"Infestação" mistura tensão com bom desenvolvimento de personagens
*Filme visto originalmente durante o Festival do Rio 2024
O terror francês Vermines (no original) chega com atraso aos cinemas brasileiros, mais de um ano após sua elogiada première na edição passada de Veneza. Os desavisados que passarem os olhos pelo pôster da produção, podem imaginar mais um filme B derivado de Aracnofobia (1990) e até estão certos quanto à óbvia inspiração do diretor estreante Sébastien Vaniček, mas serão surpreendidos por uma narrativa talhada para agradar aos fãs de filmes de criaturas e atrair novos.
No meio de um deserto do Oriente Médio, um grupo de homens viaja de carro até um local repleto de pedras. Um deles desce e, depois de muito vasculhar, encontra um buraco habilmente escondido pela natureza e que logo se revelará a casa das estrelas da produção. Provocadas por uma fumaça amarela direcionada para dentro do covil, inúmeras aranhas dão o ar da graça, fazendo a alegria de uns (ávidos pela captura de alguns espécimes) e provocando o desespero de um pobre desafortunado, impiedosamente atacado, mas cuja eventual morte não é em vão, pois serve como uma amostra do que nos aguarda.
Entra em cena o jovem Kaleb (Theo Cristine), procurando por algo especial para presentear alguém. Ele convence o dono do estabelecimento – espirituoso ao reivindicar o nome “Ali Express” – a buscar brincos de qualidade nos fundos, onde guarda seu material exclusivo. Ao que parece, o simpático Ali recebe mercadoria contrabandeada, desde joias e artefatos raros até... animais exóticos. É claro que Kaleb “se interessa por tudo” (como o próprio diz) e não demora até fazer uma proposta ao vendedor por uma aranha aparentemente debilitada (maldito jet lag!). Nosso bravo herói batiza a criatura de Rihanna, colocando-a numa caixa de sapato com a promessa de arranjar um lar melhor em breve. O furo na caixa, negligenciado pelo protagonista, é um convite para a diva pop de sucessos como “Umbrella” e “Only Girl” desbravar o mundo e não é preciso ter visto muitos filmes de terror para saber o que isso significa.
Vaniček, recentemente contratado para comandar um vindouro capítulo da franquia Evil Dead, mostra que tem algumas boas cartas na manga e não somente como diretor, pois o roteiro escrito ao lado de Florent Bernard destrincha elementos normalmente desprezados pelo gênero. Kaleb, por exemplo, é o típico sujeito que gosta de tudo certinho (o famoso “caxias”), mas não deixa de exibir a inconsequência inerente à juventude. Essa contradição enriquece a composição de Theo Cristine, irritante, mas merecedor de nossa torcida justamente por soar falho, humano. Seus amigos são igualmente complexos, cada um ostentando características marcantes e nutrindo laços improváveis que aos poucos se descortinam ao público.
Quando o divertido Jordy interpretado pelo ótimo Finnegan Oldfield (destaque também de Corta!), reclama de dores na perna, mal imaginamos que seu ferimento se deve a um evento diretamente conectado a outro personagem. Da mesma forma, a relação tensionada entre Kaleb e a irmã possui muito mais camadas do que parece. E também há um bom motivo para o protagonista se recusar a jurar, mas você só descobrirá nos momentos finais do filme.
Essa eficácia na construção da teia dramática (desculpe, não resisti) de nada adiantaria caso o horror não fosse igualmente competente. Infestação, vale dizer, não é dos mais originais (tropos de Ataque ao Prédio, Quarentena e Predadores Assassinos são facilmente reconhecíveis), mas o uso de alguns clichês e jump scares previsíveis se contrapõem a uma atmosfera de inquietude que atravessa a narrativa de forma cortante e ininterrupta. O medo primitivo e universal do que se esconde nas sombras faz o trabalho de Sébastien Vaniček parecer fácil, mas é preciso alguma habilidade e boas referências para envolver o espectador do início ao fim. As homenagens à Alien e enquadramentos sutis e poderosos como o espelho quebrado (lembrando uma teia de aranha) de um morador revelam o potencial do cineasta.
Menos sutil é a crítica social desenvolvida pelo script e antecipada pelo título original em francês, com a palavra “Vermes” servindo à alegoria política desgastada, mas bem ajambrada. Nesse ponto, a arquitetura pós-moderna do complexo residencial Arènes de Picasso mostra que também há beleza nos subúrbios (lar de 80% dos habitantes da Cidade Luz), mesmo que a força policial tenha dificuldades para enxergar, agindo como o braço opressor tão denunciado pelo Cinema Contemporâneo. Outra alfinetada é representada pelo personagem branco que sempre liga os negros às drogas.
Infelizmente, o roteiro também reproduz alguns dos piores cacoetes da cartilha de filmes modernos de terror, como a irritante mania de verbalizar o que já está claro (o quarto de Kaleb, por si só, conta praticamente tudo o que precisamos saber de sua história) e ainda comete o pecado de fazer personagens tão multifacetados tomarem decisões tão estúpidas. A péssima ideia de atirar um coquetel molotov em bichos já neutralizados não deveria servir como subterfúgio para uma sequência de perseguição (por melhor que seja), assim como um personagem inteligente jamais jogaria fora uma mochila valiosíssima (acertar uma aranha no meio de outras dezenas?).
Deslizes que não chegam a comprometer ou invalidar essa mistura robusta e cinética de bons filmes concentrados num só ambiente, pois Infestação é o tipo de narrativa que atrai pela promessa do choque, nos mantém pelos arrepios e se sustenta pelo diferencial de seu apego aos detalhes.
NOTA 7,5
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