Festival do Rio 2024 | Dia 10 (Último)
Armand e os Limites das Famílias (Armand, Noruega)
Armand (no original) é o tipo de filme vítima de um diretor até talentoso, mas ávido por chamar atenção. E não estamos falando de um Zé Ninguém, pois o cineasta de 34 anos é Halfdan Ullmann Tøndel, caso ainda não tenha se dado conta, neto simplesmente de Ingmar Bergman e Liv Ullmann. Até certo ponto, é uma atitude corajosa encarar o desafio de suceder um dos maiores cineastas de todos os tempos chamando a responsabilidade. Ao menos em Cannes funcionou, pois levou a Câmera de Ouro. Tøndel não chega a ser um mau diretor. Ele tem estilo, movimenta a câmera com personalidade (como ao se movimentar no cenário ignorando a presença dos personagens ou se reencontrando com estes após uma pausa mostrando a paisagem). Mas se até a câmera se distrai, o que dirá do texto, também escrito pelo neto de Bergman.
Armand é uma criança de seis anos de idade que só aparece no terceiro ato, mas sua presença é sentida desde o primeiro minuto graças à gravidade de um ato cometido contra um amigo. Passando-se exclusivamente no interior de uma escola primária, somos apresentados primeiro aos representantes da instituição, prestes a abrirem uma reunião com os pais dos alunos envolvidos. O diretor, claro, quer abafar o caso, instruindo a professora a “deixar passar, caso passe”. O caso? Jon, a outra criança, foi encontrado no banheiro com um arranhão no rosto e sem as partes de baixo do uniforme. A culpa recai sobre o personagem-título, mas sem testemunhas, a escola não pode formalizar uma acusação. A primeira a chegar na reunião é Elizabeth, assustada com a convocação repentina. Muito tempo depois chegam os pais de Jon.
É interessante como a narrativa escala de mãos dadas com o incidente entre Armand e Jon. Pois depois ficamos sabendo que o último alega ter sido abusado pelo primeiro, com direito ao termo “anal”. Para piorar, hematomas entram na equação e pode ter certeza que piora. Seria essa história absurda demais para ser protagonizada por uma mera criança de seis anos? Ou estamos diante da história de origem de um estuprador?
É uma pena que a produção acabe sofrendo duplamente. Primeiro, por chegar ao Festival do Rio um ano após a exibição do excepcional A Sala dos Professores (que acabou indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional), sofrendo implacavelmente com as comparações. Segundo, por contar com uma direção tão dispersa quanto a de Halfdan Ullmann Tøndel. Talvez tenha sido a intenção dele tentar fugir do raio do filme alemão, mas as ferramentas utilizadas para tal apequenam seus esforços dramáticos.
Os ânimos se exaltam na reunião, mas a atmosfera não acompanha. Não ajuda o número considerável de interrupções (os motivos variam entre o estratégico e o absurdo). Essas pausas oportunizam interlúdios completamente desconectados da narrativa. Bizarrices que capturam a curiosidade do espectador da mesma forma que um acidente de trânsito atrai a curiosidade de transeuntes. Até porque, muitos desses momentos são protagonizados por Renate Reinsve.
Uma das melhores atrizes da atualidade, Reinsve foi revelada ao mundo no soberbo, mas divisivo, A Pior Pessoa do Mundo, de Joachim Trier, nome máximo do Cinema Norueguês contemporâneo. A longa sequência em que Elizabeth vai de uma crise de riso ao choro copioso, representa uma master class ministrada por Reinsve, que atrai todos os olhares para si sem parecer se esforçar para tal. Elizabeth é simplesmente grande demais para uma sala daquela. Felizmente, quando a história sai completamente dos trilhos (com duas aleatórias sequências de dança), ao menos podemos contemplar o talento da intérprete de 36 anos. É como se Tøndel estivesse determinado a descobrir os limites dela. Não consegue, ela simplesmente brilha em todos os momentos, incluindo os mais estapafúrdios.
E no fundo é isso que impede a sensação de frustração se instalar, em virtude de uma premissa instigante o suficiente para alçar voo, mas que tem as asas cortadas por um diretor certo de que o talento é hereditário. Só esqueceu que deve ainda comprová-lo.
NOTA 6
Sebastian (Idem, Reino Unido/Finlândia/Bélgica)
Eu não conseguiria escrever sobre Sebastian sem lembrar do brasileiro Baby. Ambos tratam de jovens trabalhadores sexuais, se descobrindo enquanto tentam se manter numa metrópole. Coincidentemente, os dois foram exibidos nesta edição do Festival do Rio, com o longa de Marcelo Caetano se revelando superior.
