François Ozon homenageia Fassbinder em "Peter Von Kant"
Cineasta de versatilidade comprovada por uma vasta filmografia na qual sua coragem se traduz em obras de gêneros distintos, o francês François Ozon já foi da comédia ao drama, do suspense ao romance, sempre com desenvoltura enquanto se recusa a permanecer em sua zona de conforto. Ozon também nunca negou a influência de Rainer Werner Fassbinder em seus filmes, trazendo um apuro estético que deixaria o controverso diretor alemão orgulhoso. Adaptando As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, melodrama assinado por Fassbinder frequentemente lembrado como um filme de câmara clássico, mas também pela ousadia de incluir elementos lésbicos em pleno ano de 1972, François Ozon promove uma troca de gênero, transformando Petra em Peter, ainda que mantendo o teor homossexual que rege as relações da figura principal.
Na trama, Peter Von Kant (Denis Ménochet) é um cineasta recluso que goza uma vida de privilégios graças à fama e ao sucesso conquistados em sua carreira. Passando os dias em um luxuoso apartamento na cidade alemã de Colônia em 1942, ele transfere todos os seus afazeres a Karl (Stefan Crepon), seu calado e fiel criado a quem cabe, inclusive, a escrita de roteiros. Incapaz de se servir, ele só toma a iniciativa quando é para colocar um disco para tocar (ele sequer se dá o trabalho de se mover para atender o telefone).
Num belo dia, porém, Peter recebe a visita da cantora Sidonie (Isabelle Adjani), musa de seus filmes que se tornou também uma grande amiga. É ela quem lhe apresenta a Amir (Khalil Gharbia), um jovem ator que imediatamente atrai a atenção do veterano cineasta. Determinado a conhecer melhor o rapaz, não demora até que os dois resolvam trabalhar juntos, fazendo brotar uma relação que eventualmente acaba prejudicada pelos excessos de Peter.
Vivido por Denis Ménochet (o eterno Monsieur LaPadite de Bastardos Inglórios) como um ser de ego enorme e extremamente mimado, Peter está acostumado a ter todos os seus desejos prontamente atendidos (seu criado, inclusive, já até é capaz de antecipá-los), o que o coloca em rota de colisão com Amir, bem mais novo e com uma personalidade livre. A forma como Peter trata seu criado e a performance afetada de Ménochet, vale dizer, tornam quase impossível para o espectador simpatizar com o personagem.
Já Amir é interpretado por Khalil Gharbia como um sujeito simpático, de modos aparentemente relaxados e com um passado comovente. Por isso, quando ele resolve confrontar Peter, provocando-o até que uma crise de ciúmes faz o cineasta desabar em lágrimas, não chegamos a ter compaixão, muito pelo contrário, pois vibramos com a chegada de alguém finalmente disposto a dar um fim a esse mundo mimoso. Enquanto isso, Stefan Crepon brilha como Karl, dependendo de vários níveis de expressão para transmitir seus sentimentos, já que não possui diálogos.
Visualmente belíssimo, Peter Von Kant revela que François Ozon buscou o mesmo esmero estético da obra original de Fassbinder: o apartamento, por exemplo, ganha paredes em vermelho vivo que contrastam com os figurinos azuis de Peter e os tons pasteis que dominam as roupas de Karl, sendo curioso notar como paulatinamente Peter vai abandonando o azul para vestir as cores usadas por Amir, culminando num terno branco que reflete o estado emocional do artista numa sequência-chave durante o terceiro ato.
Mais um acerto da prolífica carreira de François Ozon, ainda que em menor grau, Peter Von Kant é uma obra que chama mais atenção pelo contexto no qual está inserida (a homenagem a Fassbinder, que inclui movimentos de câmera e planos específicos) do que pelo texto em si, pecando também por não oferecer uma âncora emocional ao espectador, que fica refém de um personagem desagradável até a última cena.
NOTA 6
* Crítica originalmente publicada como parte do Festival do Rio 2022
Comments