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Festival do Rio 2024 | Dia 9

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Atualizado: 14 de out. de 2024

Happyend - Liberdade em Vigilância (Happyend, Japão)

 

A iminência de um grande terremoto alardeado pela imprensa passa a ser usado como desculpa para que o governo japonês, através de seu primeiro-ministro, baixe um decreto que amplia os poderes do estado. Em paralelo, o diretor de uma escola em Tóquio usa o incidente com o próprio carro para espelhar a nova política nacional e instaurar um sofisticado programa de vigilância, algo imediatamente reprovado pelo corpo discente. Happyend poderia se passar nos dias de hoje, mas o letreiro inicial garante que a história acontece “num futuro próximo”. Foi a forma encontrada pelo cineasta Neo Sora de desenvolver seu próprio conto de advertência sobre o totalitarismo, que pode até parecer distante agora, mas o roteiro escrito pelo próprio diretor mostra que tudo começa com pequenos passos.


Filho do lendário compositor Ryuichi Sakamoto (vencedor do Oscar por O Último Imperador), Neo Sora, em seu primeiro trabalho na Ficção, orbita seu discurso ao redor de um grupo de amigos, especialmente Kou e Yuta. Enquanto o tal terremoto se apresenta como o maior acontecimento para a nação, para os dois amigos há algo maior: a formatura no colégio.


Sora é extremamente eficiente na construção daquele microcosmo, elaborando um coming of age que não cai nas armadilhas do subgênero, como aconteceu com Toxic, exibido há poucos dias nessa mesma edição do Festival do Rio. Enquanto a obra lituana vencedora do Leopardo de Ouro patinou para conciliar um drama de amadurecimento com uma crítica social dentro de uma abordagem excessivamente crua e distante, Happyend se beneficia de uma perspectiva mais vívida por parte de seu realizador.


Ele ancora a narrativa nos dois amigos protagonistas, mas isso não o impede de trazer cores aos demais personagens, conferindo personalidade a cada um deles. Com isso, Sora se permite discutir outros temas, sempre se dispondo contra o conservadorismo (base para qualquer regime totalitarista). É o caso de Ata-Chan, espírito livre brincalhão que ousa vestir uma enorme saia, mesmo diante de advertências por “uniforme incorreto”. Quando o vemos dar o dedo do meio para uma câmera de vigilância, quase é possível ver o próprio diretor mandando os conservadores de plantão às favas.


No âmago de Happyend, é justamente essa a fagulha que Sora quer acender na sociedade, estimulando o despertar de uma juventude cada vez mais acomodada às próprias bolhas. Enquanto o vício em aparelhos eletrônicos se torna uma epidemia mundo afora entorpecendo as mentes de quem, na prática, liderará o mundo em poucas décadas, são os jovens estudantes de Happyend que resolvem dar um basta na opressão do governo.


E o detalhe mais empolgante desse olhar, é que Neo Sora, apesar da seriedade do tema sobre o qual escolheu dissertar, não perde a leveza de vista, pois a alegria, aquela energia maníaca intrínseca nos jovens, é o que move aquelas pessoas. E Sora aproveita cada oportunidade para construir gags sem apelar para a infantilização, possuindo um humor inteligente e que simplesmente ignora as alegorias sexuais, tão presentes no gênero.

Outro ponto positivo é a coragem de trazer à tona o racismo, pilar do fascismo. Trazendo um personagem negro e mensagens aos “não-japoneses” ele pode até sacrificar a sutileza, mas o faz em prol de um resultado não muito frequente no Cinema Japonês, mas sufocante em outras filmografias. O fato de Kou ser de ascendência sul-coreana não passa batido, por exemplo.


Claro que inevitavelmente ele precisa se equilibrar entre a densidade da trama e o peso da maturidade chegando aos seus personagens, o que nem sempre dá certo. A justaposição de acontecimentos marcantes se atropela até que ambas as frentes finalmente possam convergir, num final catártico por um lado e inevitavelmente banal por outro.


NOTA 7,5


 

Enterre Seus Mortos (Idem, Brasil)

 

Cineasta que já se solidificou como uma das mais eloquentes vozes do cinema de gênero nacional, tendo concebido maravilhas como Quando Eu Era Vivo (2014) e Trabalhar Cansa (2011), o Paulistano Marco Dutra volta ao Festival do Rio sete anos após ter vencido o Troféu Redentor com As Boas Maneiras (2017), uma de suas várias parcerias com Juliana Rojas. Engana-se quem pensa que Dutra opera como um músico de uma nota só, pois quem já viu o estupendo O Silêncio do Céu (2016), sabe de seus predicados dramáticos. Enterre Seus Mortos, apesar de induzir o público ao erro de considerá-lo um terror, opera como uma ficção científica. Desta vez, porém, seu talento não aparece tanto quanto em suas obras anteriores.


