Festival do Rio 2024 | Dia 5
Mad God (Idem, Estados Unidos)
Muitos podem não conhecer Phil Tippett, mas seu trabalho é mundialmente famoso. O californiano é um daqueles gênios que desaparecem diante do brilhantismo de suas criações. A excelência no campo dos efeitos visuais (práticos, vale dizer), rendeu Oscars a obras como Star Wars – O Retorno de Jedi (1983) e Jurassic Park (1993) alçando-o para o mais alto patamar dentro da Indústria. Por consequência, fundou o Tippets Visual Effects Studio, referência na animação de personagens 3D em computação gráfica e, como se não bastasse, ainda aprimorou o stop motion, desenvolvendo em parceria com a Industrial Light & Magic de George Lucas a variação Go-Motion. A paixão por essa antiga e artesanal técnica foi justamente o combustível para criar este Mad God, projeto de seus sonhos que levou três décadas para ser concluído e finalmente chega ao público carioca.
Antes de mais nada, cabe um alerta para aqueles que resolverem se aventurar no mundo sombrio e grotesco concebido pelo premiado animador. Tippett não demonstra apego à ideia tradicional de costurar uma estrutura narrativa minimamente coesa para acomodar suas ideias. Tentar entender Mad God como uma história linear e coerente não é apenas um exercício de futilidade ou um desperdício de esforço cognitivo, mas principalmente uma tarefa tão difícil quanto aquela autoimposta por seu autor, tanto que demorou trinta anos para ser concluída, é bom lembrar.
A projeção começa com uma citação direta à Bíblia, na qual o Deus do Antigo Testamento, punitivo e implacável, joga uma fresta de luz sobre o mundo miltoniano imaginado por Tippett:
“Se me desobedecerem e forem hostis a mim... agirei contra vocês com ira e hostilidade. Eu, de minha parte, os disciplinarei sete vezes por seus pecados. Comerão a carne de seus filhos e filhas. Destruirei seus altares de adoração e derrubarei seus locais de incenso (...) e amontoarei seus corpos sobre seus ídolos mortos. Eu vou desprezá-los, deixarei suas cidades em ruínas (...) e desolarei seus santuários (...) e não saborearei seu cheiro agradável. Farei que a terra fique desolada para que seus inimigos que a habitam fiquem espantados... e eu os dispersarei entre as nações (...) e desembainharei minha espada contra vocês. Suas terras serão em desoladas e as vossas cidades serão desertas” (Levítico 26: 27-33)
Depois disso, começa um desfile de segmentos iniciado por uma impactante sequência envolvendo a Torre de Babel. O cenário é sombrio, a trilha sonora incongruente (ora erudita, ora à base de sintetizadores) evoca uma atmosfera oitentista na qual criaturas que mais parecem rascunhos não aproveitados em Star Wars (ou chefões do game Dark Souls) lutam pela sobrevivência, até que um humanoide vestindo roupas de couro e uma máscara de gás desce num invólucro metálico. As profundezas desse mundo escondem aberrações e deformidades inimagináveis fazendo de Mad God uma experiência próxima a um pesadelo e é essa sensação que acaba se sobrepondo a qualquer tentativa de ligar os pontos a fim de enxergar um enredo.
As elucubrações de Tippett sobre um Deus que não nos ama trazem imagens impactantes que remetem desde a criação do universo até metáforas para estigmas sociais, como os trabalhadores braçais criados a partir do excremento de guerreiros, tão frágeis quanto descartáveis, meros instrumentos daqueles que se sobrepõem em hierarquia. Os bonecos humanoides, aparentemente feitos de cotão, são dilacerados das formas mais cruéis possíveis e, nesse ponto, até um monolito serve como arma.
Reflexões isoladas que, quando tiradas do papel, servem para trazer algum embasamento aos blocos criados a mão e que se beneficiam, inclusive, de cenas com atores de verdade. Não há uma linha de diálogo sequer e a luz é ainda mais rara do que qualquer vestígio de cor (reservada para uma sequência que mais parece a versão distorcida de uma das criações de Lewis Carroll).
