Festival do Rio 2024 | Dia 4
- Guilherme Cândido
- 8 de out. de 2024
- 11 min de leitura
A Herança (Idem, Brasil)
Muito se reclama, com alguma razão, sobre a escassez de filmes de gênero no Brasil, um Cinema que se enraizou no imaginário do espectador casual como dependente de comédias e histórias ambientadas em favelas. O cenário vem mudando nos últimos anos, não apenas com o investimento cada vez maior de plataformas de streaming, mas também através da onda de cinebiografias de estrelas da música brasileira. O que está difícil de mudar é a relação do povo brasileiro com a sua produção cinematográfica, mas essa é uma questão mais profunda, envolvendo dificuldades de distribuição, por exemplo. O Cinema Nacional vai além das neochanchadas globais, mas infelizmente, só tem o prazer de experimentar a pulsação de nossas grandes histórias, tratadas com o devido carinho e contadas com o primor técnico-narrativo que muitos desconhecem, quem vai a festivais e/ou quem consegue esperar para ver essas mesmas obras estrearem em bairros nobres e horários pouco atraentes nas demais praças.
A Herança é exatamente esse tipo de produção, concebida com esmero e amor por uma equipe dedicada e talentosa, qualidades que transparecem na tela. Um terror brasileiro de incontestável qualidade. Mas será que chegará ao demais brasileiros? Espero que sim.
Idealizado pelo carioca João Cândido Zacharias, o simpático diretor estreante que fez questão de apresentar seu filme para uma plateia heterogênea, agradecendo por saírem de casa para ver um filme de terror brasileiro, o enredo acompanha os namorados Thomas (Diego Montez, do bom O Sequestro do Voo 375) e Beni (Yohan Levy, de Em Nome da Honra). O primeiro, um estrangeiro com dificuldades para permanecer legal na Europa. O segundo, um europeu nato, tentando administrar a situação. O jogo vira quando Thomas é convidado para o enterro da avó no Brasil. Aqui, ele fica sabendo ter herdado uma enorme casa colonial, daquelas fáceis de se imaginar assombrada. Com direito a um lago particular e terra farta, o jovem inicialmente renega o sentimento de pertencimento, que aos poucos é encorajado pelas tias Victoria (Analú Prestes, de Avenida Beira-Mar, também exibido neste Festival do Rio) e Berta (Cristina Pereira, presente no fantástico A Vida Invisível). São elas que aparecem para receberem os amantes.
Enquanto Thomas se mostra cada vez mais seduzido pela hospitalidade das tias, Beni percebe algo estranho no ar, à medida que o passado do amado vem à tona.
O terror de casa mal-assombrada é um subgênero de tradição centenária, sabendo disso, o roteiro escrito pelo próprio diretor em parceria com Fernando Toste (do bacana A Divisão), parte do pressuposto que o público conhece as regras do jogo, evitando perder tempo com explicações desnecessárias. Por outro lado, sente-se falta de uma atenção especial à geografia do lugar, elemento por vezes confuso dentro da narrativa. Ao invés de mostrar um pouco mais do casarão, a equipe de som se certifica de marcar território, apostando nos tradicionais rangidos e estalos da madeira antiga.
O ponto alto do projeto, no entanto, é a homogeneidade do elenco, composto também de membros extremamente comprometidos. Diego Montez é uma revelação, percorrendo o arco dramático de Thomas com precisão, da mesma forma que Yohan absorve bem o arquétipo do forasteiro. Beni torna-se peça fundamental por possuir um olhar de fora e, portanto, mais confiável da situação. E se Ana Carbatti (Um Tio Quase Perfeito 2) aproveita o tempo limitado de tela para encarnar o típico straight face (único personagem sério e responsável por levar os protagonistas à situação-chave), Prestes e Pereira não são menos do que excepcionais adições ao elenco, trazendo calor humano ao mesmo tempo que evocando um tom sombrio. Fechando o elenco, Gilda Nomacce, ícone do horror brasileiro, é homenageada com uma participação especial mergulhado no camp, fazendo jus à sua brilhante carreira.
Com referências pesadas ao horror italiano da década de 70 (o famoso Giallo), Zacharias mostra pleno domínio dos signos do terror, demonstrando inteligência ao evitar jump scares fáceis mesmo quando a oportunidade surge (quando alguém é visto encarando a parede). Aliás, os fãs do gênero talvez sintam falta de arrepios e sustos mais contundentes, embora haja uma parcela aceitável de imagens grotescas. Da mesma forma, a criação da atmosfera deve muito à trilha de Bernardo Uzeda, que mantém a narrativa refém de seus acordes grandiloquentes.