Quem protagoniza o longa é ninguém menos que Selton Mello, ícone da cinefilia brasileira que dispensa apresentações. É ele quem dá vida a Edgar Wilson (nome composto que os personagens fazem questão de repetir inúmeras vezes), que num futuro distópico onde crianças e animais são afetados por uma misteriosa síndrome, se encarrega de remover os cadáveres que obstam as estradas Brasil afora. Mas Edgar Wilson não está sozinho, já que o padre excomungado Tomás (Danilo Grangheia, o piloto de O Sequestro do Voo 375) está ao seu lado para se certificar de que as pobres almas desencarnadas encontrem o caminho dos céus. A rotina deles toma um rumo inesperado quando Edgar Wilson decide aceitar uma proposta de transportar um corpo clandestinamente.


Dutra tem boas ideias, várias delas, inclusive, sustentam o clima de mistério do primeiro ato. Mas aos poucos elas vão se amontoando e se atropelando, à medida que são descartadas pelo realizador com a mesma energia com que este abraça novos tópicos. Tendo sido gravado numa época em que a Covid-19 ainda pairava sobre nós, fica perceptível o subtexto pandêmico, período em que o fim do mundo teve sua descrença suspensa por mais tempo do que gostaríamos. Com a proximidade do fim, Marco Dutra cria uma alegoria recheada de personalidade e beneficiada por ótimos valores de produção, mas termina sem desenvolvê-la na totalidade.


Na verdade, ele tem o mérito de levantar vários questionamentos ao preparar o terreno durante a primeira metade. O problema é que ele encerra a projeção sem respondê-los. Um pouco de mistério não faz mal a ninguém, mas atirar conceitos sem aproveitá-los deveria ser tipificado como crime hediondo, ainda mais considerando o talento do realizador.


Tecnicamente, porém, a produção é irrepreensível: a fotografia do português Rui Poças (Frankie), por exemplo, surpreende, ao aproveitar tons de verde (cor tradicionalmente associada à morte) durante uma sequência específica e abusa do onipresente vermelho para pintar o céu da fictícia Abalurdes. No restante do tempo, a imagem permanece sem vida, refletindo a atmosfera apocalíptica da história. O paralelo com os urubus, colegas de profissão informais de Edgar Wilson, também é bem construído.


Infelizmente, o filme perde a rotação do motor lá pela metade e quando é feita uma revelação sobre Edgar Wilson, já no terceiro ato, esta chega sem impacto algum, pois é pescada dos escombros de ideias implodidas pelo fluxo desgovernado de pautas levantadas. O que é exatamente “a síndrome”? As pedras fumegantes  que caem do céu são expelidas por um vulcão? Qual é a natureza da seita envolvendo a garotinha? Aliás, quem diabos é a garotinha?


Perguntas que se avolumam, mas que são parcialmente ignoradas quando estamos completamente hipnotizados pela performance de Selton Mello, de volta às telonas após um hiato que se aproximava dos oito anos, quando ele estrelou, escreveu e dirigiu o ótimo O Filme da Minha Vida (2017). Quase petrificado na primeira metade, com o rosto sem sobrancelhas inexpressivo diante de qualquer acontecimento, ele ilustra uma transformação assustadora, nos lembrando da falta que faz um talento como o dele.


E no final, o sentimento que fica é o de frustração mesmo, mas em relação ao potencial desperdiçado por Enterre Seus Mortos, um filme bom em apresentar conceitos, mas não tão bom assim para desenvolvê-los.


NOTA 5


 

Conclave (Idem, Reino Unido/Estados Unidos)

 

Um dos maiores mistérios do mundo é guardado a sete chaves dentro das salas do Vaticano. Afinal, como um papa é escolhido? O que não chega a ser um mistério é que tal eleição, chamada de Conclave, como tudo na órbita da Política, envolve jogos sujos, conspirações e uma invariável fome de poder. Diretor do aclamado remake de Nada de Novo no Front (Melhor Filme Internacional e outros três prêmios no Oscar 2023), o alemão Edward Berger filma Conclave como um thriller com saborosas notas de whodunit, no melhor estilo Agatha Christie. Partindo dessa analogia, o Cardeal Lawrence de Ralph Fiennes (Voldemort em Harry Potter e M em 007) faz as vezes do detetive belga Hercule Poirot para se certificar de que a Igreja Católica ficará em boas mãos, uma preocupação trazida pelo recém-falecido papa e surpreendentemente compartilhada pelo atormentado clérigo.


