Festival do Rio 2024 | Dia 1
O Quarto ao Lado (The Room Next Door, Estados Unidos)
O espanhol Pedro Almodóvar é um dos poucos cineastas ainda em atividade que dispensam comentários. Dono de uma filmografia invejável, sua filmografia já passou por altos e baixos, mas o virtuosismo nunca o abandonou. E como é bom constatar que O Quarto ao Lado, seu primeiro filme em língua inglesa, traz sua indefectível assinatura, mas como o mestre que é, também traz um certo frescor narrativo. Isso acontece, pois Almodóvar não se limita a regurgitar temas e situações, agora em solo estadunidense, reinventando-se de uma forma madura e, como já era de se esperar, inspiradíssima.
Baseando-se no romance O Que Você Está Enfrentando, de Sigrid Nunez, o roteiro de autoria do próprio Almodóvar acompanha a escritora Ingrid (Julianne Moore) no dia do lançamento de seu mais novo livro. Quando uma conhecida aparece pedindo uma dedicatória e anunciando que uma velha colega de trabalho encontra-se gravemente doente, ela não hesita em pegar um táxi para visita-la no hospital. Martha (Tilda Swinton) é uma ex-correspondente de guerra enfrentando um câncer cervical, cujo tratamento experimental oferece resultados irregulares. A partir daí, O Quarto ao Lado se concentra nos diversos bate-papos entre as mulheres, seja no quarto do hospital, na casa de uma delas ou na imensa mansão alugada por Martha para descansar entre uma bateria do tratamento e outra. Claro que as intenções da enferma envolvem mais do que passar o tempo, o que coloca Ingrid num terrível dilema.
É curioso notar como o texto de Almodóvar consegue acomodar um volume surpreendente de diálogos expositivos, sem que estes soam artificiais. Em função do ofício de Martha e Ingrid (jornalistas veteranas), ambas, especialmente a primeira, se acostumaram a praticamente relatar o que está acontecendo ou o que estão sentindo. Em mãos menos hábeis, poderia resultar numa experiência enfadonha, mas com o vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Original por Fale Com Ela (2002), torna-se uma jornada extremamente fascinante. Nesse aspecto, a montagem de Teresa Font (colaboradora habitual de Almodóvar), alterna elipses sutis (que trazem dinamismo) com transições marcantes pelo uso de cores intensas.
E se O Quarto ao Lado é uma experiência tão magnética, muito se deve às suas estrelas.Enquanto Tilda Swinton, mais uma vez, se vê cercada por temas como a finitude da vida e o amor à Arte (como no excepcional Amantes Eternos, de Jim Jarmusch), Julianne Moore acompanha trazendo calor humano e uma admiração quase infantil pela amiga. Os diálogos variam não apenas em temas, como morte, sexo, Literatura e família, mas também em tons e o humor tipicamente ácido de Almodóvar felizmente permanece intacto.
Cumprindo o pré-requisito de trazer um relacionamento conturbado entre mãe e filha, o realizador renova seu repertório enquanto acomoda-se num divã para refletir sobre suas preocupações. Mais maduro, ele, através de Martha, divaga sobre a morte e o sentido da vida, mas também, agora por meio de John Turturro (da excelente série Ruptura), se preocupa com o Meio Ambiente. E já que citei Turturro, ele aproveita o pouco tempo de tela que possui, para protagonizar uma memorável discussão sobre o aquecimento global, divertindo com seu pessimismo.
Escrever sobre um filme de Pedro Almodóvar sem comentar sobre o design de produção seria como ignorar as piadas autodepreciativas de uma comédia de Woody Allen e Inbal Weinberg (do remake de Suspiria) parece ter feito o dever de casa, mantendo a mesma coesão visual e a excelência estética comuns em trabalhos do espanhol. Além da harmonia dos cenários e da simetria dos quadros (um Wes Anderson sem TOC), as cores são fundamentais: note como o vermelho é quase onipresente na narrativa e o verde (normalmente associado à morte) surge em momentos cruciais (uma espreguiçadeira, por exemplo). Perceba também, como, nas cenas do quarto de hospital, o canto superior esquerdo do quadro é tomado por paredes floridas, ao passo que o lado oposto é ocupado por plantas artificiais.
Poético, sofisticado, melancólico e hipnótico ao extremo, O Quarto ao Lado é mais uma obra-prima presenteada ao mundo por um cineasta longe de se esgotar. O Cinema agradece.