No final das contas, A Herança é um tipo de filme que não arrisca muito em sua abordagem do terror, cercando-se de elementos básicos, mas empregando-os de forma eficaz, oferecendo uma experiência tremendamente satisfatória. Que mais pessoas possam assistí-lo e comprovar a potência criativa do Cinema Brasileiro.
NOTA 7
A Garota da Agulha
(The Girl With the Needle, Dinamarca/Polônia/Suécia)
Não sei se tive sorte ou se a curadoria dessa edição do Festival do Rio foi realmente certeira, reservando um filme impactante para cada dia, até aqui. Se no primeiro dia, O Quarto ao Lado despontou como candidato a melhor filme da seleção, Os Enforcados tratou de acirrar a disputa no dia seguinte. Esta quarta parte da maratona favorita dos cinéfilos cariocas tratou de apresentar seu próprio exemplar. A Garota da Agulha não chega a ser brilhante como os longas de Almodóvar e Coimbra, mas faz jus ao termo “impactante”.
Indicado à Palma de Ouro esse ano, Pigen Med Nålen, no original, se passa na Copenhague dos pós-Guerra, concentrando-se na vida de Karoline, costureira de uma fábrica de uniformes para o exército que se encontra em apuros financeiros mesmo trabalhando em turnos dobrados. Seu marido há muito tempo deixou de dar notícias, mas ela não pode receber auxílio do governo, por não ter como comprovar a viuvez. Desaparecimento e morte são palavras completamente diferentes, mas, no momento, possuem o mesmo significado para Karoline.
Não demora até a protagonista ser despejada, mas a vida parece finalmente sorrir para ela assim que um novo apartamento surge no horizonte. A esperança reside em Jørgen, chefe da fábrica, cada vez mais encorajado para flertar com a vulnerável funcionária. Ele oferece um ombro amigo, tenta animar a moça e, inevitavelmente, acaba se envolvendo romanticamente com ela. O resultado não pode ser outro senão uma gravidez. Desesperada, ela vê o bebê como a garantia de uma vida melhor ao lado do futuro marido (sim, ele topa se casar). Mas como desgraça pouca é bobagem, a mãe do rapaz entra em cena para tirar Karoline da jogada, atirando-a novamente à sarjeta.
Grávida, sem dinheiro e desempregada, ela segue seu calvário, até que o bebê nasce e agrava a situação. Se é incapaz de sustentar a si mesma, como criar um filho? É nesse ponto que entra Dagmar, responsável por um esquema clandestino de adoção que se mostra ajudar Karoline. Além de levar o recém-nascido para uma família em melhores condições financeiras, ela oferece casa, comida e emprego para Karoline, aos poucos formando um laço improvável. Só que o espectador, à essa altura, já sabe que tempos de calmaria são curtos na vida da protagonista e pode ter certeza que quando a tempestade vier, será trágica.
E trágica é também uma boa forma de definir A Garota da Agulha, já que o cineasta sueco Magnus von Horn não demonstra a menor disposição de aliviar a experiência para o espectador. Pelo contrário, ela enfileira catástrofes que só aumentam de proporção, precisando de uma resiliência semelhante à de Karoline para seguir acompanhando. Não pense, porém, que essa espiral dramática é disposta gratuitamente dentro do enredo, pois o script assinado por von Horn ao lado de Line Langebek Knudsen prepara o terreno para cada acontecimento marcante.
Até culminar num final absolutamente chocante, quando a trajetória de Karoline se entrelaça com a de uma figura real (e se você, como eu, não sabia que o filme é baseado em fatos reais, certifique-se de manter assim). Ganha o espectador que tiver menos informações, potencializando o impacto de uma história com performances fortes e uma direção determinada e mandar seu público em frangalhos para fora do cinema.
E já que mencionei as performances, é preciso aplaudir o poder de Vic Carmen Sonne, que evita as cascas de banana oferecidas pelo melodrama e é inteligente ao adotar uma composição marcada pela disciplina. Em igual medida, Trine Dyrholm, de clássicos escandinavos como Em Um Mundo Melhor e Rainha de Copas, tem ainda mais material para trabalhar a complexidade de sua personagem.
Difícil de assistir e encerrando da forma mais desoladora possível, A Garota da Agulha coloca a Dinamarca em boa posição na disputa por uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional.
