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Foto do escritorGuilherme Cândido

Festival do Rio 2022 | Dia 4

Devoro o Seu Coração (Ti mangio il cuore, 2022) | Itália


Duas famílias dominam o submundo do crime numa cidade italiana. Inimigas mortais, elas são lideradas por homens implacáveis, mas que mantém o decoro em prol da manutenção da paz. Entretanto, quando um jovem casal se apaixona, sendo um de cada família, o caos se instala até que eles resolvam tomar uma importante decisão. Romeu e Julieta? Errou, pois essa é a sinopse de Devoro o Seu Coração, novo filme do cineasta italiano Pippo Mezzapesa. Rodado numa fotografia monocromática que apesar da beleza estética não se justifica narrativamente, já que não há sequer a intenção de se explorar as sombras, a produção "homenageia" a premissa do clássico de Shakespeare para contar livremente a história real da primeira informante oficial do Caso dos Clãs de Gargano, província da região italiana da Apúlia.


Iniciando a projeção em 1960 com uma sequência poderosa e belíssima envolvendo o ataque de membros da família Camporeale contra os Malatesta, com direito a esguichos de sangue manchando a imagem de uma santa, o filme nos apresenta a Michele (Tommaso Ragno, de Nostalgia, filme exibido ontem no Festival do Rio) único sobrevivente dos Malatesta e que jura vingança contra os rivais. Saltando para os anos 2000, ficamos sabendo que Michele não apenas conseguiu se vingar, como formou sua própria família e hoje comanda o novo império dos Malatesta. Seu filho Andrea, porém, coloca em perigo a longa trégua que vigora entre os clãs ao ficar obcecado por Marilena (a popstar Elodie, debutando no Cinema) com quem acaba se envolvendo mesmo após ouvir os alertas de seu pai, mencionando que o marido dela, Santo, está foragido, mas administrando os negócios da família à distância.


O roteiro, escrito pelo próprio diretor Pippo Mezzapesa, tenta driblar os clichês narrativos com uma estrutura enxuta, mas o excesso de elementos triviais, muitos destes consagrados por obras superiores (O Poderoso Chefão é a referência imediata) dilui o impacto da narrativa. Para piorar, Mezzapesa pesa a mão ao ilustrar a personalidade tacanha dos chefões do crime, concebendo um mundo regido por valores arcaicos e extremamente hostil às mulheres. Nesse ponto, a história acerta ao apontar o machismo mesmo que escancaradamente (“eles deixaram uma mulher falar!”, alguém esbraveja em um momento), mas é hipócrita ao objetificar as figuras femininas, especialmente Marilena.


Com angulações que parecem saídas de um filme dirigido por Michael Bay, Mezzapesa se alonga ao mostrar as curvas de Elodie, que supostamente deveria ser a grande figura feminina do filme (ela resiste aos abusos do marido encarando-o com firmeza), mas cuja força é prejudicada por uma passagem embaraçosa com a personagem ajudando uma jovem a se arrumar para “enlouquecer” um homem, alimentando uma tese retrógrada e perigosa. Além disso, a completa ausência da polícia causa estranhamento numa história envolvendo crimes graves cometidos por famílias famosas em toda a cidade. Em compensação, Mezzapesa se sai melhor ao mostrar como o crime se renova naquela região, retratando a violência como algo cíclico e que transcende a cultura local, sendo assumida quase como um traço genético.


O veterano Tommaso Ragno aproveita todo o tempo de tela que não teve em Nostalgia para construir uma performance irretocável: exibindo autoridade sem recair no histrionismo, ele consegue a proeza de despertar a simpatia do espectador pela forma como coloca sua família acima de tudo, mostrando que o tempo o ajudou a abandonar a vaidade em prol do bem-comum, para garantir o bem-estar dos seus próximos. Por isso, quando Michele sai de cena, a produção cai vertiginosamente, já que passa a depender de dois intérpretes que não fazem jus ao talento e ao carisma de Ragno.


Francesco Patanè, por exemplo, em seu segundo longa-metragem, recebe um desafio claramente grande demais para suas capacidades dramáticas. Embora convença como o jovem puro e idealista da primeira metade, Patanè não acompanha o crescimento de Andrea, personagem que evolui gradativamente até se tornar o centro nervoso da história, mas que é sabotado por um intérprete incapaz de transmitir as nuances de seu arco dramático. Já Elodie se sai ligeiramente melhor, destacando-se ao valorizar a sensualidade de Marilena. Fica evidente, porém, que a cantora ainda tem muito a melhorar em termos dramáticos, mesmo que não chegue a comprometer.


No final das contas, Devoro o Seu Coração almeja equiparar-se aos grandes épicos sobre a máfia, mas não possui predicados suficientes para se destacar em meio a um subgênero repleto de obras infinitamente superiores, o que não o impedirá de formar o seu próprio público.


