Festival Varilux 2023 | "Memórias de Paris" resgata esperança na humanidade
De filmes sobre traumas, o Cinema já está cheio e quando as causas passam por um tiroteio em massa, dificilmente Hollywood será superada. Memórias de Paris, no entanto, abarca esses dois elementos e despertará grande dificuldade no espectador que tentar encontrar, recentemente, um retrato mais acurado dos desdobramentos de um evento traumático.
A produção é escrita e dirigida pela parisiense Alice Winocour, conhecida por ter lançado o aventuresco A Jornada (com Eva Green e Matt Dillon) no auge da pandemia, mas que merece ser lembrada pelo ótimo Cinco Graças, do qual, verdade seja dita, assinou apenas o roteiro. A cineasta escalou Virginie Efira, estrela estabelecida graças a presença em produções fortes como o superestimado Benedetta e o ótimo Elle (que rendeu uma merecidíssima indicação ao Oscar para o trabalho de Isabelle Huppert) como Mia, uma mulher bem-sucedida no trabalho e no amor.
Após mais um dia de trabalho como tradutora para uma rádio local, a jornalista sai para jantar com o marido, o cirurgião Vincent (Grégoire Colin), que acaba largando-a no meio do restaurante para atender a uma suposta emergência médica. Perdida, Mia termina a refeição e sai pelas ruas de Paris, vagando até começar a chover, quando decide parar num típico bistrô para tomar a saideira. A partir do momento em que ela entra no “L'etoile d'Or” (Estrela de Ouro, em tradução livre), o espectador deve se ater a alguns detalhes aparentemente prosaicos, mas que farão toda a diferença. As turistas orientais tirando fotos do escargot, o homem comemorando aniversário, a caneta tinteiro que suja suas mãos. Tudo isso ganha enorme importância quando um atirador não identificado invade o estabelecimento e metralha todas as pessoas que vê. Mia sobrevive, mesmo que não lembre como.
Da mesma forma que Fremont, preciosidade independente exibida na Mostra de São Paulo, Memórias de Paris acompanha uma protagonista acometida pela Culpa do Sobrevivente e por mais que sofra ao lembrar de flashes do que aconteceu, a superação passa pela reconstituição daquela noite. Em outras palavras, Mia só será capaz de seguir em frente, se estiver disposta a confrontar o passado. Para ajudá-la nessa tarefa, há os tradicionais grupos de apoio e alguns sobreviventes. Uns procurando conforto, outros a quem culpar, como o caso da senhora que acusa a protagonista de um ato que ela, obviamente, não lembra ter cometido.
Beneficiado por uma fotografia que merece elogios não apenas por extrair imagens deslumbrantes de Paris (como se fosse uma tarefa difícil...), mas também por não tentar refletir o tom sombrio da história (que apesar do tema, não chega a ser pesada), a produção ainda tem a sorte de contar com a compositora sueca Anna Von Hausswolff (do subestimado Personal Shopper), que compreende a importância de não influenciar as sensações do espectador, optando por melodias discretas, mas não menos eficazes.
Já Alice Winocour dá de ombros para o terrorista. Pouco importa sua identidade ou seus motivos. O que de fato interessa é que ele mudou para sempre a vida de dezenas de pessoas, especialmente a personagem central. É uma decisão criativa que tira um peso enorme da narrativa e permite a Winocour concentrar-se em Mia, que acaba sendo utilizada pelo ótimo roteiro como catalisadora de uma história que busca a humanidade, mas sem recorrer ao melodrama.
Assim, não espere por crises de choro, rompantes de violência, desespero ou qualquer outro sentimento extremado. O sofrimento de Mia torna-se palpável por estar interiorizado e sua solidão vai muito além do simples fato de decidir ficar sozinha. Diante de uma experiência como a que teve, com quem mais poderia compartilhar o que sentiu? Quem poderia compreendê-la? Nem mesmo Vincent se mostra qualificado. Aliás, ele é tomado pela frustração justamente por ter sido, mesmo que indiretamente, o pivô do que aconteceu (“eu não deveria ter deixado você”).
É aí que ela ouve o melhor conselho possível durante uma conversa com uma sobrevivente, que lhe abre os olhos para a possibilidade de recomeçar, pois o trauma pode lhe revelar outras oportunidades. Interpretado pelo mesmo Benoît Magimel do magnífico O Sabor da Vida, exibido dois meses atrás no Festival do Rio, Thomas é a personificação dessa nova perspectiva que se oferece a Mia. Inicialmente um mero instrumento para refrescar a memória da protagonista (ele lamenta lembrar de todos os detalhes da noite fatídica), aos poucos ele preenche as lacunas que ela não imaginava existir.
Mas além do mistério envolvendo o posicionamento de Mia, a trama adota um olhar humanista que valoriza o calor humano, aquele tipo de conforto que, acredita-se, só é encontrado no contato com outra pessoa. Talvez a subtrama envolvendo um imigrante senegalês fuja da discrição do restante da história, mas até essa questão, extremamente atual, se beneficia do otimismo com que Winocour enxerga a humanidade, propondo soluções que podem soar ingênuas e até simplistas, mas que não devem ser desprezadas. Às vezes, tudo o que precisamos é de um filme como Memórias de Paris para renovar nossa esperança na Humanidade.
E se você acha que a palavra “humanidade” apareceu demais nesse texto, prepare-se para quando for assistir ao filme...
NOTA 8
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