NOTA 8,5
A Mais Poderosa das Cargas
(La Plus Précieuse des Marchandises, 2024)
A Mais Preciosa das Cargas tem mais aparência de futuro material didático, com professores se esbaldando com seu conteúdo, do que de um competidor pela Palma de Ouro em Cannes. Michel Hazanavicius, vencedor do Oscar pelo fenômeno adorável O Artista (2011) volta ao Festival do Rio um ano depois de nos presentear com o hilário Corta! Uma de suas melhores comédias em anos. Por mais que envolva uma pauta espinhosa como o Holocausto, o novo filme de Hazanavicius parece menor, não apenas em duração (apenas 81 minutos), mas também em escopo. E se A Mais Preciosa das Cargas não decola, grande parte da culpa deve ser creditada ao próprio diretor e sua condução claudicante.
A história gira em torno de um casal de lenhadores vivendo no limite da extrema pobreza, tanto que o desejo da mulher (o casal jamais é identificado) de ter um filho é recusado de pronto pelo marido. Como eles alimentariam um bebê se mal conseguem alimentar a si mesmos? Mas ela não perde a esperança, sempre rezando para o Deus Trem lhe agraciar com uma bênção. O que a personagem não sabe é que a tal locomotiva transporta judeus diretamente para Auschwitz. E não é que suas preces realmente foram atendidas? Num belo dia, um bebê acaba sendo descartado no meio da neve e é prontamente acolhido pela lenhadora, embora desperte a fúria do lenhador. Aos poucos, porém, o coração do homem abrutalhado vai se amolecendo e transformando-o num protetor ferrenho.
Adaptada do livro homônimo escrito por Jean-Claude Grumberg, a premissa é promissora, mas Michel Hazanavicius tem dificuldade para acomodar seu tom tradicionalmente leve numa trama essencialmente pesada. E quando o francês finalmente resolve abraçar a natureza sombria da obra, erra feio, pesando a mão numa sequência tão grotesca quanto gratuita (as imagens dos rostos das vítimas num quadro expressionista por excelência). São altos e baixos dentro de um filme tecnicamente primoroso. A animação, fluida e elegante, se aproveita de traços grossos que refletem a dureza daquele universo.
No elenco de vozes, Gregory Gadebois (A Sindicalista), normalmente o gigante gentil, aqui desfruta de um tempo maior para trabalhar a figura do lenhador como presença ameaçadora e o emblemático Jean-Louis Trintignant (Amour), falecido recentemente, serve como o narrador, sempre enfatizando o formato lúdico do longa. Dominique Blanc (Destemida), incute bondade e fragilidade na lenhadora, características essenciais tanto para gerar empatia, como para enriquecer sua relação com o marido. Quase esqueço de registrar a passagem do veterano Denis Podalydès (do razoável Cinema é Uma Droga Pesada), emprestando sua voz para um personagem surpreendente e cativante.
Caso estivéssemos num ano pouco inspirado em termos de animações, talvez essa obra francesa tivesse melhor sorte. Mas com Divertida Mente 2 arrebatando corações e quebrando recordes de bilheteria e Robô Selvagem se avizinhando, o espaço vai ficando cada vez mais curto e uma indicação ao Oscar de Melhor Animação torna-se mais improvável do que possível.
Num dia marcado pelo desfile de tragédias perpetrado por A Garota da Agulha, A Mais Preciosa das Cargas até tenta fazer o seu próprio, apelando para a poesia a fim de apelar para o lado mais suave de seu diretor, que sabota os próprios esforços no exercício de mesclar duas propostas distintas.
NOTA 6
Infestação (Vermines, França)
Encerrando o quarto dia do Festival do Rio 2024, o terror francês Vermines (no original) chega com atraso aos cinemas cariocas, mais de um ano após sua elogiada première na edição passada de Veneza. Os desavisados que passarem os olhos pelo pôster da produção, podem imaginar mais um filme B derivado de Aracnofobia (1990) e até estão certos quanto à óbvia inspiração do diretor estreante Sébastien Vaniček, mas serão surpreendidos por uma narrativa talhada para agradar aos fãs de filmes de criaturas e atrair novos.
No meio de um deserto do Oriente Médio, um grupo de homens viaja de carro até um local repleto de pedras. Um deles desce e, depois de muito vasculhar, encontra um buraco habilmente escondido pela natureza e que logo se revelará a casa das estrelas da produção. Provocadas por uma fumaça amarela direcionada para dentro do covil, inúmeras aranhas dão o ar da graça, fazendo a alegria de uns (ávidos pela captura de alguns espécimes) e provocando o desespero de um pobre desafortunado, impiedosamente atacado, mas cuja eventual morte não é em vão, pois serve como uma amostra do que nos aguarda.