NOTA 7


 

Um Homem (Aru otoko, 2022) | Japão



O título em inglês é categórico, pois com a óbvia exceção da nossa família, tudo o que sabemos de uma pessoa pode ser fruto do que ela própria diz. Se é verdade ou não, é outra história, mas o fato é que não fosse pelos dados mais objetivos, o que sobra seria subjetivo. Porém, o que define uma pessoa? Seu nome? Seu trabalho? Seu passado? Esses e outros questionamentos permeiam a narrativa de Aru Otoko (no original), quarto longa-metragem do japonês Kei Ishikawa.


A enlutada funcionária de uma papelaria recebe um cliente misterioso. Com uma cicatriz próxima ao olho esquerdo, o homem de modos comedidos, cabeça baixa e poucas palavras aos poucos se aproxima. Entre idas e vindas, os dois acabam construindo uma relação diferente. A moça e seu filho acolhem o sujeito como membro da família, vivendo juntos até um acidente tirar a vida dele. No funeral, porém, seu irmão chega para prestar condolências e não o reconhece, fazendo uma revelação aterradora: o falecido não é quem diz ser. Quem seria o tal homem, então?


Pecando numa estrutura narrativa que tem dificuldades para administrar seus núcleos dramáticos, Um Homem se divide entre a investigação por parte de um advogado contratado pela mulher e o cotidiano desta enquanto sustenta sua mãe e seu filho. O problema é que a partir de determinado momento, o filme simplesmente esquece da tal mulher, que desaparece sem a menor cerimônia. Enquanto se concentra no mistério, porém, o filme ganha outra abordagem, destoando do primeiro ato.


A investigação, aliás, é desenvolvida de forma irregular, acelerando e desacelerando o ritmo de acordo com as demandas narrativas, mesmo que o carismático Satoshi Tsumabuki faça um ótimo trabalho como o advogado que se encarrega de desvendar o mistério. Já Sakura Andô oferece uma performance sensível ao transmitir compaixão, empatia e paciência com gestos mínimos. Ela, aliás, se estabelece como a âncora emocional do filme, protagonizando as sequências mais densas e saindo-se bem.


Tropeços à parte, todos os eventos da narrativa se desdobram a fim de abarcarem elementos que sirvam ao discurso principal. Afinal, Um Homem é sobre identidade e tudo que acaba servindo para formá-la. Através de passagens sensíveis como aquela em que alguém revela não gostar de se olhar no espelho por possuir um rosto parecido com o do pai, assassino condenado à morte, o roteiro debate o que realmente define uma pessoa. Além disso, aproveita os questionamentos para tecer comentários sobre preconceito e intolerância, assumindo uma postura contemporânea ao se posicionar sobre o ódio a estrangeiros que vem assolando o mundo inteiro (inclusive o Japão).


Para isso, não mede palavras, utilizando o advogado (coreano naturalizado japonês) para ilustrar a hostilidade que é destinada ao supostamente diferente. A pré-disposição a atribuir rótulos é encarada como uma prática, infelizmente, recorrente numa sociedade que consome informações não para o conhecimento, mas para chancelar críticas que eventualmente se transformam em ódio, mantendo a engrenagem da intolerância em constante movimento.


Encerrando a projeção com a conclusão de que nem o passado importa quando formamos um laço afetivo com alguém, Um Homem é um longa-metragem tristemente contemporâneo que se beneficia de seu engenhoso roteiro para oferecer uma experiência agridoce, mas necessária para o momento que vivemos.


NOTA 7,5


 

Close (Idem, 2022) | Bélgica



Para o crítico e teórico de cinema Béla Balázs (1884 – 1949), pioneiro do formalismo, o Cinema tinha potencial para finalmente acabar com o reinado da palavra, elevando a imagem a uma posição de destaque precisamente por transmitir sentimentos que não podem ser colocados em texto. Em outras palavras, Balász teria sido o precursor da máxima “não conte, mostre”, espécie de “mandamento” que rege o trabalho de grandes realizadores, como o belga Lukas Dhont.


Com apenas 26 anos de idade, Dhont já subia ao palco do Festival de Cannes para receber a Câmera de Ouro por Girl, seu longa-metragem de estreia e cuja maturidade impressionou o júri, encantado com o mais recente menino prodígio do Cinema Mundial. Seguindo os passos de outros grandes nomes vindos da Bélgica, como Agnés Varda e, especialmente, os irmãos Jean Pierre e Luc Dardenne, Lukas Dhont prova com Close que veio não apenas para ficar, mas também para marcar. O que o jovem cineasta e roteirista faz é concretizar na tela o pensamento de Balázs, extraindo da imagem significados grandes demais para serem expressados em meras palavras.


