Festival do Rio 2022 | Abertura ("Império da Luz")
Levando o mundo inteiro a um período nebuloso, remetendo a épocas ainda mais sombrias de nossa História, a Pandemia de Covid-19 obrigou países a adotarem medidas severas com o intuito de frear a disseminação do Coronavírus. Assim, com a implantação do lockdown em praticamente todos o planeta, coube aos cidadãos lidarem com a nova realidade que lhes foi imposta. Apesar de haver quem se adaptasse com menos dificuldade, diante do prolongamento da quarentena, era raro quem não sucumbisse ao confinamento. Dentre os meios encontrados para driblar a ociosidade, escrever talvez tenha sido um dos mais populares, sendo adotado por muitos artistas ao redor do globo, entre eles o britânico Sam Mendes. Vencedor do Oscar de Melhor Diretor por Beleza Americana e triplamente indicado pelo recente 1917, Mendes decidiu deixar sua criatividade fluir, concebendo um roteiro baseado em experiências da sua juventude, como o cinéfilo em formação que frequentava um suntuoso cinema de rua na costa sul inglesa. Nascia Império da Luz, forma encontrada por ele para homenagear a mais apaixonante das artes: o Cinema.
Ambientado no início da década de 80, o filme acompanha Hillary (Olivia Colman, vencedora do Oscar por A Favorita), que após os dias atribulados como gerente do cinema Empire, entrega-se a uma rotina solitária numa fria cidadezinha costeira. Mas com a chegada de um jovem funcionário, Stephen (Micheal Ward, de Gangues de Londres), a expressão triste em seu rosto aos poucos vai dando lugar a sorrisos esporádicos, modificando a vida de uma senhora aparentemente sem propósito.
Contando com uma direção de arte competente que faz do apartamento de Hillary um reflexo de sua personalidade, ao fazer com que a escuridão que toma conta dos aposentos durante todo o primeiro ato ganhe iluminação através da mera abertura de cortinas, a produção rapidamente estabelece uma conexão quase mística com a Luz. “Luz é vida”, diz um personagem em determinado momento e o roteiro de Mendes abusa do simbolismo para justificar esse argumento.
O cinema Empire, por exemplo, possui letreiros luminosos imensos, além de contar com uma iluminação interna expressiva, banhando o opulento salão com uma luz amarela penetrante. Entretanto, Mendes vai além, estabelecendo o Cinema (a Arte em si), como uma alegoria desse discurso, pois se vale da Luz em várias camadas. Afinal, os projetores que levam Luz (vida) às pessoas, funcionam à base de... luz, como explica o projecionista vivido por Toby Jones (O Nevoeiro), detalhando todo o processo envolvendo o fenômeno Phi (aquele que permite a ilusão da imagem em movimento a partir de um defeito ótico que possuímos).
Aliás, o próprio filme ganha vida sempre que está abordando o Cinema, numa clara demonstração da paixão do cineasta Sam Mendes, nostálgico ao enfileirar referências a clássicos como Touro Indomável, Os Caçadores da Arca Perdida, Muito Além do Jardim, entre outros. Seu amor aos filmes é palpável e contagiante, representando os melhores momentos da projeção. Aqueles que (como eu) compartilham desse sentimento de Mendes, dificilmente não se envolverão com belas sequências como aquela em que Hillary finalmente decide assistir a um filme.
Pois acima de tudo, Sam Mendes é uma pessoa que acredita no poder de cura que o Cinema possui, seja por possibilitar uma fuga da realidade e/ou por servir como um refúgio psicológico. Fica claro que, assim como este que vos escreve, o cineasta enxerga os filmes como algo muito maior do que um simples entretenimento, depositando na Arte um significado que vai além das palavras. É por isso que Stephen sugere para Hillary, durante um período de instabilidade emocional, permitir que um filme a resgate.
É uma pena, portanto que Mendes perca o foco, entregando-se a subtramas que, apesar de socialmente relevantes, tornam a narrativa convoluta e dispersa. No meio da belíssima ode ao Cinema que estava construindo, o realizador abre espaço para uma série de discussões que jamais são elaboradas a contento. Há espaço para o desenvolvimento de uma trama envolvendo a tensão racial da época, com o affair entre Hillary e Stephen, mas que compete com o debate acerca da saúde mental, apresentado através do surgimento de um problema psicológico enfrentado pela protagonista. Mendes ainda desperdiça o grande Colin Firth (O Discurso do Rei) numa participação que procura explorar a relação entre seu personagem (o dono do Empire) e Hillary. Tudo, porém, pouco elaborado, pois na tentativa de abordar tantos assuntos, nenhum acaba tendo tempo o bastante para gerar resultados.
Por outro lado, assim como outras obras de Sam Mendes, Império da Luz é tecnicamente impecável. Também, contando com nomes como o de Lee Smith na montagem, a dupla Trent Reznor e Atticus Ross na trilha sonora e o gênio Roger Deakins na fotografia, todos vencedores de pelo menos um Oscar, a tarefa fica muito mais fácil. Deakins, como de hábito, cria planos absolutamente magníficos e dignos de serem emoldurados, como o estonteante contraluz de Hillary e Stephen enquanto fogos de artifício estouram ao fundo ou o plano em que Hillary caminha por uma trilha no meio de grandes árvores num parque. Além disso, a ideia de revestir o filme com um elegante véu que remete aos fachos de luz saídos do projetor, traz elegância e contribui para a narrativa.
Já Reznor e Ross, conhecidos pelos temas eletrônicos (os de A Rede Social renderam um Oscar), mostraram versatilidade com as composições de jazz em Soul (outro Oscar para a dupla) e novamente surpreendem, com melodias suaves e melancólicas que evocam o agridoce tom nostálgico pretendido por Mendes. Já a montagem de Lee Smith (Oscar por Dunkirk), num de seus trabalhos mais formais (note a ausência de raccords), confere ao filme um ritmo apenas adequado.
É impossível, no entanto, falar de Império da Luz sem mencionar Olivia Colman: atriz que se revela melhor a cada filme, ela oferece uma performance repleta de nuances, mas que se destaca pelos detalhes de sua composição. Assim como aconteceu em A Filha Perdida, Colman tem um dom assombroso de transmitir sentimentos conflitantes através de um singelo sorriso. Observe, por exemplo, como a britânica sorri ao receber uma notícia que obviamente a abala. Além disso, ela é capaz de oferecer nuances dramáticas com gestos mínimos e o momento mais impressionante talvez seja o desviar de olhar numa cena-chave com Stephen num parque, evocando o turbilhão interno que a move.
Diante de elementos tão admiráveis, Império da Luz tinha tudo para ser uma das obras mais memoráveis de 2022, com uma carta de amor ao Cinema capaz de contagiar até o mais pessimista dos espectadores, pena que diante de um mundo de sonhos, Mendes tenha achado necessário adicionar elementos realistas que além de quebrarem a fantasia, não evoluem a ponto de marcarem posição.
NOTA 6,5
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