Festival do Rio 2024 | Dia 7
The Outrun (Idem, Reino Unido)
Acostumada a enfileirar performances em filmes de época, chega a soar anacrônico ver Saoirse Ronan escutando música eletrônica em fones de ouvido sem fio. Dessa vez, a atriz de ascendência irlandesa não interpreta uma rainha ou uma camponesa, mas uma jovem mulher lutando contra o alcoolismo em pleno século XXI, pode acreditar.
Baseado no livro de memórias da jornalista britânica Amy Liptrot, The Outrun acompanha Rona, uma rebelde estudante de biologia que acaba perdendo as rédeas da própria vida ao ser engolida pelo frenesi londrino, onde se apaixona por Daynin (Paapa Essiedu, de Men – Faces do Medo). Mas nem ele consegue suportar os recorrentes episódios vexatórios protagonizados por Rona quando ela bebe demais, um vício que acaba afastando-a da faculdade e das pessoas que ama, incluindo o próprio namorado.
O término traumático com Daynin é o ponto de virada dentro da história da protagonista, que resolve procurar tratamento, voltando para a pequena ilha onde nasceu e cresceu, no norte da Escócia. Movimento contrário ao que normalmente acontece, Rona retoma a convivência com a mãe religiosa (Saskia Reeves, da série Slow Horses) e o pai fazendeiro (Stephen Dillane, de O Destino de Uma Nação), procurando forças para retomar o controle da própria vida.
Embora Ronan seja o maior trunfo da produção (comentarei mais adiante), o que chama atenção logo de cara é a narrativa não-linear proposta pelo roteiro adaptado pela própria Amy Liptrot ao lado da cineasta alemã Nora Fingscheidt (do alucinante Transtorno Explosivo), que embaralha os acontecimentos da vida de Rona para refletir sua mente debilitada. Essa abordagem injeta energia e refresca uma história que apenas tangencia o modelo consagrado por outros filmes de temática semelhante. E quando flerta com o clichê, acaba salva por uma força da natureza chamada Saoirse Ronan.
Por um “n” a mais em seu nome, não podemos dizer que protagonista e intérprete são a mesma pessoa, mas a atriz quatro vezes indicada ao Oscar se esforça para sumir na pele da estudante perdida. Não há surpresa na intensidade projetada durante as crises de Rona e tampouco nos delicados momentos em que é preciso externar a desesperança internalizada da moça (“não consigo ser feliz estando sóbria”).
O que faz de Ronan uma forte candidata ao próximo Oscar de Melhor Atriz é vê-la abraçando e tirando de letra a ideia de tratar Rona como uma das lendas do vasto folclore escocês. Os interlúdios poéticos que interrompem o enredo para narrar parábolas (incluindo uma sequência animada) e fornecer dados que refletem a pesquisa universitária da personagem são peças de um quebra-cabeça que, quando montado mostrará que apenas uma pessoa dentro daquele universo teria força suficiente para superar as dificuldades as quais enfrenta.
Enquanto muitos deixam Orkney para se tratar, estudar, trabalhar, ora, VIVER numa metrópole, Rona faz o caminho inverso, trocando o caminho à morte simbolizado por Londres e suas tentações, pela promessa de cura (vida) representada pela ilhota. E enquanto muitos são frutos do próprio ambiente em que vivem, Rona É o próprio ambiente. Aquela ilha de aparência apática e castigada por ventos é um reflexo da personagem (“meu corpo é um continente”, ela diz em certo momento, explicitando a conexão feita na tela).
Essa simbiose custa a acontecer, porque ela é rebelde demais para aceitar tomar o caminho mais difícil. É mais fácil negar o erro e não sair do lugar. Nesse ponto, o álcool é a materialização da ilusão, entorpecendo a mente e impedindo a constatação óbvia.
E se antes mencionei a fusão entre personagem e intérprete, é porque Ronan é quem fornece o poder a Rona: ela impressiona ao sugerir vulnerabilidade mesmo durante explosões de fúria ébria, reforça delicadezas quando nada parece indicar significado e exala vivacidade suficiente para comprarmos a ideia de redenção ofertada pela aspirante a bióloga.
