Festival do Rio 2018 | Dia 2
Atualizado: 28 de jul. de 2022
Neste segundo dia do Festival, vi os novos de Debra Granik (de Inverno da Alma), Jason Reitman (de Juno) e de Christophe Honoré (de A Bela Junie). Infelizmente o alto padrão do primeiro dia não foi mantido. Vamos às críticas:
Sem Rastros (Leave No Trace) | Canadá/EUA
Responsável por alçar Jennifer Lawrence ao estrelato, a cineasta estadunidense Debra Granik ainda colhe os frutos pelo marcante Inverno da Alma, filme que recebeu 4 indicações ao Oscar em 2011. Relacionando-se com a natureza como se esta fosse praticamente uma personagem, aquela produção já revelava muitas pistas sobre o que Granik viria a explorar em seu mais novo filme, Não Deixe Rastros (Leave no Trace, no original).
Contando a história de um pai que vive com sua filha na floresta (mais precisamente no Parque Público de Portland), Granik constrói um retrato bucólico e sincero de um relacionamento em fases opostas. Enquanto Will (Ben Foster) mostra-se incapaz de viver em sociedade, recusando a deixar a vida simples entre as árvores, Tom (Thomasin McKenzie) é uma adolescente em franco desenvolvimento, demandando uma agressiva expansão que invariavelmente entra em choque com os ideais consolidados de seu pai.
E o roteiro (também de autoria de Granik ao lado da produtora Anne Rosellini) ganha pontos pela sutileza com que sugere as mudanças da garota, como ao fazer com que a frase “estou com fome” seja repetida várias vezes, por exemplo, ou ao mostrá-la cada vez mais à vontade com outras pessoas, ainda que com certa insegurança, o que aos poucos vai lhe distanciando de seu cotidiano minimalista e lhe apresentando a uma realidade cosmopolita repleta de possibilidades. Nessa conjuntura, a performance da jovem Thomasin McKenzie (O Hobbit – A Batalha dos Cinco Exércitos) é crucial para que compreendamos a essência da adolescente sem enxergá-la como uma rebelde sem causa.
Transitando entre a seriedade com que conduz as tarefas ao lado de seu pai com uma leveza subjacente que evidencia sua visão de mundo, McKenzie é inteligente ao jamais transformar Tom numa espécie de ‘adulto em corpo de adolescente’, permitindo-se pequenos arroubos infantis que conferem à moça uma aura inocente e espontânea, tanto em seu fascínio por cavalos-marinhos, como nas brincadeiras que faz para chamar a atenção de seu pai para sua fome crescente.
Estabelecendo desde o início uma forte química com sua parceira de cena, Ben Foster (Warcraft), por sua vez, concebe Will como um veterano de guerra que lida com seu estresse pós-traumático através da determinação em cuidar de Tom e fazê-la uma pessoa digna, impedindo que lembranças ruins afetem seu modo de agir. Aliás, é preciso reconhecer a composição disciplinada de Foster, que evidencia a evolução de um intérprete infame por seu histrionismo.
Por outro lado, não é por acaso que Tom e Will sejam o coração de Não Deixe Rastros, por meio de um relacionamento honesto e respeitoso, mesmo quando há evidente e irredutível discordância de pensamentos, e é comovente ver a devoção de Tom levá-la a acompanhar o pai mesmo contra sua própria vontade, agarrando-se à esperança de vê-lo finalmente liberto.
Liberdade que acaba se tornando um elemento importantíssimo na jornada de Tom, uma jovem em constante mudança e cujas ambições já não cabem mais no mundo reservado e isolado de seu pai, que mal consegue cumprir a promessa de tentar adaptar-se à vida em sociedade, falhando miseravelmente em sua eterna luta contra os efeitos colaterais da guerra.
Embora a dicotomia entre natureza e sociedade moderna inicialmente sugira um contraste através do estilo de vida minimalista , aos poucos vai cedendo espaço a uma trama mais interessada nas relações interpessoais, indo numa direção semelhante a do magnífico Capitão Fantástico, seu primo temático e que coloca Viggo Mortensen na pele de um pai que educa seus filhos por conta própria em, adivinha só, uma floresta.
