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Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2022 | Dia 7

Living (Idem, 2022) | Inglaterra


Releitura de Viver, clássico do mestre japonês Akira Kurosawa, Living traz a história para a Inglaterra da década de 50, fazendo questão de contextualizar o espectador através de uma abertura vintage que remete à filmagem analógica da época, com uma fotografia granulada e dessaturada. Além disso, a razão de aspecto quase quadrada contribui para essa embalagem documental, assumindo também um caráter mais intimista.


Tudo isso para acompanharmos o cotidiano do Sr. Williams (Bill Nighy), burocrata que praticamente personifica o departamento de obras públicas onde trabalha há décadas. Respeitado por seus colegas graças ao cavalheirismo e à seriedade com que conduz suas relações, sejam profissionais ou pessoais, o sujeito inicia a projeção dando claros sinais de que será uma espécie de Miranda Priestly (a chefe interpretada por Meryl Streep em O Diabo Veste Prada), manifestando certas manias, como ao manter uma distância considerável de seus colegas de trabalho enquanto caminha, além de prezar por uma sisudez tipicamente britânica.


Nesse aspecto, a Inglaterra se mostra o cenário perfeito para substituir o Japão retratado pelo filme original, já que ambas as nações possuem sociedades conhecidas pela circunspeção e pela honradez, além de não expressaram em emoções com facilidade. Num mar de ternos bem cortados e posturas elegantes, a Londres retratada em Living é um ambiente frio e que chama a atenção pelo conservadorismo.


E o sr. Williams, como um cidadão tipicamente londrino, não foge à regra. Aliás, só uma grave doença para fazê-lo mudar sua visão de mundo, o que infelizmente acaba acontecendo. Com cerca de seis meses de vida pela frente, em virtude de um câncer terminal, o homem passa a encarar a vida de outra forma, percebendo que chegou à terceira idade sem ter vivido propriamente. Mantendo segredo de todos à sua volta, ele se dedica aos pequenos prazeres de uma vida que nunca viveu, pois estava mais preocupado com sua carreira. Viúvo e com um filho já distante, Williams passa a sofrer com o julgamento das pessoas, fruto da mentalidade tacanha de uma época em que a troca de um chapéu já é motivo suficiente para gerar burburinho.


Todavia, é uma felicidade ver o veterano Bill Nighy finalmente tendo a oportunidade de mostrar seu verdadeiro talento. Dono de uma carreira marcada por papéis secundários, mas quase sempre memoráveis, seja em produções comerciais (ele viveu o Davy Jones da franquia Piratas do Caribe), caseiras (marcou presença na Trilogia Cornetto do conterrâneo Edgar Wright) ou subestimadas (pois emocionou como o pai do protagonista de Questão de Tempo), o britânico recebeu um verdadeiro presente em Living. Adotando um tom de voz baixo e cansado, Nighy é hábil ao tornar o Sr. Williams uma pessoa ao mesmo tempo imponente e frágil. E mesmo que jamais soe arrogante, ao contrário, é sempre gentil e humilde com quem o aborda, Williams passa por uma transformação que é sugerida por Bill Nighy através de gestos sutis, como em uma conversa de falas rápidas ou os sorrisos que se tornam mais frequentes.


Mantendo a lição de vida presente em Viver, o roteiro discursa a favor do carpe diem enquanto ilustra a busca do Sr. Williams por deixar sua marca no mundo, construindo uma analogia brilhante envolvendo a agilização do processo de licitação de uma praça, que serve também como uma tocante metáfora sobre o passado de Williams. É sintomático, portanto, que Living opte pelo contraste entre o ambiente burocrático que acabou contaminando o protagonista, e os bairros boêmios londrinos, com destaque para Piccadilly, palco do recém-descoberto lado hedonista do Sr. Williams.


Mesmo tão eficaz em seus argumentos, é uma pena que o roteiro de Kazuo Ishiguro (romancista autor de Não Me Abandone Jamais) demonstre tanta insegurança, desconfiando da capacidade intelectual de seu público ao incluir diálogos extremamente expositivos em seu ato final, quando entrega-se a sequências concebidas para mastigarem todas as lições e mensagens presentes no filme.


Contudo, Living permanece como uma experiência edificante ancorada por uma performance inesquecível de um ator que já passou da hora de ser reconhecido não apenas por seus serviços prestados à Arte, mas também por seu talento, agora inquestionável.


NOTA 7,5


 

Call Jane (Idem, 2022) | Estados Unidos


Nos anos 60, Joy (Elizabeth Banks) é uma mulher rica de meia-idade que deixou a vida como advogada para se dedicar ao marido (Chris Messina), também advogado, e à filha. No plano-sequência que abre o filme, ela é vista deixando um jantar num restaurante sofisticado e quando chega à rua se depara com uma manifestação pelos direitos femininos, numa clara metáfora à trajetória pela qual a protagonista passará. Afinal, sua vida perfeita ao lado do marido bem-sucedido é impactada pelo diagnóstico de uma doença cardíaca que a impede de prosseguir com sua gravidez. Portanto, o que poderia vir a ser encarado pelo ponto de vista moral, passa a ser uma questão de vida ou morte, já que o aborto se apresenta como a única solução possível para salvá-la. Mas como convencer a diretoria do hospital em que se trata, composta apenas por homens ricos e conservadores, de aprovar um aborto?