Fingscheidt só tenta acompanhar sua estrela enquanto brilha no universo que ela própria concebeu. E quando as fronteiras entre as diferentes cronologias ameaçam embaçar, a realizadora alemã dá o seu toque de mestre ao utilizar a cor do cabelo de Rona como um guia a ser seguido pelo espectador. Quanto mais azul forem as mechas da moça, mais profundo é o mergulho em seu passado. Não à toa, no final ela resolve fazer referência à lenda de uma pessoa com os cabelos em chamas. O passado já foi contado e ficou para trás, inauguremos um novo capítulo na vida de Rona. E que forma de encerrar um período turbulento de vida, com direito a uma sequência apoteótica, transpondo para a tela o momento catártico em que Rona simbolicamente
Acostumada a viver personagens que se expressam através do próprio cabelo, resta saber qual a cor da tinta a ser utilizada por Ronan em seu próximo projeto...
NOTA 8
Gloria! Acordes Para a Liberdade (Gloria!, Itália)
Uma das virtudes que mais admiro no Cinema é a sua capacidade de revelar histórias. Não apenas fantasias, mas também através de enredos reais sobre pessoas normalmente relegadas às sombras, mas que, graças a realizadores corajosos e hábeis são trazidos à luz, para que todo o mundo possa descobrir. Margherita Vicario é justamente uma dessas realizadoras, resgatando dos escombros da História um grupo de musicistas talentosíssimas, mas até então desconhecidas pelo simples fato de não serem homens, que não hesitaram em calá-las. Até hoje.
Mas o roteiro escrito e dirigido por Vicario não se limita a refazer os passos das jovens do Instituto Santo Inácio que devoraram o mundo após uma austera educação musical. Não. A protagonista é a humilde Teresa, vivida por Galatéa Bellugi com um misto de ternura e resiliência capaz de fisgar o espectador desde sua primeira aparição. Não por acaso, é justamente nesses primeiros minutos que Gloria! Coloca todas as suas cartas na mesa.
A realidade de uma jovem trabalhadora de um vilarejo nos arredores de Veneza nos idos de 1800 quase parece a história de origem de uma princesa Disney e a abordagem lúdica só reforça o tom fabulesco da obra, especialmente na sequência em que passamos a conhecer a relação de Teresa com a Música. É uma sequência particularmente inspirada em que cada ruído vira uma nota musical em potencial. Seja o som produzido por talheres, roupas sendo lavadas ou até gemidos de dor, tudo lembra Música na mente da protagonista, ilustrando com perfeição sua forma de enxergar o mundo.
Esse início, porém, leva a história a um patamar tão alto que é difícil não se decepcionar com os caminhos convencionais tomados pelo enredo a partir do segundo ato. O bullying sofrido por Teresa parece apenas um instrumento para que a mesma possa construir uma casca a fim de suportar a dureza do mundo. A subtrama envolvendo um romance proibido também fica aquém do talento demonstrado minutos antes, mas basta Teresa descobrir um piano para a trama reencontrar seu ponto de equilíbrio.
Os travellings circulares sobre a personagem denotam o júbilo daquela moça quando está em contato com sua maior paixão, algo compartilhado pelas colegas de instituto, mas desconhecido para além dos muros da escola. Gloria! vibra e envolve cada vez que Teresa e seu amor à Música entram em cena. Dessa forma, é possível perdoar os rompantes novelescos do script (há uma tentativa de forçar a heroína a se casar, por exemplo), mesmo que sejam formas mambembes de ilustrar a influência dos homens à época.
Falando em homens, o maestro Perlini vivido por Paolo Rossi acaba sendo usado pelo roteiro como um elo entre bandeiras importantes levantadas pelo projeto. Há uma sutil sugestão à homossexualidade, com direito a uma sequência pós-trisal, mas os melhores momentos de Rossi são aqueles em que o conservadorismo retrógrado (até para os padrões da época) de seu personagem ganham os holofotes, culminando num final apoteótico que funciona espetacularmente bem como uma ode à liberdade, em vários sentidos.