O design de produção, em seu propósito de replicar formas e elementos do steampunk para manter o espectador ao mesmo tempo enojado e fascinado, é um triunfo antológico, tão impressionante quanto a qualidade da animação, o que não é uma surpresa quando lembramos de seu autor. A diversidade exuberante de criaturas é o único atrativo capaz de rivalizar com o ambiente na competição pela nossa admiração.
A loucura psicodélica dos minutos finais quase ofusca o paralelo abstrato construído por Tippett durante os oitenta minutos anteriores, quando a referência ao Inferno de Dante se revela com mais clareza através do Assassino (como é identificado o personagem mascarado), descendo às profundezas de um mundo distópico (que talvez seja o que sobrou da Terra) com a clara missão de pôr fim ao ciclo destrutivo ao qual pertencemos como espécie, condenados a repetir.
Mais do que fazer (ou não) sentido, o que realmente importa é a experiência meticulosamente criada por Phil Tippett para jamais desaparecer de nossa memória.
NOTA 7,5
Baby (Idem, Brasil)
Em Baby, Wellington (João Pedro Mariano) é um jovem de 18 anos que acaba de ser libertado de um centro de detenção juvenil (a popular FEBEM), onde cumpriu pena por um crime jamais revelado. Seu primeiro impulso é ligar para os pais, mas o antigo lar que ele conhecia, já não existe mais. Nesse ponto, ficamos sabendo que o rapaz era renegado pelo próprio pai em função de sua homossexualidade e a prisão foi o estopim para que um rompimento acontecesse. Abandonado à própria sorte (sua mãe até hesita em dar o novo endereço), ele se reúne a velhos amigos, mas é num cinema pornô que ele conhece alguém capaz de fornecer o alicerce emocional que tanto procura.
Ronaldo (Ricardo Teodoro) é um trabalhador sexual experiente, na faixa dos 40 anos que enxerga potencial em Wellington, cuja beleza jovial pode ser usada como sustento. Os dois iniciam uma amizade colorida que rapidamente se transforma em parceria de negócios, quando Ronaldo ajuda o protagonista a se estabelecer como garoto de programa. O rapaz faz sucesso, principalmente com homens mais velhos, o que acaba desequilibrando a relação, antes estável, que possuía com Ronaldo.
Premiado na Semana da Crítica da mais recente edição do Festival de Cannes (Ator Revelação para Teodoro), Baby poderia ser considerado uma aposta de alto risco, não fosse a segurança exibida por seu diretor, o mineiro Marcelo Caetano (do elogiado Corpo Elétrico). Afinal, ele escala dois novatos para os papéis mais importantes de um longa-metragem desafiador, logrando imenso êxito ao extrair performances espetaculares de ambos.
Da mesma maneira, o roteiro concebido pelo cineasta ao lado de Gabriel Domingues oferece farto material para que Mariano e Teodoro construam personagens fortes, multifacetados e que estabelecem uma conexão instantânea com o espectador. Perceba como a natureza humilde de Wellington não o impede de agir com firmeza para preservar a própria dignidade e como aos poucos adquire confiança suficiente para repelir quaisquer comportamentos tóxicos. O próprio apelido “baby”, recebido em função de sua inexperiência (não apenas no trabalho, mas principalmente na vida), é assumido num momento que representa um ponto de virada dentro da trama. Já Ronaldo segue uma curva dramática oposta e Teodoro é certeiro ao ilustrar as mudanças sofridas pelo personagem.
Baby também é eficiente ao mostrar os diversos significados que a palavra “família” vem ganhando nos últimos anos, algo ilustrado pela busca de Wellington por seus pais, sendo que seu verdadeiro porto seguro emocional sempre esteve bem à sua frente. Em letras miúdas, é uma forma de alfinetar a suposta “tradicional família brasileira” enquanto exalta a diversidade e a pluralidade. A mesma sexualidade que o levou a ser renegado pelo próprio pai, é o motivo que o reúne com os amigos. O ponto alto da história, aliás, é uma conversa reveladora entre Wellington e um cliente recorrente, na qual o homem lamenta ter crescido numa época muito mais dura, sendo muito menos difícil assumir relacionamentos homoafetivos hoje em dia. O sentimento de pertencimento, vem da triste realidade LGBTQIA+, onde o suporte e a resiliência são fundamentais.