Entra em cena o jovem Kaleb (Theo Cristine), procurando por algo especial para presentear alguém. Ele convence o dono do estabelecimento – espirituoso ao reivindicar o nome “Ali Express” – a buscar brincos de qualidade nos fundos, onde guarda seu material exclusivo. Ao que parece, o simpático Ali recebe mercadoria contrabandeada, desde joias e artefatos raros até... animais exóticos. É claro que Kaleb “se interessa por tudo” (como o próprio diz) e não demora até fazer uma proposta ao vendedor por uma aranha aparentemente debilitada (maldito jet lag!). Nosso bravo herói batiza a criatura de Rihanna, colocando-a numa caixa de sapato com a promessa de arranjar um lar melhor em breve. O furo na caixa, negligenciado pelo protagonista, é um convite para a diva pop de sucessos como “Umbrella” e “Only Girl” desbravar o mundo e não é preciso ter visto muitos filmes de terror para saber o que isso significa.
Vaniček, recentemente contratado para comandar um vindouro capítulo da franquia Evil Dead, mostra que tem algumas boas cartas na manga e não somente como diretor, pois o roteiro escrito ao lado de Florent Bernard destrincha elementos normalmente desprezados pelo gênero. Kaleb, por exemplo, é o típico sujeito que gosta de tudo certinho (o famoso “caxias”), mas não deixa de exibir a inconsequência inerente à juventude. Essa contradição enriquece a composição de Theo Cristine, irritante, mas merecedor de nossa torcida justamente por soar falho, humano. Seus amigos são igualmente complexos, cada um ostentando características marcantes e nutrindo laços improváveis que aos poucos se descortinam ao público.
Quando o divertido Jordy interpretado pelo ótimo Finnegan Oldfield (destaque também de Corta!), reclama de dores na perna, mal imaginamos que seu ferimento se deve a um evento diretamente conectado a outro personagem. Da mesma forma, a relação tensionada entre Kaleb e a irmã possui muito mais camadas do que parece. E também há um bom motivo para o protagonista se recusar a jurar, mas você só descobrirá nos momentos finais do filme.
Essa eficácia na construção da teia dramática (desculpe, não resisti) de nada adiantaria caso o horror não fosse igualmente competente. Infestação, vale dizer, não é dos mais originais (tropos de Ataque ao Prédio, Quarentena e Predadores Assassinos são facilmente reconhecíveis), mas o uso de alguns clichês e jump scares previsíveis se contrapõem a uma atmosfera de inquietude que atravessa a narrativa de forma cortante e ininterrupta. O medo primitivo e universal do que se esconde nas sombras faz o trabalho de Sébastien Vaniček parecer fácil, mas é preciso alguma habilidade e boas referências para envolver o espectador do início ao fim. As homenagens à Alien e enquadramentos sutis e poderosos como o espelho quebrado (lembrando uma teia de aranha) de um morador revelam o potencial do cineasta.
Menos sutil é a crítica social desenvolvida pelo script e antecipada pelo título original em francês, com a palavra “Vermes” servindo à alegoria política desgastada, mas bem ajambrada. Nesse ponto, a arquitetura pós-moderna do complexo residencial Arènes de Picasso mostra que também há beleza nos subúrbios (lar de 80% dos habitantes da Cidade Luz), mesmo que a força policial tenha dificuldades para enxergar, agindo como o braço opressor tão denunciado pelo Cinema Contemporâneo. Outra alfinetada é representada pelo personagem branco que sempre liga os negros às drogas.
Infelizmente, o roteiro também reproduz alguns dos piores cacoetes da cartilha de filmes modernos de terror, como a irritante mania de verbalizar o que já está claro (o quarto de Kaleb, por si só, conta praticamente tudo o que precisamos saber de sua história) e ainda comete o pecado de fazer personagens tão multifacetados tomarem decisões tão estúpidas. A péssima ideia de atirar um coquetel molotov em bichos já neutralizados não deveria servir como subterfúgio para uma sequência de perseguição (por melhor que seja), assim como um personagem inteligente jamais jogaria fora uma mochila valiosíssima (acertar uma aranha no meio de outras dezenas?).
Deslizes que não chegam a comprometer ou invalidar essa mistura robusta e cinética de bons filmes concentrados num só ambiente, pois Infestação é o tipo de narrativa que atrai pela promessa do choque, nos mantém pelos arrepios e se sustenta pelo diferencial de seu apego aos detalhes.
NOTA 7,5