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Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2023 | Dia 2

Atualizado: 29 de out. de 2023

Sica (Idem, 2023) | Espanha


Numa região remota da Galícia, noroeste da Espanha, a adolescente Sica aguarda pacientemente o retorno de seu pai, capitão do barco pesqueiro Amonitas. Os dias passam e nem sinal da embarcação. Quando as buscas por possíveis corpos finalmente chega ao fim, cabe à menina aguardar o mar “devolver” seu pai. A indefinição da situação não é apenas enervante para Sica, mas também para sua mãe, pois uma vez que a morte não tenha sido confirmada e ele siga desaparecido, ela fica impossibilitada de receber sua pensão, algo terrível quando são consideradas as inúmeras dívidas que a família acumula.


Ao contrário do que parece, esse mistério não é o foco principal do roteiro escrito pela catalã Carla Subirana, pois é solucionado ainda na primeira metade, representando o primeiro plot point da narrativa. Subirana está mais interessada nos desdobramentos da resolução envolvendo a morte ou não do pescador, que é o verdadeiro objeto de estudo desse singelo e reflexivo Sica. Para isso, ela paulatinamente compõe um cenário onde os pescadores vivem dificuldades financeiras, o que mais tarde justificará decisões cruciais dentro do enredo, por exemplo.


Em meio ao arco dramático da protagonista, embalado como um legítimo coming of age, várias subtramas se entrelaçam: temos a busca de Sica por informações sobre o que realmente aconteceu com seu pai (há um sujeito que parece estar escondendo algo), o cotidiano escolar da garota (com provocações e descobertas inerentes à juventude), o relacionamento com a mãe (com a impaciência ocasionando atritos cada vez mais frequentes) e a amizade que nutre com Suso, garoto deslocado que parece mais fascinado por tempestades do que pelas pessoas ao seu redor.


Subirana é inteligente ao não apressar a investigação feita por Sica e ao responder logo no início à grande pergunta que orbita a narrativa, ela tira do caminho o desafio de alimentar uma atmosfera de suspense que claramente passa longe de ser sua intenção principal. Ela prefere se concentrar nos percalços enfrentados por sua heroína, que apesar de enfrentar problemas de gente grande, ainda é uma criança e precisa viver como tal. Nesse aspecto, os momentos que divide com Suso servem como uma distração em meio ao vórtex que toma conta do vilarejo onde vive. Já a relação com a mãe é mais complexa, pois resvala em fatores que passam pelo sumiço de seu pai (e que não revelarei para manter o texto livre de spoilers). Tais desdobramentos não são encarados com sensacionalismo e até os conflitos que surgem, são conduzidos com disciplina, impedindo que a obra recaia na artificialidade.


Mesmo se passando majoritariamente numa praia com águas extremamente revoltas (o local não ganhou o apelido “Costa da Morte” à toa), Sica é o tipo de filme que dedica bons minutos contemplando a natureza, investindo em planos longos que talvez afastem os espectadores casuais, mas que ajudam a construir um clima de paz, corroborando a comunhão da protagonista com o meio ambiente. Cadenciado e reflexivo, o longa-metragem se beneficia da boa fotografia de Mauro Herce para construir imagens estonteantes das paisagens terrestres e subaquáticas espanholas.


Simples, mas não simplório, trata-se de um longa-metragem feito com esmero sobre uma realidade que raramente ganha profundidade em produções maiores. Com um final esperançoso ao ilustrar o amadurecimento de sua protagonista, é o tipo de arte feita para alimentar a alma daqueles que optarem por uma programação mais alternativa.


NOTA 6,5


 

Sem Coração (Idem, 2023) | Brasil


Escrito e dirigido por Nara Normande e Tião, Sem Coração primeiro foi um curta-metragem lançado em 2014, voltando agora como um conto de amadurecimento ambientado no nordeste brasileiro em 1996. Tamara é a responsável por começar os trabalhos, uma jovem de espírito livre e que aproveita o tempo com seus amigos antes de partir para Brasília, onde sua família imagina uma vida mais promissora em termos de estudos e trabalho. Aos poucos, porém, ela se apequena perante os demais personagens, que crescem exponencialmente e dividem o protagonismo. É impressionante como cada membro do jovem elenco agarra com unhas e dentes a oportunidade de brilhar em cena.