A amizade simbiótica de Léo (Eden Dambrine) e Remy (Gustav De Waele) é retratada pelas lentes de Dhont como a essência da pureza infantil, ilustrando a convergência dos dois através de brincadeiras repletas de imaginação. Inseparáveis, eles não conseguem ficar um segundo sequer longes um do outro, nem mesmo na hora de dormir, quando uma cama se mostra mais do que suficiente para acomodá-los. Porém, quando as aulas começam, a ligação íntima entre eles é abalada pelo escrutínio dos colegas, que não compreendem a relação dos dois, traduzindo a estranheza provocada pelo afeto descomedido em insinuações inconsequentes sobre a natureza do amor entre eles.


Inicialmente, Remy dá de ombros, inabalável e seguro ao lado de Leo, que por sua vez se mostra cada vez mais incomodado com a impressão passada aos demais estudantes. As atitudes e os gestos que antes eram naturais, espontâneos como repousar a cabeça no corpo do outro, agora ganham uma preocupação inédita: a de estarem sendo observados. E o olhar alarmado de Leo pouco antes de se esquivar de Rémy é revelador na transição pela qual está passando a amizade entre eles.


E Lukas Dhont não demonstra qualquer sinal de pressa ao desenvolver a distância que se alarga entre os, antes, inseparáveis melhores amigos. Investindo em gestos que se fazem marcantes justamente pela sutileza com que são captados, como ao focar Léo deixando a cama para dormir sozinho no chão, mas acordando com Rémy ao seu lado. Enquanto o primeiro se esforça para agir sem magoar o segundo, é justamente Rémy quem acaba sofrendo mais, por não entender o que está acontecendo. E o momento em que o garoto finalmente se dá conta é apenas um dos mais desoladores a atingirem o coração do espectador. Pois o poder de Close reside no dito pelo não dito, onde nada é explícito, mas tudo é sentido.


Numa época em que os diálogos expositivos são mais do que uma tendência, é uma alegria testemunhar a comunhão entre inteligência, sutileza e sensibilidade que conduz o trabalho de Lukas Dhont, avesso a mastigar a história para o público e seduzido pela ideia de alimentar interpretações. Nesse ponto, o cineasta merece elogios por negar-se a fornecer respostas definitivas até mesmo sobre um chocante acontecimento do segundo ato, distanciando-se também de um potencial melodrama que poderia vir acompanhado. Aliás, é curioso notar como Dhont evita ao máximo a explosão de emoções, certificando-se de interromper reações antes do clímax, especialmente por meio de cortes secos ou através de atitudes evasivas de seus personagens. Close acaba ressoando emocionalmente exatamente por isso e Dhont é brilhante ao empurrar as inevitáveis confrontações para seu desfecho, quando enfim se permite descarregar (junto a seu protagonista) suas emoções.


Todavia, é impossível abordar a carga emocional do filme sem mencionar a performance histórica de Eden Dambrine como Leo. Grande revelação do projeto ele é um verdadeiro achado e espero poder vê-lo em outras produções. Compondo Leo com uma naturalidade assombrosa, nem parece que Dambrine está atuando pela primeira vez, dominando cada cena em que aparece com uma segurança digna de um veterano. Não por acaso, a única capaz de fazer frente ao seu talento é a conterrânea Émilie Dequenne (descoberta pelos Dardenne no magnífico Rosetta): como a mãe de Rémy, ela é a personificação da tristeza contida, expressando no olhar o peso que carrega sobre os ombros, mas que esconde dos outros. Como não poderia deixar de ser, a melhor e mais intensa sequência do filme é aquela protagonizada por Dambrine e Dequenne numa floresta.


Se em Girl, Lukas Dhont fez uso amplo do azul para ilustrar o universo de sua protagonista, em Close é o vermelho que predomina, seja através das paredes do quarto de Remy ou pelas flores colhidas por Leo, quase todas as cenas possuem pelo menos um elemento na cor referida. Enquanto isso, a fotografia investe em tons quentes para banhar as cenas protagonizadas por Leo e Remy, mergulhando a narrativa num véu cinzento e sem vida na segunda metade.


Informativo, sem soar didático e educativo sem ser panfletário, a produção deveria ser incorporada ao sistema educacional desde já, tamanha a sua eficiência como retrato do bullying e os efeitos silenciosos que pode provocar nos mais jovens. Prática que deve ser coibida desde os primeiros sinais, o bullying demorou a ser levado a sério pelos brasileiros, que só há alguns anos começou a estudá-lo mais profundamente a partir do viés psicológico.


Triste, tocante e dramaticamente poderoso, Close desafia minha hesitação habitual em utilizar adjetivos superlativos, mas seu brilhantismo me leva a ceder ao impulso de colocá-lo não somente como o melhor filme do Festival do Rio 2022 até agora, como também um dos melhores do ano, mesmo que a experiência de assistí-lo seja devastadora. Para o bem e para o mal.


NOTA 9,5







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