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Festival do Rio 2024 | Dia 3

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Daddio (Idem, Estados Unidos)


Filmes que se passam inteiramente no interior de um carro são fascinantes por natureza. Representam um desafio não apenas para a equipe criativa, mas também para o espectador. Algumas maravilhas já foram feitas e a mais recente a emergir na memória é Locke, produção britânica estrelada por Tom Hardy. Apesar de ser, essencialmente, a história de um homem dirigindo enquanto conversa pelo viva-voz do celular com diversos outros personagens, torna-se uma experiência envolvente e até sofisticada, principalmente por conta da montagem e da direção (nesse caso, a cargo de Justine Wright e Steven Knight, respectivamente). Daddio vai pelo mesmo caminho sem tentar revolucionar o formato, revelando-se a decisão mais acertada tomada por Chisty Hall.


Criadora da finada série I’m Not Okay With This, da Netflix, Hall ficou famosa esse ano após assinar o roteiro que adaptou o best-seller É Assim Que Acaba e agora resolve dar seus primeiros passos como cineasta. Escrita também por ela, a história começa com uma mulher saindo do aeroporto JFK em Nova York indo direto ao ponto de táxi, seu transporte para casa. Uma vez dentro do veículo, ela conhece Clark, o motorista falastrão, com quem conversa tanto e sobre assuntos tão diversos quanto íntimos, a ponto de firmar um improvável vínculo.


Vividos, respectivamente, por Dakota Johnson e Sean Penn, os personagens não soam falsos quando resolvem falar de suas vidas particulares, beneficiando-se da química entre os atores. Johnson, que após finalmente recuperar a credibilidade perdida em Cinquenta Tons de Cinza resolveu mandar tudo pelos ares novamente ao protagonizar o infame Madame Teia, mas já teve seu talento atestado em ótimas produções como The Friend e A Filha Perdida. Então não chega a ser surpreendente vê-la navegando pela mente conturbada e misteriosa da jovem passageira (jamais identificada) com desenvoltura e carisma.


Já Sean Penn, um dos maiores atores de sua geração e com dois Oscars no currículo, andava meio sumido desde que surgiu irreconhecível ao lado de Julia Roberts na série Gastlit, do Prime Video. A essa altura da carreira, é compreensível que Penn não tenha tanto apego com os projetos que escolhe, mas Daddio felizmente foi uma boa escolha. Até porque, ele se sai bem ao incorporar a típica “sabedoria taxista”, dando conselhos nem sempre inspirados e os traços misóginos que aparecem em suas frases ficam ainda mais críveis em virtude da persona durona e, claro, da composição bonachona do californiano. Revelar os temas do papo entre os dois tiraria o maior atrativo do filme, então não espere um detalhamento maior nesse texto.


É importante dizer, por outro lado, que Christy Hall é bem-sucedida ao espalhar algumas peças do quebra-cabeça ao longo da viagem, provocando uma satisfação cinematográfica quando as vemos se encaixando, especialmente aquelas envolvendo o intransigente sujeito que envia mensagens de texto para a passageira e o motivo que levou a moça a sair de Nova York por um curto período. Clark, logicamente, é quem dá o pontapé inicial, instigando a moça após muito insistir. É aquela velha prática do taxista puxando papo (nada envolvendo clima ou futebol, diga-se de passagem).


Como diretora, Hall se sai ainda melhor, principalmente por conseguir dar dinamismo à narrativa ao adicionar pequenos obstáculos durante o percurso. Obras e um grave acidente, por exemplo, são subterfúgios perfeitos para a novata movimentar sua câmera, saindo do carro (e consequentemente da mesmice) ao mostrar um pouco mais dos arredores. É a melhor desculpa possível para que o taxista possa se virar e fitar diretamente a passageira, criando alguns dos melhores momentos da narrativa ao entrar num jogo sobre quem é capaz de contar a história mais dramática (ou algo assim).


