Festival do Rio 2024 | Bônus: "Bring Them Down"
A maratona cinéfila pode ter encerrado sua fase tradicional, marcada por muitos filmes assistidos em sequência, mas agora começa a repescagem, período em que a organização realiza reexibições de alguns longas, permitindo uma última oportunidade de assistí-los. Bring Them Down e The Seed of the Sacred Fig estão na minha lista.
Dirigindo seu primeiro longa após três experiências distintas com curtas-metragens, Christopher Andrews constrói um universo onde não há espaço para figuras femininas e os homens só parecem conhecer a linguagem da animosidade. A toxicidade masculina é tão pestilenta, que as únicas mulheres a surgirem em cena estão desesperadas para deixarem aquele lugar sufocante.
Nem a zona rural irlandesa imaginada por Andrews escapa da mira dos camponeses que lá residem “queria morar na Holanda, pois lá não tem as malditas colinas que temos aqui, é tudo plano”. Típica vila pequena onde todos se conhecem, não é tarefa fácil se manter afastado das maçãs podres, isso quando a própria linhagem não se certifica de preservar alguns defeitos. É onde entra Jack, personagem de Barry Keoghan destinado a manter a tradição peçonhenta do lugar, mas quando resolve tomar o próprio rumo, encontra um obstáculo imerso em dilemas semelhantes. É Michael, encarnado por um Christopher Abbott que denuncia a própria natureza atormentada através do olhar.
Andrews estrutura seu roteiro com diligência, apresentando esses homens como peças da mesma engrenagem, sintomas de uma mesma doença. Ao abrir a narrativa com um evento traumático na vida de Michael, ele abre espaço para uma discussão sobre o ciclo de tragédias daquele pedaço de terra sem salvação. E é justamente quando vemos o protagonista acatar uma última ordem absurda de seu pai (Colm Meaney, assumindo uma rara vulnerabilidade) que o roteiro resolve voltar ao início, mas virando a chave para a perspectiva de Jack. Enquanto Mikey (como é infantilmente chamado) convive com o membro da geracão anterior castrado em função da mobilidade reduzida, exibindo uma fragilidade usada para oprimir ainda mais o filho, Jackie (percebe a o paralelo?) é criado pelo pai como o sucessor ao trono. Mas o poder, aqui, reside em rejeitar qualquer possibilidade de diálogo, por desconhecimento. Uso da violência, por instinto. Subjugar o próximo, para envernizar a própria masculinidade.
É estranho ver Barry Keoghan retornar ao tipo de papel juvenil que ele parecia ter superado, tendo estrelado filmes como Saltburn e Bird. Já era de se esperar de um ator merecidamente indicado ao Oscar (por Os Banshees de Inisherin, outra obra de sua Irlanda Natal) uma parcela de nuances, enriquecendo o personagem e alcançando as notas necessárias de arrogância, medo, desespero e, claro, instinto. Ele não é tão diferente dos animais aos quais trata com tanta crueldade (e aqui cabe o alerta para um nível elevado de violência gráfica envolvendo ovelhas e até um cachorro). Abbott, mais resignado, mas não menos complexo, encarna Michael como um homem esmagado pelo peso da culpa, provavelmente a razão por trás de sua submissão ao pai.
Manipulando as perspectivas com desenvoltura, embora a transição entre elas não siga o mesmo padrão, Christopher Andrews não desperdiça as duplicidades do enredo, usufruindo do conhecimento prévio do espectador para elaborar sequências verdadeiramente tensas, como aquela no interior de uma cozinha. Aliás, o cineasta estabelece pontos de interesse com uma precisão quase cirúrgica, ao empregar planos-detalhe para focar uma faca ensanguentada, por exemplo, ou para mostrar uma marca de sangue numa parede, criando símbolos que ajudam a formar o mosaico multifacetado no qual estão inseridos os personagens.
Demorando a engrenar em função da paciência excessiva demandada pelo aproveitamento de Michael, Bring Them Down ainda arrisca, mas de forma claudicante, alguns passos pelo terreno do faroeste, sem perceber que sua maior força é precisamente a complexa trama enredada ao redor de seus trágicos personagens.
NOTA 7
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