top of page

Festival do Rio 2024 | Dia 2

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Deadstream (Idem, Estados Unidos)


Desenvolvido pelo casal Vanessa e Joseph Winter durante a pandemia, Deadstream fez sua estreia no SXSW em 2022, sendo a primeira de muitas produções do Shudder (streaming de terror ainda inédito no Brasil) a desembarcar com atraso nessa edição do Festival do Rio. A espera, no entanto, é recompensada com uma mistura de comédia e terror que deixaria Sam Raimi orgulhoso.


A história, contada no formato “filmagens encontradas” (alguém ainda lembra de Atividade Paranormal?) acompanha Shawn Ruddy (vivido pelo próprio Joseph Winter), um YouTuber famoso por desafiar seus medos em peripécias estúpidas no melhor estilo Jackass em troca de curtidas e visualizações, mas que acaba cancelado na internet após protagonizar um episódio controverso. Algum tempo e um protocolar pedido de desculpas mais tarde, Shawn planeja seu retorno triunfal encarando seu maior medo: o de fantasmas. Para isso, resolve passar uma noite sozinho numa mansão abandonada conhecida como “a mais assombrada dos Estados Unidos”, com a promessa de checar qualquer sinal estranho, caso contrário, o evento (transmitido ao vivo, claro) será tirado do ar e, pior, desmonetizado.


Vanessa e Joseph, que além de dirigirem também assinam o roteiro, são hábeis ao conceberem Shawn como um típico criador de conteúdo contemporâneo e apesar de não ser inspirado em alguma "web celebridade" específica, pode ser relacionado com qualquer uma que já tenha pisado na bola (o fato de buscarmos essa conexão com a realidade só atesta a eficácia do texto). O casal mostra ter feito o dever de casa, divertindo-se ao incluir todas as características marcantes dos YouTubers e seguir a cartilha de contenção de danos.


Caso a carreira cinematográfica não decole, Joseph Winter pode muito bem enveredar pelo caminho dos influenciadores digitais, tamanha sua destreza ao compor Shawn. As falas rápidas e enérgicas, cuja impulsividade é um prato cheio para declarações polêmicas, a relação com o product placement, o acompanhamento do chat, a naturalidade bem treinada... Winter capta todos os elementos que norteiam o criador de conteúdo médio. Nada disso funcionaria, obviamente, se o ator não fosse carismático o suficiente e, para nossa sorte, Shawn é puro magnetismo, mesmo que soe irritante em alguns momentos, mas faz parte do show.


Já como realizador, ele, ao lado da esposa, atinge um equilíbrio quase perfeito entre o horror e o humor, exibindo inteligência em várias frentes. Note, por exemplo, como Shawn para em alguns momentos para ler o chat, proporcionando bem-vindos respiros, além de oferecer alívio cômico. Mas há também o benefício de usar as mensagens enviadas pelos internautas como forma de suavizar a exposição, fortalecendo o elo com o espectador durante o processo. É através do chat que tomamos conhecimento de fatos importantes sobre o que está acontecendo e, como não há outro personagem para dialogar com o protagonista, também descobrimos mais traços da personalidade de Shawn e como ele está se sentindo.


Outro mérito da dupla é resgatar o found footage dos mortos (com o perdão do trocadilho). Famoso com a estreia de A Bruxa de Blair em 1999, esse formato voltou com tudo à popularidade após o sucesso de Atividade Paranormal, provocando um fenômeno cultural que gerou inúmeras produções que buscavam seguir a mesma fórmula. Desde o terror, passando por ficções científicas e até um subestimado filme de super-herói, essa abordagem foi tão utilizada que acabou se tornando um subgênero por si só, enfraquecendo com o tempo à medida que o desgaste afastava o público. Afinal, o propósito (disfarçar limitações orçamentárias) se perdeu quando até grandes estúdios resolveram apostar na ideia.


Deadstream, no entanto, é um retorno às origens, pois usa essa linguagem principalmente para amenizar a rusticidade da produção, que fica ainda melhor quando flerta com o filão dos filmes de cabana, cujo pioneiro em Hollywood foi o cineasta Sam Raimi e sua franquia Evil Dead. Não por acaso, Uma Noite Alucinante (como foi batizada por aqui), mostrou a habilidade de Raimi para provocar risos e arrepios na medida certa, uma proeza realizada também pelos Winter, que não hesitam em abraçar a galhofa para entreter o seu público, da mesma forma que seu protagonista.


Surpresa e lógica não são exatamente as diretrizes do script, que sequer faz questão de esconder seu propósito de fazer rir. As reviravoltas previsíveis e o truncado universo fantasmagórico são meros detalhes na experiência de acompanhar o calvário de Shawn, um covarde apresentador que finalmente se vê obrigado a admitir seus erros. Alguns sustos e arrepios vêm como bônus durante a projeção, cujo ápice é o momento em que o protagonista acredita ter descoberto uma forma de derrotar o espírito que o atormenta: “Vamos desmonetizar essa vadia!”