O personagem traz um importante debate para dentro do roteiro de Peter Straughan (indicado ao Oscar por O Espião que Sabia Demais) adaptado do romance de Robert Harris, dissertando sobre as diferenças entre fé e religião. Lawrence, assim como o finado papa, tem sua fé (individualizada) em Deus inabalável, mas o mesmo não pode ser dito em relação à (pluralizada) religião, uma instituição repleta de dogmas e tradições mais próximas do Homem e, portanto, passíveis de suas imperfeições.


E nada melhor do que a Igreja Católica para servir como um laboratório do que de pior a humanidade pode demonstrar. Ainda mais quando seus processos internos são mantidos em sigilo há séculos. Estamos falando de um sistema cujo líder (João Paulo II) fez vista grossa para a explosão de casos de assédio sexual dentro da Igreja e ainda elegeu um nazista como papa (Joseph Ratzinger, o Bento XVI, foi membro da Juventude Hitlerista).


Até nesse ponto, o cardeal Lawrence é bem utilizado, pois prega a sabedoria do equilíbrio, a boa e velha arte de usar a balança moral (“seguimos ideais, mas nem sempre somos ideais”). Tanto é que ele prega ser melhor a escolha por alguém que erra e pede perdão do que alguém que se venda como puro e infalível. Ele mesmo não se considera digno do dever papal. Não por esconder algum escândalo do passado, mas por estar “em dificuldades com a oração”, a já citada preocupação com o catolicismo como instituição. Em mais uma das várias frases inspiradíssimas do roteiro, ele volta a aconselhar seus colegas votantes “a fé anda de mãos dadas com a dúvida. Com as certezas, não há necessidade de ter fé. Vamos escolher um Papa que duvide!”.


Ralph Fiennes, ator que escreveu seu nome na História do Cinema Britânico ao marcar presença em suas duas maiores franquias, é absolutamente perfeito ao ilustrar os tormentos internos de Lawrence, sem abandonar a sabedoria de alguém capaz de conduzir o processo de escolha do próximo pontífice. Investindo numa respiração constantemente pesada e em longos instantes de silêncio (evidenciando reflexão), Fiennes eleva a tensão do filme justamente porque seu personagem está privando a Igreja Católica de ter o melhor Papa possível.


O britânico, inclusive, faz parte da brincadeira de estimular o público a adivinhar quem será o escolhido, com candidatos de peso protagonizando reviravoltas atrás de reviravoltas. Como John Lithgow (o mais memorável vilão da série Dexter) e Stanley Tucci (Dança Comigo?), candidatos que tentam disfarçar a ambição com uma ilusória preocupação com o futuro. Peões num tabuleiro marcado por jogadas ora inteligentes, ora puramente sórdidas, os cardiais são envolvidos pela Política e acabam envolvendo também o espectador.


Parte desse envolvimento deve ser creditado à competência de Edward Berger, que mesmo sem o auxílio de tiroteios e explosões, é capaz de manter o ritmo sob rédeas curtas, evocando tensão com o auxílio da trilha pesada de Volker Bertelmann (Oscar por Nada de Novo no Front). Mas ele também é hábil ao criar imagens repletas de significado como o plano em que observamos um contemplativo Lawrence, no fundo do quadro, e coberto por um portão aberto. A alternância da dinâmica do poder repete estratégias do clássico 12 Homens e Uma Sentença (1957), principalmente graças à predileção por planos fechados, ressaltando a claustrofobia e o ambiente opressor.


Comprovando seu domínio do ritmo e do tom da narrativa, Berger ainda salpica Conclave com um humor homeopático, mas cortante, como na memorável sequência protagonizada por Isabella Rossellinni, com sua Irmã Agnes dando um xeque-mate num determinado personagem. A veterana, aliás, é levada a adotar uma postura expressiva em virtude da escassez de diálogos, conseguindo um resultado que deve catapultá-la para a ala dos favoritos ao Oscar.


Com uma última reviravolta saindo da cartola, Conclave se encerra de forma bombástica, chocando na mesma medida que um só um bom thriller é capaz de fazer, mas isso não impede o roteiro de tecer um comentário auspicioso para o futuro da Igreja. O fato de todos nós duvidarmos dessa possibilidade, provavelmente é um ponto positivo, assim como nos ensinou o Cardeal Lawrence.


NOTA 9

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