A galeria é vasta: Galego (Alaylson Emanuel, carismático), o mais velho e malandro do grupo, acaba de sair da FEBEM, onde foi parar por motivos jamais esclarecidos pelo roteiro e que se tornam ainda mais misteriosos quando percebemos sua personalidade afável e responsável (repare como ele repreende uma criança que encontra uma arma). Sua relação com o pai só não é mais cáustica do que aquela com que o personagem do influenciador Kaique Brito (estreante no Cinema) possui com praticamente todos os jovens fora de seu grupo. É vítima de uma sociedade homofóbica, do tipo que torna impraticável uma mera demonstração de afeto em público para com alguém do mesmo sexo. Os desabafos que faz com os amigos representam os pontos mais sensíveis de uma história que ainda inclui a enigmática moça conhecida apenas como “Sem Coração” (há boatos dando conta de que possui “uma máquina” no peito), interpretada por Eduarda Samara.


Enquanto Tamara habita um espectro mais cômodo e repleto de calor humano, Sem Coração vive uma realidade oposta: alvo de provocações das outras crianças (incluindo os protagonistas), ela parece se importar apenas com o pai, com quem tem uma relação de altos e baixos. Assim como é capaz de rompantes de agressividade, talvez um reflexo do tratamento que recebe em casa, não esconde a felicidade ao ver o pai sendo fitado por uma senhora durante uma festa. A perda da mãe ainda jovem, é sugerida sutilmente como a causa para o lar da menina ser diametralmente oposto ao de Tamara (repare a diferença das cores e da iluminação).


Apesar de se encaixar confortavelmente no arquétipo desse tipo de filme, a relação entre a protagonista e os pais passa muito longe de possuir fissuras, algo comum em narrativas como essa. Pelo contrário, pois a liberdade que eles concedem à moça para perambular com os amigos jamais é sequer questionada. Fruto também da mente aberta de um casal culto e amoroso que se beneficia das performances calorosas de Maeve Jinkings (Aquarius) e Erom Cordeiro (A Divisão).


Sem luxos, as crianças de Guaxuma aproveitam as belezas locais, dividindo-se entre atividades ao ar livre e explorações de casas de veraneio desocupadas. Essas invasões, diga-se de passagem, correspondem aos melhores momentos da projeção, com destaque para a divertidíssima sequência em que os meninos do grupo descobrem uma coleção de filmes adultos.


A fotografia merece elogios por aproveitar as belas paisagens de Guaxuma, pequena cidade-natal da co-diretora Nara Normande. Entre rios, mangues e praias, a geografia local serve como palco para os simbolismos do roteiro, em especial um momento onírico envolvendo uma baleia encalhada. Alguns enquadramentos também poderiam facilmente ser emoldurados, como o beijo que acontece abaixo de uma soleira e com o litoral ao fundo.


Exibido sob elogios na Berlinale, Sem Coração também arrancou demorados e efusivos aplausos em sua sessão de estreia no Festival do Rio, evidenciando que o Cinema Brasileiro continua encantando. Divertido, emocionante e extremamente envolvente, o filme deixa um sabor agridoce justamente por inevitavelmente chegar ao fim, já que não é fácil deixar aqueles personagens tão queridos. Agora sabemos a sensação de Tamara ao deixar Guaxuma...


NOTA 8,5


 

Atmosfera (Idem, 2023) | Brasil


De vez em quando me deparo com alguém falando mal do Cinema Brasileiro. Os argumentos, na verdade, são os mesmos de décadas passadas. Se no século anterior nossos filmes eram rotulados como “filmes de sacanagem”, herança das pornochanchadas, no novo milênio convivemos com a teimosa falácia de que o Brasil só produzia comédias e "filmes de favela". Hoje em dia, as bravatas podem até mudar, mas a percepção equivocada permanece: “Há quanto tempo o Brasil não produz um bom filme?” questionou o presidente anterior justamente no ano em que fomos duplamente premiados em Cannes, mais prestigiado festival internacional de Cinema do mundo. A verdade é que as críticas partem apenas de quem não tem o costume de assistir aos nossos filmes. E quando resolvem pegar a sessão de algum, acabam escolhendo "neo-chanchadas globais" acreditando que a produção brasileira se resume a essas besteiras que monopolizam as salas do multiplexes em função da influência de sua emissora de origem.