Deadstream pode não vir a se tornar um clássico, mas deverá ser lembrado como o terrir definitivo da geração YouTube.


NOTA 7,5


 

Os Enforcados (Idem, Brasil)


A beleza de festivais, especialmente este do Rio (maior vitrine do Cinema Brasileiro), é ser surpreendido com preciosidades que só acontecem em eventos assim. Como acompanhar em tempo real a transformação de realizador brilhante, em autor genial. E não digo isso como um deslumbre por ter tido a oportunidade de conhecer pessoalmente o diretor e roteirista Fernando Coimbra, responsável pelo excepcional O Lobo Atrás da Porta. Mas o debate que sucedeu a sessão deste Os Enforcados deixou claro que o paulista é muito mais do que um profissional que merece nossa atenção. Vê-lo revelar suas inspirações e explicar como concebe essa mais nova joia do nosso Cinema escancara seu brilhantismo, alguém que não apenas sabe o que quer, mas como fazer o que quer, levando às telas exatamente o que planejou.


Os Enforcados é praticamente uma continuação temática de O Lobo Atrás da Porta, tirando a ambientação do subúrbio carioca e transportando-o para a Barra da Tijuca. Para quem vive fora do Rio de Janeiro, trata-se de um bairro nobre, relativamente novo. Planejado como um reflexo dos zoneamentos planejados estadunidenses (especialmente os da Flórida), tendo atraído no início os chamados “novos ricos”, com uma população que passou a contar com jogadores de futebol, celebridades e até contraventores, objeto de estudo da trama escrita pelo próprio diretor.


Irandhir Santos (o eterno Fraga de Tropa de Elite 2) é Valério, membro de uma família de bicheiros liderada pelo seu tio, Linduarte (Stepan Nercessian, com sua faceta malandra muito bem aproveitada), com quem possui rusgas após a misteriosa morte de seu pai. Vivendo com luxo à beira da Praia da Barra, ele é casado com Regina (Leandra Leal), que faz questão de supervisionar a cara reforma do apartamento onde vivem, até Valério anunciar que não há mais dinheiro para continuar as obras. “Como você está quebrado, se o Brasil está em crise e o teu negócio vive de crises?”, ela pergunta no mesmo tom que fará o espectador dar boas gargalhadas ao longo da projeção.


Mas Os Enforcados é um thriller, não uma comédia. E o tal negócio envolve, claro, o já citado Jogo do Bicho, mas também aparelhos caça-níqueis, além de destinar boa parte do orçamento para autoridades políticas e policiais (atendendo a pseudônimos como Capitão América e Vigilante Rodoviário). Um dos maiores méritos da produção reside em mostrar que os bicheiros não são flor que se cheire, dispensando a tolerância concedida a esses gângsteres na década de 90. Para não restar dúvida, não demora até que o casal protagonista tente solucionar seus problemas financeiros cometendo um arriscado homicídio. Só que a decisão, impulsiva e descuidada, desencadeia um efeito dominó marcado por violência e desconfiança.


Ícone do Cinema Brasileiro, tendo estrelado obras memoráveis como Tatuagem, O Som ao Redor, Aquarius e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, Irandhir Santos aproveita mais uma oportunidade de criar um personagem complexo. E acompanhar as nuances dramáticas de Valério é um espetáculo à parte, ilustrado por Coimbra através de camadas destrinchadas aos poucos. Uma delas reside no jogo erótico entre o homem e sua esposa, adepta de um fetiche que obriga o marido a encarnar o papel de invasor e agressor. É um artifício inteligente no qual Valério é obrigado a assumir uma função diferente daquela que desempenha na realidade. “Seu marido é um frouxo!”, ele diz para Regina. E, em alguns momentos, é mesmo, algo que de alguma forma motiva suas intenções. Nessa fantasia, cabe à Regina a submissão, uma passividade estranha em seu relacionamento com Valério, vide o posicionamento que assume (é dela a ideia de matar). Aos poucos essa dinâmica muda, com fantasia e realidade trocando de lugar dentro da história à medida que a vida do casal, aos poucos, desmorone.


Leandra Leal, estrela de O Lobo Atrás da Porta, entrega-se à Regina com ferocidade e encanta com a habilidade de alcançar cada nuance exigida pela personagem. O prazer de ver o arco dramático da mulher e como suas atitudes impactam a trama e os outros personagens só não é mais especial do que ver a veterana Irene Ravache brilhar como a mãe de Regina, dando sinais divertidos de que talvez não seja tão diferente assim da filha, mesmo que fique chocada com a estupidez de algumas decisões tomadas pela filha.