Pena que logo em seguida, Gloria! volte a tropeçar, recorrendo ao batidíssimo recurso da carta que resume os finais dos personagens. Obstáculos que, se removidos fossem, transformariam o longa-metragem num atestado inquestionável do poder da Arte para transformar a vida das pessoas. Ou, em outras palavras, numa das melhores experiências promovidas por esta edição do Festival do Rio.
NOTA 7
Black Tea – O Aroma do Amor
(Black Tea, França/Luxemburgo/Taiwan/Mauritânia/China)
Integrando a mostra competitiva do mais recente Festival de Berlim, assim como Gloria!, Black Tea – O Aroma do Amor, novo longa-metragem de Abderrahmane Sissako, nem de longe lembra o brilhantismo de Timbuktu, trabalho anterior do cineasta mauritano e que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2014.
Apesar de bem construído visualmente, graças não somente à fotografia saturada de Aymerick Pilarski (A Grande Muralha), mas também ao design de produção de Véronique Sacrez (Amor Eterno) – que criam imagens harmoniosas através da combinação de cores como vermelho (normalmente lanternas), dourado e marrom, a produção apresenta um casal que falha miseravelmente no requisito básico para qualquer romance cinematográfico: torcer para ficarem juntos.
Interpretando uma marfinense que se muda para a China em busca de uma vida melhor, Nina Melo (Faces de Uma Mulher) até tenta criar uma protagonista forte e simpática, mas esbarra em diálogos que só fragilizam a personagem, seja pelo tom ridículo com que se gaba do fato de estar saindo com um habitante local (“meu homem é chinês”), ou pelo embate contraditório que tem com uma amiga “se não é feliz aqui, volte para o lugar de onde veio!”.
E afinal de contas, o que diabos Nina vê em Cal (Han Cheng, de Um Dia de Verão), sujeito que até chega a despertar curiosidade no início, especialmente na sequência onde explica a liturgia do chá, sua maior paixão, mas depois se revela extremamente entediante, refletindo o tom pretensioso do roteiro. O cidadão simplesmente tem a mania de falar em tom solene, como se estivesse declamando um poema ao invés de conversando. E suas “pérolas de sabedoria” soam como frases retiradas de palestras motivacionais, algo piorado pela importância incutida em suas inflexões (“não se arrependa do passado e nem se preocupe com o futuro! Viver é coexistir entre passado e futuro”). Não bastasse o fato de ser um chato de galocha, o homem, tão seguro em suas palavras e posando de sábio, estranhamente se cala diante do ex-sogro quando este vocifera atrocidades de cunho racista na presença de Nina. Ao que parece, idade não é garantia de sabedoria...
Mas a direção também perde o foco ao se dispersar entre vários coadjuvantes, soando prolixa e perdendo o ritmo ao dar espaço para personagens que jamais fazem jus ao tempo de tela que recebem. Para piorar, o roteiro coescrito por Abderrahmane Sissako e Kessen Tall (parceiros também em Timbuktu, por incrível que pareça) escorrega em diálogos expositivos (“essa era a frase mais dita pelo seu melhor amigo antes de se mudar para o México”) e ainda é prejudicado pela trilha sonora do israelense Armand Amar (O Concerto), que tenta guiar as emoções do espectador ao sublinhar a atmosfera de cada cena.
Por fim, há uma sequência (puramente novelesca) em que é possível resumir Black Tea - O Aroma do Amor, um fracasso narrativo de grandes proporções: em determinado momento, o filho de Cal, interpretado por Michael Cheng, o flagra num instante íntimo com Nina. Cheng caminha até receber o foco da câmera (quase é possível sentir quando ele pisa na marcação), faz uma expressão de choque e sai de cena. É um momento breve, mas tão mecânico em sua encenação e tão rasteiro no conflito que busca criar, que serve como um espelho para todo o longa-metragem em si.
NOTA 3