E Atmosfera é uma daquelas produções feitas sob medida para calar os detratores do nosso Cinema. Ignoremos a existência de Isolados, As Boas Maneiras, Berenice Procura, O Escaravelho do Diabo e tantos outros. Deixemos de lado a prolífica filmografia de José Mojica Marins (o Zé do Caixão) e os esforços contemporâneos de Dennison Ramalho, Jeferson De, José Padilha e outros realizadores. É filme de gênero que falta ao Brasil? Eis Atmosfera, novo filme do cineasta paraibano Paulo Caldas, de longas distintos como Baile Perfumado e Deserto Feliz. Um suspense psicológico dos mais esmerados e protagonizado por dois dos atores mais emblemáticos da nossa produção recente.


João Miguel, de preciosidades como Estômago e Cidade Baixa, vive Edmundo, que recusa ser chamado de caseiro apesar de cuidar do sítio de um casal que mora na Alemanha. Isolado no meio de uma floresta, o local desperta no homem pensamentos que o levam a questionar a realidade. Poderia ser encarado como uma metáfora ao confinamento imposto pela Pandemia, não fosse a COVID-19 mencionada em mais de uma ocasião.

Interpretar a materialização da imaginação fértil do protagonista faz parte da experiência e Caldas acerta ao dificultar nossa vida, impondo desafios através de alegorias inusitadas. Algumas perguntas surgem no caminho e nem sempre são respondidas de forma objetiva pelo roteiro. Quem seria o homem com o rosto de Milhem Cortaz (o popular Capitão Fábio de Tropa de Elite 2)? Aliás, seria ele um homem, uma entidade ou algo projetado pela mente de Edmundo?


Cortaz, diga-se, tem a oportunidade de viver uma variedade de papéis que deve ter proporcionado um desafio tão grande quanto divertido. João Miguel, por sua vez, mostra mais uma vez ser carismático o bastante para carregar o filme praticamente nas costas. Com presença de cena invejável, tudo fica mais fácil para o expressivo e experiente ator soteropolitano.


Entre o onírico e o realista, Atmosfera promove uma experiência de difícil digestão. Uma obra que permanecerá na mente do espectador mesmo horas, dias após os créditos surgirem. Mais um ponto para o Cinema Brasileiro em cima dos detratores de plantão. A esses, convido largarem os televisores para variar e prestigiar o Festival do Rio. Há vida fora dos grandes conglomerados de comunicação, acredite.


NOTA 7,5


 

Pobres Criaturas (Poor Things, 2023) | Inglaterra/Irlanda/Estados Unidos


Acostumado a narrativas sombrias, o cineasta grego Yorgos Lanthimos sai de sua zona de conforto para contar uma história de amadurecimento que pode soar banal pela clareza com que expõe sua construção, mas cujo desenvolvimento e ambientação exalam criatividade. Pobres Criaturas recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza, honraria máxima do evento cinematográfico mais antigo do mundo e os motivos ficam claros desde o primeiro minuto.


Lanthimos propõe uma releitura da história de Frankenstein, com Emma Stone interpretando um bebê no corpo de uma jovem mulher, que cometera suicídio logo nos primeiros minutos de projeção, mas foi trazida de volta à vida graças às habilidades ortodoxas do cientista Godwin Baxter, vivido por um Willem Dafoe carregado de uma maquiagem que o transforma num homem cuja aparência monstruosa quase esconde sua personalidade afável e curiosa. Como um homem da Ciência, Baxter vive de fazer experimentos e alguns perambulam tranquilamente por sua casa, como um cachorro no corpo de um galo e uma galinha com cabeça de porco. O fato de Godwin brincar de Deus ganha contornos mais literais quando percebemos que sua afronta mais recente à natureza o apelidou carinhosamente de “God”.