Na trama de Sebastian, o escocês Max Williamson (vivido pelo italiano Ruaridh Mollica) vive em Londres pelo sonho de se tornar um escritor de sucesso. Enquanto isso, trabalha como freelancer de uma revista de sucesso. Se de dia é um jovem comum começando a vida por baixo, de noite ele é Sebastian, um trabalhador sexual bastante requisitado, mas se você pensa que ele exerce esse ofício apenas por dinheiro, saiba que o rapaz de 24 anos de idade utiliza os encontros noturnos (majoritariamente com homens mais velhos) como um laboratório para seus contos, onde se estabelece como o protagonista de uma tórrida série literária. Mas ele ainda precisa ser publicado e para isso também tem de continuar escalando a montanha do sucesso, já que o mundo literário é muito mais competitivo e traiçoeiro do que se pensa. Não fica claro exatamente o motivo que levou Max a escolher o trabalho sexual como matéria-prima de sua escrita. Sabemos, sim, que é queer e precisa lidar com um concorrente cis-hétero no trabalho para um dia atingir o patamar adequado para que seu livro chegue às prateleiras.
Sebastian é um espetáculo de um homem só, pelo menos até a chegada de Jonathan Hyde (para sempre o caçador do primeiro Jumanji), com quem Ruaridh Mollica constrói uma química tão forte que o filme engrandece sempre que os dois estão juntos. Mollica oferece uma performance sincera, até quando Max julga ter atingido um nível maior do que aquele onde realmente está. Nesses momentos, o protagonista é egoísta e extremamente arrogante, mas isso é um ponto positivo, já que torna complexo o personagem nesse arco de altos e baixos.
Por um lado, o enredo concebido pelo finlandês Mikko Mäkelä, também o diretor, é corajoso ao deixar lacunas a serem preenchidas pela atuação potente de Mollica. Por outro, deixa o espectador carente de explicações sobre o contexto envolvendo o protagonista. E quando finalmente as fornece, infelizmente, recai no lugar-comum dos filmes queer, pavimentando um caminho repleto de clichês a ser percorrido por Max, ironicamente cometendo o mesmo pecado evitado a todo custo pelo aspirante a escritor. Até a figura materna, exaustivamente explorada nesse filão, bate ponto no expediente de Mäkelä, surgindo aos poucos para cumprir uma função protocolar.
A questão envolvendo a crise de identidade do personagem central vai pouco além do óbvio, sugerindo confusões de formas pouco sutis (ele chega a hesitar quando alguém pergunta seu nome) e sublinhada pelo discurso de uma editora, que apesar de amarrar bem o dilema vivido por Max enquanto escritor, verbaliza as intenções do roteiro ao guiar o espectador pelo rumo que escolheu tomar.
Já o tal dilema é um dos pontos mais fortes da narrativa, ficando palpável não apenas na expressão de Mollica, mas também pelos instantes em que o diretor deixa os diálogos de lado para que a atmosfera fale por si só, com a trilha sonora ligando os pontos. Afinal, o trabalho de Max consiste em ficcionalizar a rotina como Sebastian, mas quando ele finalmente alcança uma perspectiva, tudo muda.
Essa perspectiva é interpretada com imensa ternura por um Jonathan Hyde que merece todos os prêmios da temporada. Claro que um admirador das Artes (todas elas!) se revela um sujeito compreensivo, empático e profundamente humano, estabelecendo uma inédita conexão real com Sebastian, a ponto de ressoar também em Max. Nesse ponto, o filme alcança um ritmo que jamais é recuperado.
Filmando as tórridas sequências de sexo sem trilha sonora e com atenção especial ao design de som, Sebastian é um filme que não se preocupa em suavizar a experiência do espectador. A própria fotografia de Iikka Salminen, escura, mas com fachos amarelados, reflete o tom sombrio da história. E desconfie quando a imagem estiver tomada por uma paleta clara! Sinal de que a realidade não está apenas batendo na porta de Max, como vai arromba-la impiedosamente.
Enfileirando uma sequência incômoda de fade outs, que ao provocar a sensação de encerramento, frustra justamente por serem individualmente eficazes, Sebastian é um estudo de personagem prejudicado pelos atalhos narrativos tomados pelo roteirista, mas parcialmente perdoado pela ótima dinâmica entre Ruaridh Mollica e Jonathan Hyde.
NOTA 7
Ela Estava Sentada, Como Todas as Outras (Kai Shi De Qiang, China)
Essa edição do Festival do Rio - cuja maratona acaba oficialmente nesse domingo, mas ainda terá algumas últimas reexibições (a famosa repescagem) durante a semana antes de acender as luzes de vez - contou com tantos exemplares do subgênero coming of age que o próprio site oficial do evento fez questão de produzir um artigo com dez obras imperdíveis. Esse volume surpreendente afetou até a minha programação, que contou com quatro exemplares. É um ano especial para os filmes de amadurecimento, convenhamos, com o lituano Toxic levando o Leopardo de Ouro em Locarno e o romeno Três Quilômetros Para o Fim do Mundo recebendo a Queer Palm em Cannes, para ficar só em dois exemplos. Ouso dizer, porém, que o melhor dos que assisti (incluindo os supracitados) foi este Ela Estava Sentada, Como Todas as Outras, produção chinesa que ganhou uma menção honrosa no mais recente Festival de Berlim.