Comprovando que a jornada importa mais do que o destino, o filme ainda guarda uma carta na manga para o final, encerrando a projeção com uma última interação emocionante entre Clark e Passageira (através de uma metáfora digna dos melhores taxistas!). Mais cativante e infinitamente mais coeso do que É Assim que Acaba, Daddio pode não ser o filme definitivo sobre viagens de carro, mas certamente fará você querer tornar memorável a sua próxima corrida de Uber.


NOTA 6,5


 

Loucos Por Cinema! (Spectateurs!, França)

 

Recentemente vimos uma onda de cineastas produzindo verdadeiras odes ao Cinema em histórias autobiográficas que buscavam identificar a gênese de cada caso particular de amor à Sétima Arte. Agravados pelo período pandêmico, no qual o exercício da escrita e mesmo do trabalho em si, representava um escape fundamental daquela realidade repleta de incertezas e apreensões. Esse período de longa reclusão forçada gerou uma infinidade de projetos que até hoje ainda são escoados (Deadstream, por exemplo, só chegou ao Brasil anteontem, no Festival do Rio), mas ficou marcada pela tendência de grandes cineastas em mergulharem na própria formação como cinéfilos em primeiro lugar, antes de migrarem para o outro lado da tela.


Foi o caso de Sam Mendes com o regular Império da Luz, de Damien Chazelle com o fracassado Babilônia e também de Steven Spielberg com o fantástico Os Fabelmans. Outros fizeram o mesmo, mas Arnaud Depleschin só agora resolve entrar na brincadeira, o que limita o impacto deste Loucos por Cinema! É como aquele amigo que chega apenas no final da festa, cheio de energia quando todos ao seu redor já estão numa rotação bem menor, uma metáfora que serve tanto para o cineasta francês e seus colegas, como para nós, espectadores e... “loucos por Cinema”.


Depleschin, que vem acumulando indicações à Palma de Ouro desde seu segundo filme, La Sentinelle (1992), recentemente tem dado argumentos para justificar o fato de nunca ter sido reconhecido no Festival de Cannes e o César de Melhor Diretor pelo bom Três Lembranças da Minha Juventude (2015), representa mais uma exceção do que uma regra. No Festival do Rio 2022, vale lembrar, lançou o fraquíssimo Briga Entre Irmãos. E não será dessa vez que o público carioca poderá dizer que viu um grande filme de sua autoria.


O que não deixa de ser doloroso se considerarmos a natureza passional do projeto. É mais que evidente (genuína) a ligação emocional entre o diretor e o Cinema, mas a forma como refaz seus primeiros passos como cinéfilo é, no mínimo, babélica. Ele mistura documentário e ficção, alternando entrevistas, com uma espécie de reconstituição ficcionalizada, reservando espaço também para segmentos didáticos jogando alguma luz sobre a História do Cinema. As intenções são as melhores, mas o traquejo para administrá-las, nem tanto. Jorge Furtado só existe um e, felizmente, é brasileiro.


São vários filmes, dentro do próprio filme, brigando pelo mesmo holofote, sem que o francês se dê conta disso. Pelo contrário, dando asas à sua imaginação impulsiva enquanto abandona a ficção por longos momentos, retomando-a de supetão apenas para se lembrar de que há um documentário para o qual voltar suas atenções. A inserção de trechos de outros filmes só não invade o campo da chantagem emocional, por prestar um merecido tributo a O Exterminador do Futuro (1991), subestimado longa de James Cameron mais lembrado como sucesso comercial e marco tecnológico do que como o clássico complexo e inesquecível que o é, condenado ao preconceito de gênero tão reverberado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.


