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Festival do Rio 2024 | Dia 8

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Mãos no Fogo (Idem, Portugal)



Escrito e dirigido pela cineasta lusitana Margarida Gil, Mãos no Fogo é mais uma adaptação da novela gótica A Volta do Parafuso, de Henry James, a fracassar nos cinemas. O problema não é o material em si, que chegou a gerar bons resultados, mas sim a natureza quase amadora do trabalho assinado por Gil, que se esforça tão desesperadamente para fazer o espectador sentir algo, que termina por provocar apenas… risadas.


Se não chega a ser completamente amador, muito se deve à beleza da cenografia de Carlos Subtil, inocentemente tentando acompanhar a atmosfera rígida, pretensamente formal, mas sabotada por diálogos tão pomposos que, quando não soam estúpidos (“diz lá, o que fazes aqui?", alguém pergunta apenas para ouvir “eu vivo. E não é pouco.”) chegam a ser cafonas (“para onde eu quero ir? Para a eternidade!”).


Os atores, medianos em seus máximos esforços, escapam das rédeas de Margarida Gil, investindo em olhares dramáticos, empostando a voz e movimentando-se em cena como se estivessem numa ópera italiana. Tudo soa falsamente teatral e a premissa de uma documentarista hospedada num casarão antigo é um mero pano de fundo para uma sucessão de imagens bizarras. Eu, pelo menos, nunca esperei ver um interlúdio protagonizado por uma atriz aparentemente séria tendo seu rosto sobreposto por... um peru. Uma das passagens mais estapafúrdias do Cinema em 2024, é uma imagem que provavelmente tem algum significado, mesmo que este não tenha sido transmitido por Gil, culminando numa espécie de sátira a Persona, magnum opus de Ingmar Bergman (que me perdoe pela citação).


Gil, aliás, tem a pachorra de emular os tableau vivants dos primórdios franceses, interrompendo a narrativa para mostrar, do mais obscuro nada, um casal nu sobre uma pedra, sem maiores explicações. Esse, inclusive, parece ser o ponto exato em que o montador João Braz joga tudo para o alto, desistindo de buscar uma conexão sequer com o que está acontecendo.


Personagens vêm, personagens vão e o humor involuntário é a única reação que persiste, pairando no ar como um dos fantasmas que deveriam ter importância na história. E se você achou bizarra a cena do peru, espere até ver Maria do Bairr... digo, do Mar, durante uma conversa, modificar a posição do retrovisor para que possamos ver quem está falando dentro de um carro. Durante o papo, em tempo real e alternando manualmente entre os interlocutores. Tenho certeza de que o outro ator gostaria de ter permanecido incógnito, a fim de ser poupado de tal constrangimento.


Carolina Campanela, coitada, empalidece numa protagonista sem qualquer brilho ou energia. Francisco Vistas, o Lourenço, parece ter sido contratado apenas para posar pelado na infame cena da pedra. E se o Engenheiro de Marcello Urgeghe está presente apenas para que a realizadora possa verbalizar suas inspirações, as quais jamais consegue fazer jus, o que fazem com Adelaide Ferreira deveria ser passível de prisão, com a produção obrigando a atriz veterana a protagonizar uma longa sequência em que persegue o maldito peru nos corredores da mansão (mas que fixação é essa de Margarida Gil por essa ave natalina?).


Mãos no Fogo, por outro lado, desperta um fascínio tangencial aos admiradores da língua portuguesa, promovendo um verdadeiro banquete lexical, mesmo que palavras como "desenrasco", "catrapiscar" e "sucedâneo" também possuam potencial para gerar mais uma parcela de estranheza cômica (“nunca te perdi de vista tão logo te catrapisquei”). Falar da comicidade acidental sem abordar um determinado show que conta com a presença de Maria do Mar e Lourenço, seria um desleixo tão grande quanto um documentarista não demonstrar a menor habilidade para manusear uma câmera (sim, isso também acontece).


O show em questão mostra um roqueiro entregando-se de corpo e alma ao cantar “O Baile dos Passarinhos” (juro!), com direito a voz rouca e estilo heavy metal. Isso, porém, não é mais constrangedor do que ver um suposto casal apaixonando-se ao fazer a coreografia (e os biquinhos!) do famigerado passarinho. Diante de um hino romântico tão emocionante e cantada a plenos pulmões por uma plateia repleta de adultos aparentemente sãos, confesso que esperei ansiosamente pelo momento em que o aspirante a Lemmy soltasse os primeiros versos de Ilariê. Que Roberto Medina traga esse "Motörhead Só Para Baixinhos" no próximo Rock in Rio.