Atendendo pelo nome de Bella, a jovem protagonista exibe um apetite voraz pelo desconhecido. Acompanhamos todas as etapas de seu crescimento, desde as quinze palavras que aprende por dia, até suas descobertas. Uma delas, inclusive, muda completamente sua vida, pois quando resolve satisfazer-se com um pepino, um mundo de possibilidades se abre para a moça cuja vida se resume a uma rotina restrita dentro do casarão habitado por Godwin. A libido insaciável de Bella, por sua vez, é retratada pelo enredo com as mesmas tintas absurdas que envolvem todo o resto. O potencial choque das numerosas sequências de sexo é quebrado pela forma crua com que são encaradas pela própria personagem.


Nesse aspecto, Emma Stone, uma atriz cujo talento jamais foi questionado, é extremamente perspicaz ao compor Bella com uma inocência que elimina qualquer tipo de julgamento malicioso sobre sua personalidade. Sem filtros, a personagem confronta o mundo de guarda baixa, completamente aberta a novas experiências e quando encontra algo que alimente seu hedonismo recém-descoberto, abraça fortemente, recorrendo a repetições infantis que refletem sua mentalidade. Exibindo uma linguagem corporal disciplinada, Stone oferece a performance mais complexa de sua carreira, mas não em função apenas da construção de sua personagem, mas principalmente das possibilidades que ela oferece. A atriz vencedora do Oscar por La La Land – Cantando Estações expande o alcance de seu timing cômico enquanto se entrega à verborragia ácida do roteiro adaptado do livro de Alasdair Gray por Tony McNamara.


Indicado ao Oscar por A Favorita, sua parceria anterior com Yorgos Lanthimos, McNamara elabora um coming of age peculiar com doses feministas salpicadas com pouco sutileza, mas que acabam suavizadas diante da grandiosidade de tudo que cerca o longa, desde a interpretação meticulosa de Emma Stone até a ambientação surrealista assinada pela dupla de designers de produção Shona Heath e James Price (mais adiante). É como se Pobres Criaturas fosse o sonho molhado da Barbie de Greta Gerwig, outro manifesto feminista a fazer barulho em 2023, mas transformado em realidade sem o tom panfletário que encerrou o longa recordista de bilheteria. Aqui, as alegorias se sustentam até o final, com alfinetadas menos escrachadas ao machismo (graças ao personagem de Mark Ruffalo) e que valorizam o empoderamento feminino sem afetações. A sacada do texto é disfarçar o deboche com a inocência de Bella.

Ao invés do rosa, o que caracteriza o universo de Bella Baxter é uma combinação magnífica de veículos futuristas à arquitetura clássica, dando um tom burlesco ressaltado pela estilização dos cenários que reimaginam Lisboa, Paris e Alexandria com toques surreais. Já a fotografia de Robbie Ryan (outro indicado ao Oscar por A Favorita) começa num preto e branco que estreita os laços com Frankenstein, ganhando cores apenas quando Bella finalmente mergulha no mundo. Além disso, estão no filme todas as marcas registradas de Yorgos Lanthimos, como a movimentação reduzida da câmera e o uso de lentes olho de peixe, que arredondam as extremidades da tela.


O resultado é uma obra surrealista que fascina e diverte na mesma medida, uma obra gigante em praticamente todos os aspectos, exibindo criatividade não apenas em recontar um tipo de história presente no imaginário popular há séculos, mas ao fazê-lo sob uma perspectiva absolutamente moderna, com um discurso que vai ao encontro das demandas sociais contemporâneas sem soar artificial. Um filme que justifica o barulho que tem feito desde sua merecida aclamação no Festival de Veneza e que deve empilhar indicações ao próximo Oscar.


NOTA 9


1 Comment


Guest
Oct 08, 2023

Parabéns pelas críticas. Gostei .

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