Escrito e dirigido por Youjia Qu, o longa-metragem se passa em Pequim nos idos de 2001 (a propaganda de David Beckham para a Pepsi, os celulares flip e o Windows XP denunciam a época) e faz um recorte da vida de Zhuang Zou (Taiwen Zhang), um adolescente comum tendo que conviver com as ansiedades da vida e com a proximidade do vestibular. Num belo dia, porém uma sacola vermelha chama sua atenção ao aparentemente “voar” mesmo sem vento. Ele segue o objeto e acaba indo parar nas proximidades do ginásio da escola, de onde ouve o som de um tiro. Curioso, ele entra esbaforido e descobre a estudante Meng Ke (Jijun Miao), disparando uma pistola de largada. Ele observa perplexo, mas antes que pudesse se aproximar, a moça foge, deixando o artefato para ele inocentemente examinar e ser flagrado pelos funcionários do colégio.
Ao invés de dedurar a verdadeira culpada, ele assume a autoria, livrando a cara da moça, para desespero de sua mãe, mas não de seu pai (“a quem você está acobertando, hein? Tá apaixonado, né?”, ele provoca, conhecendo o filho). E não para por aí, porque Zhuang resolve emitir um pedido de desculpas no sistema de som da escola, não esquecendo de deixar o número do seu celular para o caso de alguém querer conversar com ele. Sabemos muito bem quem entrará em contato...
O filme se distancia de seus colegas de gênero ao abordar a rigidez do ensino chinês (“Estude Muito, Viva Melhor”, é o lema do professor da turma de Zhuang), fugindo de clichês como o Diabo foge da cruz. Aqui, padrastos se dão bem com seus enteados, pais são tremendamente compreensivos, colegas de classe não pensam em sexo o tempo todo, o ano escolar não se encerra com um baile de formatura, os alunos não se dividem em tribos e o protagonista, apesar de errático, é tão sensível quanto sociável (qualidades que só parecem excludentes aos olhos hollywoodianos).
Taiwen Zhang é, indubitavelmente, a maior revelação do projeto, transmitindo naturalidade sem precisar forçar a barra. Os olhos expressivos e a postura sem maneirismos geram uma identificação imediata com o público e quando Zhuang mostra-se vulnerável, Zhang está lá para corresponder às expectativas, captando todas as nuances do personagem com surpreendente sensibilidade.
Sensibilidade, aliás, é a palavra-chave do roteiro de Qu, um realizador mais interessado nas belezas da adolescência do que em suas turbulências e a maior prova disso está na absolutamente desoladora sequência em que Zhuang, frustrado ao não ter seu amor correspondido, diz “eu não estou bem, não sei o que está acontecendo!”. Um sentimento universal que ressoará em qualquer um que já foi adolescente. O peso sobre os ombros do protagonista ao menos é amenizado por um pai atencioso e que, de fato, demonstra estar um passo a frente do filho. “Você pode gostar das pessoas e elas não corresponderem, é normal. É por isso que eu digo para seguir o fluxo” era tudo o que Zhuang precisava ouvir, por exemplo.
Youjia Qu também se sai admiravelmente bem como diretor, adicionando poesia à trajetória do protagonista. Repare, por exemplo, como o vermelho aparece em elementos-chave na vida de Zhuang. É a cor da famigerada sacola voadora e do vestido usado por Ke numa das passagens mais marcantes da projeção. Além disso, ele e a montadora estreante Shang Siqi imprimem um ritmo impecável através de cortes escondidos que dão dinamismo às transições (o raccord envolvendo um tapa na cabeça é impressionante).
De forma similar, o texto traça alguns paralelos que surpreendem ao convergirem. O fato de uma pistola servir para dar a largada pode gerar uma série de interpretações, principalmente se levarmos em conta que é ela quem faz Zhuang despertar para a vida, assim como é simbolicamente utilizada na formatura. O nosso jovem herói pode até não perceber, mas não é ele quem ajuda Ke, mas ela quem o ajuda, um gesto que aumenta de proporções justamente por inverter nossas expectativas (Zhuang assume ter um fraco por ajudar as pessoas, vale ressaltar).
Com tantas camadas de puro lirismo (a citação a Mêncio deve ter alegrado os censores chineses), é um desafio não se deixar levar por Ela Estava Sentada, Como Todos os Outros, uma história sensível, sincera e belissimamente contada.
NOTA 8
Parabéns pela crítica. Gostei.