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Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival Varilux 2023 | "O Livro da Discórdia" aborda problemas atuais com bom humor


O tema “imigração” está em voga. Não por acaso, nos últimos anos, temos sido soterrados por produções envolvendo não apenas a Crise dos Refugiados, mas também histórias sobre imigrantes confrontando suas raízes, como os recentes Fronteira Verde, Manuela, Fremont e Não Abra!. Não chega a ser uma surpresa que a França também invista pesado nessa pauta (algo também recorrente). Surpreendente mesmo só a abordagem deste O Livro da Discórdia, que abandona a seriedade e a urgência das obras supracitadas para investir num tom jocoso e cínico ao tocar as mesmas feridas.


O roteiro escrito por Michael Leclerc em parceria com Baya Kasmi (também assinando a direção) acompanha Youssef Salem (Ramzy Bedia), um escritor de origem argelina que alcança uma enorme repercussão pública em Paris, onde vive, com seu livro mais recente. Isso porque além de bem-sucedido comercialmente, Choque Tóxico tem estipulado debates calorosos, principalmente em programas literários na televisão. O problema é que ao escrever o tal romance, Youssef se inspirou na própria família, revelando detalhes íntimos e imaginando outros ao retratar seus pares, o que acaba enfurecendo o clã Salem e corroborando a famosa citação do autor novaiorquino Phillip Roth (“Se um escritor nasce numa família, esta família está arruinada”). No entanto, Youssef só acaba entrando em apuros mesmo quando se vê indicado a um importante prêmio, dificultando seus esforços para manter sua obra longe dos pais, árabes extremamente tradicionais.

Vivido com carisma e simpatia por Ramzy Bedia, Youssef conquista o espectador logo de cara: homem de sorriso fácil e bom de papo, ele não demora a nos convencer que sua intenção nunca foi além de escrever um livro. Sim, ele imaginava que teria problemas ao retratar sua família, mas jamais imaginou que suas palavras fossem ganhar tamanha reverberação. Isso acaba gerando críticas de todos os lados, especialmente em função de sua abordagem dos costumes muçulmanos, fazendo com que tenha que ouvir ser “menos árabe” justamente por isso. Todavia, é quando sua irmã Bouchra (Melha Bedia, irmã de Ramzy também na realidade) resolve confrontá-lo que as coisas ficam quentes, com o escritor entregando-se a debates calorosos.

Por mais que possa soar denso e solene, a grande sacada de O Livro da Discórdia é precisamente trilhar o caminho oposto, transformando a história numa deliciosa sátira do puritanismo que envolve muitas doutrinas religiosas. Assim, quando a produção tem seus melhores momentos quando coloca Youssef para escapar da verborragia política que acaba invadindo os debates sobre seu livro. São passagens em que o script consegue fazer questionamentos pertinentes sem parecer panfletário. O problema é que os roteiristas eventualmente perdem o foco, atirando para todos os lados ao abrir um leque de problemáticas, tornando a experiência tumultuada e dispersa em vários instantes. Há pinceladas de vários tipos de preconceito (gordofobia e homofobia estão no pacote), assim como uma alfinetada na crença de que o prazer sexual deve ser punido.

Em outros, se sai bem ao brincar com costumes árabes, como numa peculiar comemoração da mãe de Youssef (“Parabéns! Vamos matar um cordeiro!”, diz ela toda animada). A obsessão do pai do protagonista em fazê-lo escrever sobre heróis argelinos também diverte tanto quanto seu preciosismo linguístico (me identifico com o hábito do patriarca em corrigir a gramática alheia). Apesar de piadas aparentemente descompromissadas, todas contribuem para o discurso da produção (o pai de Youssef é apegado às suas raízes africanas, mas tenta falar o melhor francês possível). É importante frisar também que embora jogue luz sobre tabus, especialmente sexuais, O Livro da Discórdia passa longe de soar apelativo, ao contrário. Sem recorrer a cenas de sexo ou palavrões, é o tipo de comédia que pode ser apreciada por todos os públicos sem motivar reclamações.

Beneficiando-se de uma performance absolutamente hilariante de Noémie Lvovsky (que rouba a cena como a editora de Youssef), mas que contrasta com um final anti-climático e incongruente, Youssef Salem a du Succès, no original, é uma produção que pode até parecer inofensiva à primeira vista e não há problema algum em ser aproveitado dessa forma, possuindo piadas suficientes para entreter o público casual, mas que soma pontos preciosos ao oferecer um olhar diferente sobre uma série de problemas contemporâneos sem descambar para a tragédia.


NOTA 6,5

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