Tecnicamente impecável, a produção ainda se beneficia de um design de som primoroso, trabalhando em conjunto com a trilha sonora para acompanhar a escalada da tensão (aproveitar os ruídos da obra para criar a atmosfera de suspense merece aplausos). Da mesma forma, a precisão da montagem resulta num ritmo absolutamente impecável, gerando aquela sensação agridoce quando uma grande história se encerra sem nos darmos conta disso.


Falando em agridoce, um ponto realmente negativo, infelizmente é a mixagem de som, já que em alguns momentos fica difícil compreender alguns diálogos, principalmente nas sequências que se passam no barracão da escola de samba, com o som dos instrumentos abafando conversas (as legendas em inglês da cópia exibida salvaram o dia).


Culminando num terceiro ato que enfileira reviravoltas mais impressionantes pela forma como se apresentam sem abandonar a lógica do que pelos eventos em si, Os Enforcados mistura Lady MacBeth e Fargo numa experiência tipicamente brasileira e que será difícil de esquecer.


NOTA 9


 

Virgínia e Adelaide (Idem, Brasil)


Outra oportunidade extraordinária concedida pelo Festival (e logo depois da catártica sessão de Os Enforcados), foi a de conhecer o mestre Jorge Furtado, simpático realizador gaúcho com uma humildade diametralmente oposta à sua importância para o Cinema Brasileiro. Dono de um estilo que além de marcar algumas obras cultuadas como O Homem Que Copiava e Saneamento Básico (um dos meus filmes favoritos), influenciou uma geração de jovens realizadores, participando ativamente da renovação de nossa filmografia.


Este ano, o gaúcho traz ao público do Festival do Rio sua colaboração com a cineasta estreante Yasmin Thayná (roteirista de Regra 34), que conta a história de Virgínia Bicudo e Adelaide Koch, cuja amizade ajudou a disseminar a psicanálise no Brasil. Bicudo, aliás, foi a primeira não médica a ser reconhecida como psicanalista, profissão já exercida por Koch, obrigada a deixar sua Alemanha natal pelo fato de ser judia. Situada em 1937, a história tem início com Vírginia ainda em sua fase como pesquisadora, procurando Adelaide para uma série de (caras) sessões de terapia. Produzindo uma tese de mestrado baseada em estudos raciais, aos poucos a relação paciente-terapeuta se transforma.


O filme teve sua première no 52º Festival de Gramado, fazendo parte de uma merecida homenagem às quatro décadas de carreira do diretor gaúcho. No Rio, a celebração é pelos 35 anos desde a fundação da Casa de Cinema de Porto Alegre, fundada por Furtado e berço de grandes talentos.


Em franca ascensão no Cinema Nacional, Sophie Charlotte segue em evolução e, se já esteve bem em O Rio do Desejo, sua performance como Adelaide é, no mínimo, irrepreensível. Facilitada pelo fato de ter nascido na Alemanha e residido em Hamburgo até os sete anos, a atriz é hábil ao construir um sotaque convincente a ponto de afastar qualquer flerte com a caricatura. Já Gabriela Correa dá vida à Virgínia como uma figura de mente aberta, mas adota maneirismos que sugerem uma mulher que ainda não conquistou sua liberdade. E como fazê-lo, num país cuja escravidão durou quase quatro séculos? A desigualdade na sociedade brasileira, particularmente o racismo, é mais do que um estudo: é analisar a própria vivência.


Para contar essa história, Yasmin Thayná e Jorge Furtado lançam mão de praticamente todos os recursos que alçaram o últimoao panteão de diretores tupiniquins. A linguagem documental se mistura à ficcional, com intervenções visuais que vão desde telas divididas, passando por transições elaboradas (aquela com a sombra de Adelaide passando ao fundo de uma cena com Virgínia é inspiradíssima) até segmentos frenéticos (no melhor estilo Ilha das Flores) representando dados que normalmente seriam enfadonhos em outras produções. Furtado dá vida ao enredo, mas é preciso reconhecer que seu arsenal soa deslocado em alguns momentos, como um recurso desesperado para avançar a narrativa sem perder o compasso.


Apesar de irregular em termos de linguagem, o ritmo frenético e a energia emanada pelas atrizes em cena, mantém Virgília e Adelaide nos trilhos, chegando a um final tão talhado para mandar o espectador para casa com boas vibrações, que chega a causar estranheza. Mas depois de acompanhar o que Virgínia teve de passar para que a Psicanálise chegasse a nós, brasileiros, nada mais justo do que fazer uma grande festa.


NOTA 7

bottom of page
google.com, pub-9093057257140216, DIRECT, f08c47fec0942fa0