NOTA 9,5
Eat the Night (Idem, França)
O filme tem início com a narração de uma figura central explicando a existência de um jogo eletrônico onde as pessoas podem desfrutar de uma segunda vida, ao mesmo tempo que gera consequências no mundo real. Nesse ambiente virtual, é possível gente nova, adquirir experiências e, claro, jogar. Essa descrição pode até parecer com a do inesquecível Jogador Nº1, mas representa basicamente os primeiros segundos da projeção de Eat the Night, produção francesa presente na seleção deste Festival do Rio.
Mas o roteiro, assinado também pelos diretores Caroline Poggi e Jonathan Vinel, se dispersa rapidamente, algo que se tornará uma constante durante toda a projeção. O jogo, que parecia tão vital para Apolline (a narradora), quanto para o enredo, ganha subtramas que jamais alcançam o potencial demonstrado nos primeiros cinco minutos. Afinal, a adolescente mora com Pablo (Théo Cholbi, do bom A Noite do Dia 12), irmão mais velho com quem nutre uma ligação forte, justamente, por conta do tal jogo. Mas o sujeito, ao contrário da irmã, possui uma vida fora do ambiente virtual, onde ganha a vida produzindo e vendendo drogas. E o dia em que conhece Night (Erwan Kepoa Falé, do fraco Passagens) marca uma ruptura quase completa em sua relação com Apolline.
O problema de Eat the Night não é exatamente deixar de lado o elemento mais atraente de sua história, mas promover uma mistura de gêneros que só leva a caminhos banais, fazendo do lugar-comum seu ponto de equilíbrio. Quando Pablo e Night se envolvem romanticamente, o desdobramento na história é um ciúme bobo demonstrado por Apolline. E quando Poggi e Vinel resolvem esboçar um thriller criminal, os caminhos tomados também não fogem do óbvio.
Aliás, ficam abaixo do óbvio, pois deixam lacunas importantes pelo caminho. A negligência sofrida por Apolline, por exemplo, não passa da superfície, o que poderia ser contornado facilmente pelas respostas a perguntas básicas (qual o motivo de viverem juntos, mas afastados do restante da família?). Alocar uma única sequência mostrando a família de Night não é o bastante para torna-lo complexo, tampouco.
Uma pena, pois o tal jogo, Dark Noon, claramente baseado na franquia Dark Souls, poderia servir como um experimento envolvendo o comportamento humano e suas relações. Ou, na melhor das hipóteses, não merecia ser escanteado por tanto tempo, já que, após um segundo ato pouco surpreendente, só retorna para fechar um determinado ciclo. É pouco, ainda mais se considerarmos a expressividade e o carisma dos atores.
NOTA 5,5
Matem o Jóquei! (El Jockey, Argentina)
Embora tenha estreado no Cinema há 22 anos com o obscuro Caixa Preta, o cineasta argentino Luis Ortega só despontou, de fato, com o ótimo O Anjo, em 2022, quando o apoio de ninguém menos que Pedro Almodóvar o levou a Cannes, onde obteve merecido sucesso. Se aquele filme surpreendeu pela abordagem refrescante e homoerótica da história real do criminoso de feições angelicais, Matem o Jóquei! se mostra completamente diferente.
A jornada de Remo Manfredini (Nahuel Pérez Biscayart), antes um esportista lendário, agora apenas uma sombra alcóolatra e estoica do titã de outrora, é conduzida por Ortega como uma comédia de tintas absurdistas, aproveitando, e muito, o talento e a versatilidade descomunais de Biscayart. Nas mãos do astro de 120 Batimentos Por Minuto (outro premiado de Cannes a ser exibido numa edição do Festival do Rio), a figura tragicômica de Manfredini se torna um experimento fascinante.
Isso porque, apesar de todos os esforços de sua equipe, ele acaba vítima de um acidente que, se não foi fatal, o deixou com uma tremenda sequela. Assim que acorda do coma, contrariando todas as expectativas dos médicos, ele chega a levantar da cama disposto a desbravar o mundo, mas sem a menor ideia de quem é. Essa lacuna vai aos poucos sendo preenchida com a forma de uma alegoria trans, mas a narrativa é anárquica demais para cravarmos qualquer interpretação. Essa acaba sendo a grande beleza da produção, imprevisível nos rumos que toma e ancorada por uma performance que faz jus ao fascínio que provoca.
Se é difícil saber para onde estamos sendo levados, ao menos podemos ter a certeza de dar boas gargalhadas com o repertório cômico do longa-metragem que vai desde gags irresistivelmente bobas como uma envolvendo um mezanino, até aquelas mais físicas, quando Biscayart emula o humor típico das obras de Aki Kaurismäki, aproveitando a presença do diretor de fotografia Timo Salminen, parceiro de longa data do mestre finlandês.