NOTA 6


 

 Três Quilômetros Para o Fim do Mundo (Trei Kilometri Pâna la Capatul Lumii, Romênia)

 

Emanuel Parvu não é Lukas Dhont, mas também bebe fartamente da fonte dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne e, embora seja possível enxergar uma convergência com o soberbo Close, este Três Quilômetros Para o Fim do Mundo, vencedor da Queer Palm em Cannes, deixa pouca margem para interpretação, optando por fustigar os sentimentos do público através da contundência, ao invés da imaginação.


O roteiro, escrito pelo próprio Parvu em parceria com Miruna Berescu até sugere tomar um rumo semelhante ao do vencedor do Grande Prêmio do Júri em 2022, com um incidente incitante mais enigmático do que elucidativo. O mistério, porém, cai por terra pouco tempo depois e a narrativa se transforma num alerta para aqueles que acreditam num arrefecimento da homofobia. Berescu e Parvu querem mostrar ao mundo que o anacronismo pernicioso, travestido de conservadorismo inocente, permanece uma realidade, com uma pequena vila no interior da Romênia sendo usada como um avatar. O que vemos na tela pode estar acontecendo em qualquer lugar do globo (incluindo o Brasil, com supostos cristãos vomitando ódio em todos os meios de comunicação).


Três Quilômetros Para o Fim do Mundo não é exatamente um filme original se considerarmos as questões levantadas por seu enredo. A produção chega atrasada para um debate que começou há décadas, mas infelizmente ainda não terminou, o que dá brecha para seu posicionamento ser ouvido. O Cinema Queer vem produzindo histórias como as de Adi (Ciprian Chiujdea) - adolescente espancado por ter beijado alguém do mesmo sexo - com uma frequência difícil de acompanhar e o próprio Festival do Rio espelha essa situação em sua curadoria.


O que difere essa produção de tantas outras é a opção por seguir o olhar do opressor ao invés do oprimido, soltando o pobre protagonista num inferno sem qualquer chance de defesa. Essa perspectiva dá aos roteiristas a oportunidade de explorar a ignorância da qual Adi é vítima, sendo encarado como doente por uma sociedade de princípios praticamente medievais, o que explica os pais do garoto recorrerem ao Clero para tentar “curá-lo”. Ouvir o padre local tentar relacionar o comportamento de Adi ao fato deste ter tomado a vacina contra Covid apenas torna contemporâneo o alvo do roteiro.


E se encaramos a sequência do ritual de cura conduzido pelo tal padre como uma passagem quase absurdista, isso se deve à abordagem crua, extremamente realista adotada pela direção, que não tem dificuldade em ilustrar a ignorância da sociedade retratada, ao mesmo tempo em que evita o maniqueísmo na construção de seus membros. Outro ponto positivo é a complexidade na hora de costurar o fundamentalismo religioso enraizado, com os vícios políticos (o clássico quid pro quo), numa prática semelhante ao coronelismo.


Há uma tentativa de humanizar os antagonistas, sempre pessoas gentis querendo resolver o “problema” e até essas qualidades representam um Cavalo de Tróia, pois resultam em gestos imbuídos do mais puro preconceito velado, como aquele comentário horrível dito pelo “cidadão de bem”, que sai “sem querer”, sucedido por um pedido de desculpas “caso tenha ofendido alguém”. O roteiro, ademais, não nos deixa esquecer que Adi é o único que se salva naquele monumento retrógrado, especialmente com a chegada de uma funcionária do Conselho Tutelar, levando o filme a um delicioso terceiro ato que promove uma queda coletiva de máscaras, ilustrando com perfeição o discurso formulado nos quase 100 minutos anteriores e cravando uma triste certeza.


A de que filmes como Três Quilômetros Para o Fim do Mundo ainda são necessários.