Indicada ao Oscar pelo roteiro de Carol e estreando no Cinema como diretora, Phyllis Nagy é inteligente ao afastar Joy, desde o início, de uma postura política. Se Joy eventualmente entra para o movimento feminista (que defende a decisão de abortar como sendo exclusivamente da mulher), é porque finalmente encontrou o seu lugar, que lhe oferece a chance de ser útil. Sem soar panfletário, o roteiro de Hayley Schore e Roshan Sethi (ambos da série The Resident) coloca o espectador ao lado de Joy em seu descobrimento do submundo dos abortos ilegais. O lado político se apresenta por argumentos que partem de outros personagens, soando convincentes para Joy e, consequentemente, para o público que se identificar/simpatizar com ela.


Marcando posição ao criticar a imposição da função de Dona de Casa às mulheres através da subtrama envolvendo o marido de Joy, os roteiristas cometem alguns tropeços pontuais. Em certo momento, por exemplo, a personagem de Sigourney Weaver (Avatar) afirma que a organização “paga para os monstros certos”, sugerindo um suborno às autoridades, mas isso não impede um policial de aparecer na casa de Joy questionando-a como uma suspeita (e que ele termine pedindo ajuda para uma amiga torna tudo ainda mais embaraçoso). Além disso, o médico que realiza os abortos simplesmente desaparece da história sem a menor justificativa (o diálogo que insinua sua ausência fortalece a teoria de que uma cena mais concreta foi cortada na sala de edição).


Melhor desenvolvido é o argumento pró-aborto, que faz questão de abarcar todos os pensamentos ao articular seu discurso, sobrando até mesmo para a religião, representada por uma freira que oferece apoio a quem exibe a famigerada “culpa católica”. Nesse contexto, durante o Festival do Rio 2022, Call Jane se revela uma das produções menos agressivas em termos políticos, procurando concentrar seus esforços nas mulheres, algo que faz ainda mais sentido quando nos lembramos que a história se passa na década de 60.


Atriz versátil, mas costumeiramente lembrada como comediante, Elizabeth Banks (Brightburn: Filho das Trevas) oferece uma performance contida, mas que ressoa no espectador ao investir num olhar que mescla inocência e honestidade. Já Sigourney Weaver brilha no pouco tempo de tela em que aparece como a líder da organização que possibilita os abortos, em mais uma atuação segura. E se Chris Messina pouco pode fazer com o papel de marido frustrado por não ter o jantar pronto quando chega em casa (leia-se: insatisfeito por ver a esposa fazendo mais do que serví-lo), Kate Mara sofre ainda mais, desperdiçada num papel minúsculo que parece existir apenas para chancelar as mudanças de Joy (“você é democrata?”, ela pergunta espantada).


Encerrando a projeção em tom pacífico ao tentar reunir pessoas de pensamentos distintos (como a filha de Joy e potenciais espectadores), Call Jane se permite alguma exposição ao final, ganhando na voz de Sigourney Weaver uma estranha narração que amarra o filme do jeito mais didático possível. No final das contas, as ótimas intenções de Call Jane facilitam a simpatia do público, que ganha de presente uma história contemporânea sobre um tema que permanece um tabu, principalmente no Brasil.


NOTA 6


 

Às Margens (Em Los Márgenes, 2022) | Espanha


Numa Madrid contemporânea, três histórias retratam a crise econômica e o impacto desta na vida das pessoas. Rafa (Luis Tosar, de Código: Imperador) é um advogado que defende os direitos dos locadores e se coloca numa missão de impedir que uma criança seja tirada de sua mãe, ausente por trabalhar em vários empregos. Azucena (Penélope Cruz, de Concorrência Oficial) é uma funcionária de supermercado prestes a ter sua casa tomada pelo banco. Casada e mãe de um filho pequeno, ela luta constantemente para evitar seu despejo, ganhando o apoio de manifestantes sempre que aparece em público. Por fim, Germán (Font García, de O Bom Patrão) é um sujeito amargurado por ter um emprego insuficiente e que se culpa pelos problemas financeiros da mãe, que cujas tentativas de comunicação acaba ignorando por se sentir envergonhado.


Adotando uma estrutura narrativa que o aproxima de obras como Crash – No Limite e Babel, Às Margens é a estreia de Juan Diego Botto (que faz uma ponta como o marido de Azucena) na direção. Eficaz ao evocar urgência, o estilo de Botto parece um cruzamento das linguagens típicas dos Irmãos Dardenne com o dos Irmãos Safdie, provocando uma ansiedade crescente no espectador. Parte dela reside no núcleo ancorado por Rafa, que serve como o centro nervoso da história. Incumbido de apenas duas tarefas por sua esposa grávida (levar seu enteado para pegar um ônibus e comparecer em um exame), ele acaba se enrolando numa série de atividades paralelas relacionadas a seu trabalho como advogado. Fracassando em quase todas as frentes, Rafa se prende à possibilidade de ajudar uma mãe a recuperar sua filha, mas sequer sabe o paradeiro da mulher, o que lhe atira numa busca alucinante pelas ruas de Madrid enquanto mais obstáculos teimam em surgir no seu caminho.