Essa espécie de “The Room da Terrinha”, ainda falha miseravelmente em seus aspectos técnicos, como é possível constatar na sequência em que um senhor surge implacavelmente numa floresta, esbravejando sozinho enquanto corre (o som estourado deve ter algum propósito, imagino). A trilha sonora de Daniel Bernardes vai pelo mesmo caminho, com melodias em que o compositor parece estar agredindo um piano.


Trazendo uma última reflexão (“Pra você, o Cinema é vida, mas, para mim, a vida é Cinema) enquanto uma referência a O Morro dos Ventos Uivantes é arremessada na história, Mãos no Fogo fez parte da mostra Panorama do Cinema Mundial, uma das mais importantes do Festival do Riom, mas poderia muito bem ser encarado como um tremendo episódio do finado Casseta & Planeta.  


NOTA 1,5


 

A Verdadeira Dor (A Real Pain, Estados Unidos/Polônia)



David Kaplan (Jesse Eisenberg) e Benji Kaplan (Kieran Culkin) são dois primos-irmãos que resolvem se unir depois de vários anos, afim de embarcarem numa viagem para a Polônia, onde farão uma excursão por marcos judeus e visitarão a casa onde a avó deles nasceu e cresceu. Enquanto David é mais contido, o tipo de antissocial com TOC que Jesse Eisenberg se especializou em interpretar, Benji é mais expansivo, cujo carisma é capaz de “acender qualquer ambiente” (nas palavras do primo). Colocar pessoas diametralmente opostas para embarcarem numa viagem onde deverão confrontar seus demônios internos não é exatamente algo original e a produção tem ciência disso. Em seu segundo trabalho como diretor, Eisenberg aposta todas as suas fichas no tipo de história simplista (não simplória) que serve como um quadro em branco para seus atores brilharem. Ou, nesse caso, para Kieran Culkin brilhar.


Irmão mais novo do ex-astro mirim Macaulay Culkin, Kieran já teve seu talento comprovado na brilhante série Succession, pela qual recebeu diversos prêmios, entre eles o Emmy e o Critic’s Choice. A primeira impressão que temos, aliás, é de estarmos assistindo a uma versão alternativa do Roman Roy que interpreta na TV, mas logo descobrimos que Culkin guarda muitas cartas na manga. Por trás dessa máscara extrovertida e maior que a vida, esconde-se um homem terrivelmente machucado, cujos motivos David só nos revela mais tarde, durante uma sequência profundamente tocante em que desabafa num restaurante.


Eisenberg segue confortavelmente preso na persona cinematográfica que apresentou ao mundo em A Rede Social, filme que lhe rendeu uma indicação ao Oscar. Esporadicamente saindo de sua zona de conforto (no recente Manodrome, por exemplo), ele parece mais interessado em interpretar a si mesmo do que em tornar David um papel realmente diferente do que costuma encarnar. Isso só não chega a ser um problema, porque é justamente sua composição que permite uma química tão forte com o Benji de Culkin, formando uma das melhores duplas cômicas dos últimos anos.


Apesar de tratar (com seriedade) temas sensíveis como o Holocausto, o luto e a depressão, A Verdadeira Dor é uma máquina de provocar gargalhadas, seja pelo comportamento muitas vezes inconveniente de Benji ou pelas reações de David. Há um quê de constrangimento também, digno de alguns episódios da primeira temporada de The Office e que servem para ilustrar as contradições que permeiam a mente de Benji, uma pessoa tão quebrada por dentro que a lógica deixou de gerir suas atitudes. É o que explica, por exemplo, sua explosão dentro de um trem ao julgar desrespeitoso estar viajando pela Polônia de primeira classe enquanto seus antepassados se amontoavam rumo à morte certa. Algum tempo antes, Benji desarmou a formalidade dos turistas ao tirar uma foto descontraída num monumento judeu, afinal. Ao invés de confundir, essa incoerência enriquece o personagem, dando sentido ao motivo que leva David a tolerá-la.