Baby é um retrato moderno e sensível de uma São Paulo representada como um mosaico de diferentes ambientes e tribos, capturado pela lente de um diretor em franca ascensão no Cinema nacional.
NOTA 8
Toxic (Akiplėša, 2024)
Narrativas de amadurecimento estão presentes desde as primeiras edições do Festival do Rio, uma tradição que se repete em 2024 com ao menos dez filmes (o próprio site oficial do evento traz um artigo sobre isso). Era inevitável incluir algum na minha programação e, para minha surpresa, estou escrevendo sobre o terceiro coming of age desta edição e o festival mal chegou à metade! Assim como aconteceu com o ótimo Três Quilômetros Para o Fim do Mundo e o bom Bird, Toxic ilustra bem as dificuldades que a vida nos impõem durante a adolescência.
Vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, o longa-metragem escrito e dirigido por Saule Bliuvaite acompanha não uma, mas duas jornadas de autodescoberta. Marija (Vesta Matulyte) e Kristina (Ieva Rupeikaite) iniciam a história como inimigas, graças a um incidente envolvendo uma calça jeans, mas eventualmente acabam formando um laço difícil de quebrar quando percebem que a união pode facilitar e muito na hora de atravessar uma fase tão conturbada quanto a adolescência.
Especialmente quando se vive num lugar sujo, repleto de pichações e sem perspectiva alguma, como um beco sem saída disfarçado de cidade industrial. Não por acaso, as duas estão desesperadas para seguir a vida em outro lugar. Inclusive, até um adulto chega a pedir à Kristina para que dê um jeito de sair de lá. E a forma encontrada para tal é uma agência de casting que promete transformá-las em modelos, desde que um rigoroso programa sendo seguido. Mas elas descobrirão que para entrar no mundo da moda, deverão pagar um alto preço.
O sonho de viajar pelo mundo desfilando por marcas famosas não é tão simples quanto parece e é nesse momento que a narrativa de amadurecimento converge com uma abordagem que denuncia cruamente a impiedosa Indústria Fashion. Padrões de beleza inalcançáveis e rivalidades brutas são apenas alguns dos problemas que impactam diretamente na saúde mental de meninas inocentes. Aliás, até a saúde física é frontalmente atacada, já que a volúpia por exibir um corpo que desafia os limites do aceitável, leva uma das protagonistas a buscar um comprimido contendo ovos de tênia, uma prática cada vez mais comum na Europa por quem quer emagrecer rapidamente.
E o universo de Marija e Kristina não envolve lares calorosos ou sequer conforto. A primeira, acabou de se mudar para a casa da avó, sofrendo bullying na escola por ser manca e introspectiva, enquanto a segunda vive com o tipo de pai que paga a própria filha para “dar uma volta” e deixá-lo a sós para se divertir com a namorada. Isso não muda o fato de serem duas crianças à deriva no mundo, sem a presença de alguém mais velho para apontar caminhos seguros a serem seguidos.
Tudo isso filmado em gloriosos 16mm, com direito a legenda “queimada”, grãos estourando e todo os elementos que marcavam essa experiência até meados dos anos 2000, na fase pré-digital do Cinema. Mas a opção por essa nostálgica tecnologia analógica vai ao encontro da proposta quase documental de Toxic, retratando um passado não muito distante. A razão de aspecto quadrada e os planos quase estáticos reforçam a ideia de um ambiente opressor e que parece não avançar. Bliuvaite, ao lado do diretor de fotografia Vytautas Katkus, cria imagens impactantes, seja pela beleza estética de um passeio de bicicleta ao entardecer, ou pelo simbolismo de uma cena filmada de dentro de um armário escolar.
