Festival Filmelier no Cinema: #3 - Blue Jean
É triste notar que mesmo se passando em 1988, a trama de Blue Jean soe tão atual, expondo como não evoluímos tanto assim como sociedade. Afinal, a Inglaterra governada por Margareth Thatcher, a “Dama de Ferro”, naquela época estava imersa num conservadorismo que jamais foi abandonado por completo. A “Cláusula 28”, que proibia a “promoção da homossexualidade”, pode ter sido revogada (há menos de 20 anos, vale ressaltar), mas a mesma intolerância que antes era institucionalizada, segue sendo viabilizada não apenas na Grã-Bretanha, mas também no restante do mundo, especialmente no Brasil, onde ainda há quem julgue ter o direito de ditar o costume alheio.
E é curioso perceber como essas mesmas pessoas insistem em definir a sexualidade como uma opção, como se alguém em sã consciência fosse capaz de fazer deliberadamente uma escolha que a marginalizasse para sempre, condenando-a a uma vida de julgamentos e pré-julgamentos. Ora, se fosse possível, quem escolheria ser homossexual numa sociedade tão hostil como a nossa? Quem aceitaria viver de um jeito no qual uma simples caminhada de mãos dadas pode representar um risco à própria integridade física ao despertar a fúria do escrutínio moralista? É fácil para mim, que não sou homossexual, fazer esses questionamentos. Difícil é imaginar estar na pele da protagonista Jean Newman, professora que precisa esconder o fato de ser lésbica com o objetivo de ser aceita socialmente e manter o emprego que lhe garante subsistência.
Para ilustrar essa época doutrinada pela moralização canhestra, a estreante Georgia Oakley insere a protagonista numa verdadeira distopia, onde há sempre alguém pronto para vociferar intolerância contra o que julgam diferente. Seja através de propagandas no rádio entre as músicas que ouve, durante os programas de TV aos quais assiste ou através de uma simples corrida matinal, quando um imenso outdoor exaltando “valores tradicionais” quase a engole, Jean jamais consegue escapar da realidade hostil na qual está inserida.
Interpretada com imensa disciplina por Rosy McEwen (da série The Alienist), Jean é uma mulher sortuda o bastante para trabalhar com o que ama, mas não ao ponto de escapar de colegas que têm “medo de levar porrada de sapatões”, reverberando um estereótipo preconceituoso que a obriga a sustentar uma fachada socialmente adequada àquele ambiente. Algo que é sumariamente reprovado por Viv sua namorada, encarnada como uma legítima punk por Kerrie Hayes. Completamente despida de qualquer preocupação quanto a opinião das pessoas que a cerca, ela não hesita em debochar do conservadorismo sempre que tem a oportunidade, como ao piscar para uma idosa que a fitava com desprezo. Ao contrário de Jean, Viv não tem medo de assumir-se lésbica publicamente, escancarando uma diferença de mentalidade que cresce como um barril de pólvora só aguardando uma fagulha para explodir.
Fagulha esta que surge representada por Lois (a novata Lucy Halliday), aluna da turma de Jean que acaba flagrando-a num bar notoriamente frequentado por gays. Como uma adolescente ainda confusa sobre seu lugar na sociedade, ela vaga à deriva por um mar tortuoso povoado por criaturas que reagem através do bullying, enquanto busca uma boia de salvação. Para Viv, é o momento de Jean ser essa boia e guiar a menina, mas a professora, tomada pelo medo de ser exposta, vê seus dois mundos (o real/hostil e o fictício/receptivo) se misturarem e colocarem sua estabilidade em risco, o que desencadeia de vez o conflito que parecia iminente e abre espaço para o diálogo que serve com perfeição como o mote do filme: “Como essa garota vai aprender que ela tem um lugar nesse mundo, se principalmente você disser que ela não tem?”, pergunta Viv. “E o que te faz pensar que ela tem um lugar nesse mundo?”, arremata Jean.
Conduzindo uma história densa com a mesma humanidade de tantas obras do conterrâneo Ken Loach, mestre na arte de despertar empatia, a diretora/roteirista britânica Georgia Oakley só derrapa mesmo no ato final, quando sua ânsia por recompensar com esperança o investimento do espectador, acaba resultando em planos tão óbvios em seus simbolismos, que faz Blue Jean se afastar do realismo cru(el) e distópico para se aproximar de uma catarse esteticamente cafona, recorrendo a cavalos correndo livres por campos verdejantes e banhados por raios de Sol para corresponder ao peso retirado quase literalmente do peito da protagonista (ao menos é o que sugere o seu gesto).
Poderoso ao apontar a hipocrisia de uma sociedade que opta por reprimir ao invés de acolher e eloquente como manifesto pela liberdade, Blue Jean aponta para aqueles que se julgam no direito de determinar formas “normais” de amar e mostra que “anormal” é não amar. Ironicamente, no ano em que se passa a história, liderou as paradas de sucesso no Brasil uma canção que considera justa toda forma de amor...
NOTA 8,5
* Filme visto através de screener enviado pelo festival
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