Esses momentos aliás, também servem como ponte, permitindo ligações com a história de Azucena, cuja tensão emocional reside na iminência de despejo, consequentemente elevando os ânimos em sua casa, principalmente com o marido, algo ilustrado com perfeição numa sequência de briga em que Penélope Cruz nos lembra o porquê de ter um Oscar. Entretanto, por mais que a fama e o talento de Cruz chamem atenção, é Luis Tosar quem acaba roubando a cena, tornando-se o destaque do filme por investir numa performance humana repleta de nuances. Afinal, Rafa é um homem que em sua tentativa de realizar múltiplas tarefas, acaba não concluindo nenhuma, obrigando-o a ouvir provocações de seu enteado (“você sempre promete muitas coisas, mas não cumpre nenhuma!”). É ele quem tem o arco dramático melhor delineado, evoluindo sua relação com o enteado à medida em que revela sua personalidade altruísta. Já Font García tem o infortúnio de protagonizar o segmento mais irregular da projeção, protagonizando sequências que não se conectam às demais tramas, gerando uma barriga que fere o ritmo da narrativa.


Trazendo ainda o peso das estatísticas ao escancarar a realidade do que apresenta (na Espanha ocorrem cerca de 100 despejos por dia), Às Margens é um filme que se beneficia do ritmo inquieto de uma montagem capaz de provocar ansiedade sem apelar para prazos ou contagens regressivas. E se não possui o brilhantismo narrativo das obras citadas no segundo parágrafo, merece atenção por expor uma situação crítica que se alastra por todo o planeta, pregando a humanidade como ponto de partida para solucioná-la.


NOTA 7,5


 

Nossa Senhora do Nilo (Notre-Dame du Nil, 2019) | França/Ruanda)


Baseado no best-seller de Scholastique Mukasonga, Nossa Senhora do Nilo pode parecer, à primeira vista, um típico coming of age, utilizando como cenário a instituição do título, comandada por freiras belgas e que visa educar meninas vindas da elite ruandesa. Dividido em quatro capítulos (“Inocência,” “Sacro,” “Sacrilégio,” e “Sacrifício”), o roteiro aos poucos dá pistas sobre suas verdadeiras intenções, abandonando a atmosfera lúdica que permeia a primeira metade para abraçar tons de thriller político em seu final, quando se revela como um conto sobre as origens do sangrento confronto entre Tutsis e Hutus, antecipando o genocídio de mais de oitocentos mil Tutsis ruandeses.


Beneficiando-se da etnia Hutu, que governava o país na época, Gloriosa, uma das estudantes, convence uma colega a ajudá-la a “consertar” a imagem da Virgem Maria Negra que é mantida num altar da escola, alegando que o nariz da estatueta não é “hutu”. Mas quando o plano falha, danificando o rosto da imagem e sujando as roupas da dupla, Gloriosa inventa uma mentira para escapar da iminente punição. A ideia? Dizer que elas foram atacadas por Tutsis, que tentaram estuprá-las, mas que acabaram fugindo. A mentira ganha proporções que fogem do controle de Gloriosa, que se vê no centro de um conflito prestes a irromper.


Lidando com o preconceito, o diretor e roteirista afegão Atiq Rahimi concebe uma experiência que se divide em tons bem distintos entre si. Enquanto a primeira metade aborda o lado lúdico da vida das estudantes, com inocentes brigas de travesseiro, fofocas à noite e muitas gargalhadas; a segunda não hesita em incorporar elementos de filmes de guerra, mesmo que a violência jamais seja explícita. O impacto maior reside na sustentação da mentira por parte de Gloriosa, que se descobre uma ativista política cega para o próprio preconceito.


Ela é a grande responsável por esquentar o clima na escola, permitindo uma invasão Hutu que oferece um vislumbre do massacre que viria a acontecer anos mais tarde. É curioso notar como Nossa Senhora do Nilo não se esquiva de polêmicas, fazendo questão de jogar luz sobre todos os lados da história. As ambições de Gloriosa, travestidas de fake news, servem como alegoria para criticar o colonialismo, especialmente belga.


Apesar da natureza modesta do projeto, a qualidade técnica salta aos olhos, a começar pela ótima trilha sonora que aposta num jazz incomum para esse tipo de obra. A fotografia, que valoriza a beleza bucólica do lugar que abriga o instituto, é competente ao ilustrar a efervescência das adolescentes, investindo numa paleta de cores quentes que ao final é substituída por cores frias, uma mudança adequada para a história. Já a montagem é ligeiramente prejudicada pelo tom episódico com que conecta os quatro capítulos.


Contando com atuações que prezam pelo naturalismo, Nossa Senhora do Nilo surpreende pelos excessos em seu terço final, quando as intrigas inicialmente inconsequentes, crescem e culminam em violência e desespero, impactando por não economizar no clima de suspense. O sangue também se faz presente, indo na contramão do que havia sido apresentado.


NOTA 6,5


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