NOTA 8


 

Bird (Idem, Reino Unido)


Cineasta com uma inclinação maior para documentários do que para filmes narrativos, Andrea Arnold sabe, como poucos, trabalhar com atores inexperientes em filmes invariavelmente protagonizados por membros da classe trabalhadora. É um ponto em comum com o Cinema humanista do conterrâneo Ken Loach, mas sem dispensar uma assinatura própria. A experiência com o cinema verité ajuda a acomodar essa atmosfera próxima do realismo da pia de cozinha, num jeito tão particular que fez Fish Tank (2009) levar o prêmio do Júri em Cannes. Quinze anos depois, ela retorna ao mais prestigiado festival do mundo com seu mais novo trabalho. Bird também é sua primeira incursão ao Cinema ficcional desde o celebrado American Honey (2016). Ênfase no termo “ficcional”.


Assim como em Fish Tank, a trama de Bird, também concebida por Arnold, acompanha uma adolescente em sua própria jornada de amadurecimento. Ambientação? O subúrbio operário britânico, com um tatuado Barry Keoghan desempenhando o papel de pai da moça. Não se preocupe, o fato de o ator irlandês possuir apenas 31 anos e ostentar um rosto ainda mais jovial é incorporado à narrativa. Pai precoce e espírito livre, Bug (sua paixão por bichos exóticos está tão marcado em sua pele como na mente da filha) possui uma forma meio truncada de ganhar a vida. No entanto, ele deposita todas as fichas num sapo recém-capturado, na esperança de que o animal produza uma secreção pronta para gerar um alucinógeno. Para bom entendedor, meia palavra basta.


Nesse ínterim, Bug ainda está prestes a se casar com a mais nova namorada, coroando um daqueles relacionamentos relâmpagos em que três meses são mais do que suficientes para chancelar o matrimônio. Mas voltemos à Bailey, a jovem protagonista que ainda divide seu espaço com o irmão Hunter (Jason Buda), uma espécie de hooligan do bem, fazendo as vezes de vigilante por considerar os esforços policiais insuficientes. Há ainda um núcleo centrado na mãe de Bailey, (Jasmine Jobson), moradora de um apartamento pequeno, mas não o bastante para impedí-la de abrigar outros três filhos e o namorado abusivo. Todos vivendo suas próprias vidas e Arnold se esforça para espremê-las dentro dos 105 minutos de projeção.


E quando você pensa que todas as cartas já foram postas na mesa, surge Bird (Franz Rogowski, o queridinho do cinema independente europeu), um excêntrico e simpático vagabundo que entra misteriosamente na vida de Bailey. Sua entrada repentina, aliada a uma insuspeita rajada de vento, pode induzir o espectador a encarar o sujeito como uma manifestação da mente fértil e combalida da moça, mas até ele possui seus afazeres dentro da trama, sendo visto, revisto e lembrado pelos pares.


Arnold, vencedora do Oscar de Melhor Curta-Metragem em 2005, conduz a história de Bailey com todo o talento que dela sempre esperamos. Ainda mais quando se tem uma performance tão poderosa quanto a da novata Nykiya Adams, que, de quebra, ainda nutre imensa química com Rogowski, sempre fascinante. Barry Keoghan também faz um bom trabalho ao eliminar a primeira impressão de Bug aos poucos, protagonizando momentos emocionantes e até uma inesperada referência à Saltburn, longa com a participação mais comentada de Keoghan até hoje.


Os demais elementos, como o vigilantismo de Hunter, a crise de gênero de Bailey e até o personagem-título acabam relegados a uma nota de rodapé em meio ao movimentadíssimo enredo costurado por Arnold. Bird, aliás, é muito mais fascinante em virtude de seu intérprete do que por sua criadora. Se no passado a britânica flertou com o realismo fantástico, agora o relacionamento está mais do que consumado, o que gera mais questionamentos do que respostas e talvez seja exatamente o pretendido por ela.


De uma das maiores expoentes do Cinema britânico contemporâneo, espera-se sempre muito mais, sobretudo pelo hiato entre suas produções narrativas, isso, porém, não invalida os méritos artísticos de Bird, um coming of age pouco expressivo, mas que reivindica seu lugar entre os acertos de 2024.


NOTA 7

 

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