Pecando no uso excessivo da trilha sonora (atrapalhando momentos-chave), A Verdadeira Dor é uma experiência que se equilibra bem entre o humor e o drama, revelando uma faceta promissora e surpreendente de Jesse Eisenberg, que além de não comprometer como diretor, é hábil ao construir analogias e diálogos eficazes (“ignoramos o matadouro para podermos curtir um bom filé”) como roteirista, mesmo que não seja particularmente contundente ou original.


NOTA 8


 

O Crepúsculo do Pé Grande (Sasquatch Sunset, Estados Unidos)


Se esse ano o Cinema Experimental já nos presenteou com um slasher cujo enredo é desenvolvido a partir da perspectiva do assassino, por quê não produzir uma narrativa focada na rotina de um grupo de... Pés Grandes? Essa ideia curiosa foi levada adiante por Nathan e David Zellner neste inusitado O Crepúsculo do Pé Grande.


Assim como o elenco encabeçado por Riley Keough, Jesse Eisenberg (olha ele aí de novo) e o próprio Nathan Zellner, que não possui uma linha de diálogo sequer, há quase nada a dizer a respeito de trama, pois o roteiro escrito por David não se preocupa em fazer mistério, oferecendo tudo o que se pode esperar de uma espécie de “big brother” com criaturas fictícias que se comunicam através de gestos e grunhidos. E quando digo tudo, é tudo mesmo, desde o exercício diário de catar (e comer) piolhos, passando pela alimentação, até culminar em comportamentos... menos civilizados, por assim dizer.


Não me sinto confortável em repreender a escatologia presente numa história focada na rotina de um grupo de mamíferos primitivos, mas não deixa de ser desagradável ver como um Pé Grande espanta corvos de um cadáver, por exemplo, ou a forma de marcar um território recém-descoberto, ou a maneira favorita de usar o dedo indicador... Enfim, acho que já deu para entender. Felizmente, cada hábito selvagem retratado é sucedido por, pelo menos duas sequências aprazíveis. Nesse ponto, a produção alterna momentos de sensibilidade, com outros mais brejeiros (confesso ter me surpreendido com a tentativa peculiar de um macho em conquistar uma fêmea). E o que é mais curioso: jamais deixando de soar fascinante. Claro, dependendo.


Em alguns momentos, os irmãos Zellner pesam a mão na abordagem juvenil, colocando os personagens em situações que beiram o surreal (mas o que seria adequado em relação a um ser que só existe no nosso imaginário?), como por exemplo, na sequência em que um dos espécimes descobre um cogumelo especial, ou aquele em que outro resolve satisfazer seus desejos sexuais com um tronco, sem levar em conta que o objeto serve como sustentação da cabana de seus colegas de espécie. Essa atitude, inclusive acaba gerando um banimento, o que leva a história a outra situação, culminando em outro ponto de virada quando uma espécie de puma entra em cena e, assim, Nathan e David nos ensinam a contar um “log life” de Pés Grandes.


Por trás de toda a irreverência e do conteúdo infame de sua obra, os realizadores não se furtam de incluir um discurso que vai ao encontro das diretrizes ambientalistas da atualidade. Tanto que a canção que encerra a projeção, composta por David e cantada por Riley Keough traz versos ilustrando a ligação entre animais e a natureza, algo que vem se perdendo ao longo de vários anos de desmatamento e outras agressões ao meio-ambiente (“O caos é ordem, a ordem da natureza”, é dito).


Keough e Jesse Eisenberg ganham mais espaço por serem os maiores nomes da produção, mas é Nathan Zellner quem protagoniza os melhores momentos, tirando dúvidas, inclusive, sobre determinados aspectos íntimos dos Pés Grandes. A fotografia de Mike Gioulakis (do vindouro Piano de Família, aposta da Netflix para a temporada de premiações), aproveita bem as paisagens do norte da Califórnia, sublinhando as belezas naturais e mostrando porque devem ser preservadas.


Se documentários e superproduções Hollywoodianas não têm servido para aumentar a conscientização sobre a preservação do Meio-Ambiente, esperamos que um filme sobre Pés Grandes lascivos e excrementosos vire o jogo.


A esperança é a última que morre, não é mesmo?


NOTA 7

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