cumprirem suas funções às pressas para chegarem em casa o mais rápido possível (“só querem montar um caso e seguirem em frente”), mas principalmente por se dar ao luxo de permitir o contraponto (“eles trabalham dez vezes mais e com um porcento do orçamento da promotoria”). Essa estratégia “morde e assopra” pode parecer simplória, mas funciona e traz uma credibilidade muito bem-vinda para uma história cujo cerne é construído sobre o mesmo firmamento.
É uma pena que todo esse circo bem montado e conduzido seja incendiado por um terceiro ato ao mesmo tempo frágil e presunçoso. Além de constranger ao mostrar um faxineiro mandando um “parece que a tempestade passou...” para um personagem que acabou de se livrar de uma encrenca, o roteirista tropeça ao encaminhar a trama para seu desfecho. Mais ridículo do que ver alguém jogar “marido de Allison Crewson” no Google, é ver que os resultados da pesquisa realmente trazem TUDO do dito-cujo (até o LinkedIn!). Outro descuido de Abrams é o momento em que Killebrew é tomada por um flashback na hora de tentar se lembrar de algo importante, com direito a vozes na cabeça (para situar o espectador, é claro).
Apesar disso tudo, nada supera a covardia com que Abrams e Eastwood resolvem encerrar a narrativa, reservando os minutos finais para uma sequência que trai tanto a objetividade, quanto a honestidade que marcaram a projeção até então, mesmo que uma ingênua conversa num banco de praça tenha dado indícios das intenções da dupla.
Mesmo assim, os dois primeiros atos são sólidos o bastante para fazerem de Jurado Nº 2 uma saideira satisfatória para Clint Eastwood, promovendo uma discussão sobre “verdade” e “justiça” que deverá permanecer na cabeça de cada um após os créditos começarem a rolar.
NOTA 7,5