Mas não pense que o escolhido pela Argentina para tentar conquistar mais um Oscar de Filme Internacional é puro caos e zero substância. Além do supracitado comentário trans, Matem o Jóquei! Traz um protagonista atormentado por outras questões existenciais, finalmente encontrando seu caminho após ficar próximo da morte e... se perder inteiramente. Nesse aspecto, nem a gravidez da colega de trabalho (ou rival?) Abril (vivida pela belíssima Úrsula Corberó, do fraco Lift: Roubo nas Alturas e da série La Casa de Papel, ambos da Netflix).
A presença de gângsteres e adversárias do sexo feminino chega perto de representar um excesso, inchando uma galeria de personagens já grande demais por si só e habitando um único corpo: o de Remo Manfredini. A presença de Biscayart torna qualquer cena minimamente interessante e sem a necessidade de compartilhá-la, o que, num mundo justo, serviria para colocá-lo no radar das grandes premiações.
Mas o mundo, se visto pelos olhos amalucados de Luis Ortega, pode ser muito mais imprevisível do que pensamos, então, quem sabe não pinta uma surpresa agradável nesse final de ano?
NOTA 7,5
Transamazonia (Idem, ALE/FRA/SUÍ/BRA)
Já passava das 22:00 quando o público finalmente pôde se acomodar na sala de projeção para assistir a Transamazonia, produção financiada por diversos país em prol de um único objetivo: denunciar os maus-tratos ao pulmão do mundo. A diretora-executiva do Festival, Ilda Santiago, subiu ao palco para explicar os critérios utilizados na escolha desse filme para compor a curadoria esse ano. O atraso de mais de meia hora foi sumariamente ignorado por um público recheado de membros do elenco e fãs do longa-metragem prestes a ser exibido. A sul-africana Pia Maraïs, simpática, se esforçava para pronunciar uma ou outra palavra em português enquanto agradecia por estar ali apresentando seu projeto para brasileiros. O destaque dessa apresentação, no entanto, foi o jovem ator membro de uma tribo amazônica, explicando os impactos do desmatamento em seu povo.
O filme em si, belissimamente fotografado pelo francês Mathieu De Montgrand, adepto do aspecto enevoado e do contra-plongée para valorizar a magnitude da floresta, tem mais predicados técnicos do que dramáticos, apesar do prólogo interessante e da premissa instigante. Tudo começa com uma garotinha acordando machucada no meio da floresta. A câmera se afasta e a mostra sentada no que parece ser uma poltrona de avião. Pia Maraïs, ainda bem, não é o tipo de diretora que gosta de explicar o que estamos vendo, então podemos deduzir um acidente aéreo, sem grandes intervenções.
A tal garotinha é salva por um indígena, que a leva para um local seguro poucos segundos antes de a história avançar nove anos no tempo. Descobrimos que a garotinha atende pelo nome Rebecca (interpretada pela garota prodígio Helena Zengeldo cult Transtorno Explosivo), cujo pai, Byrne (vivido pelo norte-americano) tornou-se pastor de uma igreja local e a utiliza para operar milagres nos fiéis. Por se passar no coração da Amazônia, é de se esperar um enredo envolvendo funcionários de uma serraria e o respectivo confronto com a população. A chave para apaziguar os ânimos se apresenta com Artur Alves (Rômulo Braga, do bom O Rio do Desejo), que promete deixar o local caso Rebecca cure sua esposa. Mas afinal, Rebecca realmente é capaz de curar alguém? Que bruxaria é essa? A falta de respostas alimenta a curiosidade e esvazia a trama, jogando luz, felizmente, no assunto principal: o desmatamento.
Zengel e Xido formam boa dupla e ecoam a influência dos evangélicos na população brasileira. Sobre a primeira, o único problema passível de relato é seu sotaque, por vezes incompreensível a ouvidos brasileiros. Os diálogos em inglês também desafiam a suspensão da descrença, difundindo a ideia de que qualquer um entre as pessoas humildes do norte seria capaz de interagir em inglês. Xido, em sua entrega e na energia empregada, merece ganhar mais oportunidades no futuroHá, no entanto, mais mistério do que o adequado, fazendo com que a trama circular envolvendo as agressões ambientais patine durante desvios esporádicos da trama principal.
Especialmente quando entra em cena a enfermeira interpretada por Sabrina Timoteo, responsável por derrubar os alicerces do relacionamento entre Rebecca e Byrne. Nesses momentos, Transamazonia flerta com o drama de folhetim, diluindo o foco e, consequentemente, a credibilidade da história, mas sem eliminar as conquistas da produção, que se encerra no tom certo ao deixar uma brecha para reflexão.
NOTA 6,5