Mas o enredo não consegue acompanhar seus predicados técnicos e esbarra em tropos melhor aproveitados em obras semelhantes. Anorexia, bullying, lares quebrados e desesperança não são novidades num coming of age, muito pelo contrário e a atmosfera cadenciada não ajuda, ainda mais quando antevemos alguns caminhos a serem tomados pelo roteiro.
Trocando originalidade pelo registro quase documental de uma denúncia, Toxic se apoia na urgência de seus temas para amenizar o coming of age enferrujado que serve de estrutura.
NOTA 6
Parthenope (Idem, Itália)
Afeito a narrativas grandiosas o cineasta italiano Paolo Sorrentino (figurinha carimbada no Festival do Rio) usa o mito de Parténope para criar mais uma carta de amor à Nápoles disfarçada de filme, que por sinal é a desculpa perfeita para a concepção de uma experiência calcada na beleza da imagem. Partenope, na mitologia grega é uma das sereias originais, sendo responsável pela fundação da cidade homônima e que mais tarde seria rebatizada como “Neápolis” (Cidade Nova), hoje conhecida como Nápoles.
No filme atualmente em cartaz no Festival do Rio, Sorrentino traz a sereia para o mundo moderno, mais precisamente 1950, quando nasce nas águas aquela que viria a enlouquecer os homens apenas com sua beleza, dispensando os cânticos. Aliás, a inspiração para por aí, já que não há aproximação com o surreal e tampouco o lúdico. Na imaginação do cineasta vencedor do Oscar, Parthenope é ainda mais inteligente do que bela, e sua curiosidade a leva inevitavelmente para o mundo acadêmico, onde é apresentada ao rabugento professor Marotta (Silvio Orlando, magnífico como sempre). Ele é uma das poucas pessoas imunes ao encanto da moça, negando-se até mesmo a tirar sua maior dúvida: O que é a Antropologia? Experiente e brilhante, ele sabe que privá-la do significado, estimulará a busca com suas próprias ferramentas. E é exatamente o que ela faz.
Paolo Sorrentino, porém, parece preso no limbo entre dois de seus três últimos longas, A Juventude (2013), A Grande Beleza (2013) e A Mão de Deus (2021). Deste último, o mais passional (e meu favorito) de sua carreira, reutiliza o amor pelo Napoli (seu clube de coração) e compõe a personagem central com os temas dos dois filmes restantes. Juventude e beleza parecem a maior obsessão de um cineasta avesso a histórias lineares, flutuando pelo tempo enquanto explora ao máximo as paisagens napolitanas.
Celeste Dalla Porta debuta nos cinemas encarnando uma armadilha para qualquer atriz, pois a ânsia do diretor e roteirista italiano em cobrir Parthenope com o véu do mistério, acaba por torná-la oca, uma entidade que atravessa o tempo apenas para acumular conhecimento e enfeitiçar os homens. E o fato de demorar décadas para começar a envelhecer, só reforça o caráter mítico da personagem, que no final revela ser tão mundana como qualquer outra. Aparentemente, quando atingimos uma certa idade, perdemos a beleza e isso, para Sorrentino, se você for uma mulher bem-dotada nesse aspecto, significa que você também perde o interesse dele.
Como em todo trabalho assinado pelo diretor, o design de produção é um luxo à parte, com cenários grandiosos, bem-acabados e valorizados por uma fotografia solar. Nápoles é uma personagem por si só, servindo como musa ao ceder suas incontáveis belezas naturais para a câmera apaixonada de Sorrentino, que não hesita em se referir à cidade como “a mais bonita do mundo”.
A participação mais que especial de Silvio Orlando soa até irônica quando nos damos conta de que Parthenope é tudo aquilo que seria reprovado por seu Professor Marotta. Uma divagação longa e superficial, ainda que estonteante como sua protagonista, que se preocupa mais em gritar pérolas de sabedoria ao invés de buscar algum tipo de conexão entre si capaz de justificar o envolvimento do espectador. Ou será que Paolo Sorrentino realmente achou que objetificar sua estrela seria o bastante para hipnotizar o seu público?
NOTA 5,5