Uma comparação que não faz nada bem a Não Deixe Rastros, já que nem mesmo a agradável experiência proporcionada pela história é capaz de contornar a superficialidade de seus conflitos e sua condução frouxa por parte de sua diretora, que pode até ser competente ao extrair performances marcantes de seus protagonistas, mas carece de um algo a mais capaz de trazer contundência a uma narrativa que parece presa numa estrada sem um destino aparente.
Uma rua repleta de verde ao seu redor e pavimentada com um sofisticado asfalto, mas percorrida por um carro sem muita potência para seguir viagem.
NOTA 7,5
O Favorito (The Front Runner) | EUA/Canadá
Em 1988, a eleição americana estava sendo liderada pelo senador Gary Hart com larga vantagem. Carismático e desenvolto com as palavras, sua campanha parecia caminhar para uma inevitável vitória, até que um escândalo surgiu e tomou conta dos tabloides. Por mais que Hart negasse seu envolvimento com uma amante, reportagens detalhadas com relatos e fotos aos poucos desgastaram sua imagem perante os eleitores, minando a candidatura daquele que viria a ser reconhecido como o homem que quase foi presidente da república.
Para cumprir as demandas do papel, seria difícil imaginar alguém mais adequado do que Hugh Jackman (Logan), que não só tira de letra o papel de cafajeste carismático como também brilha nas sequências mais intensas, trazendo peso dramático e fazendo frente a nomes consagrados como J.K. Simmons (vencedor do Oscar por Whiplash - Em Busca da Perfeição) e Vera Formiga (indicada ao Oscar por Amor Sem Escalas). Há uma cena, inclusive, envolvendo uma discussão entre Gary (Jackman) e Bill (Simmons) que já seria o bastante para levar o astro australiano a sua segunda indicação ao Oscar.
Porém, em seu caminho está um roteiro falho, sem muito pulso para lidar com as polêmicas do congressista, evitando dar uma resposta definitiva para questões fundamentais da trama. Afinal de contas, Hart relacionou-se ou não com a tal mulher? E mesmo que se argumente a favor de uma abordagem mais abrangente, isso só evidencia a falta de foco do projeto.
Há uma discussão bastante enfatizada pelo texto sobre a questão da privacidade das figuras públicas, com direito a uma célebre citação a Warren Beatty, que não enxergava a possibilidade de conciliar fama e vida particular. “Uma pessoa pública não tem o direito da privacidade”, argumenta, Beatty. O problema, na verdade é outro: a vida particular deveria ser importante para um Presidente da República?
Essa é questão-chave de O Favorito, mas que não é encarada de forma séria pelo diretor Jason Reitman. Consagrado por comédias cínicas como Obrigado Por Fumar e Amor Sem Escalas, Reitman claramente tenta imprimir humor na narrativa, mas ao falhar solenemente, acaba diluindo a densidade da trama. Para piorar, a estrutura irregular da projeção é dividida por três atos completamente distintos entre si. Se no primeiro, o humor (ou as tentativas de) é abundante, no segundo ato as coisas ficam mais sérias, até que o roteiro entrega-se finalmente a um festival de diálogos expositivos que dinamita qualquer possibilidade de dinamismo.
Com problemas de ritmo, o filme passa a depender demais de uma história cujos personagens são deveras desinteressantes, com exceção (parcial) de Gary Hart. Some a isso o desperdício de nomes como J.K. Simmons e Alfred Molina (o eterno Dr. Octopus) e temos uma decepção que só não é maior graças à presença de Vera Farmiga: embora subaproveitada como os colegas citados acima, a atriz exala segurança, especialmente na cena em que sua personagem resolve confrontar Gary, seu marido.
E é nesse ponto que voltamos à discussão inicial, pois assim como Gary foge de perguntas sobre sua vida pessoal, O Favorito jamais justifica seus acontecimentos: Afinal, qual foi o papel da imprensa em sua derrocada? Presidentes devem ser indagados apenas por suas propostas? Até onde devemos nos importar com a vida de quem governa nosso país? Essas e outras questões ficam no ar. Ao menos Jason Reitman pode se orgulhar de Tully, seu filme anterior e que também foi lançado em 2018. Esse, sim, merece todos os elogios.
NOTA 5
Conquistar, Amar e Viver Intensamente (Plaire, Aimer et Courir Vite) | França
Há uma certa tradição no Cinema Francês que é celebrada por uns e debochada por outros, que é a habilidade de construir histórias a respeito do amor transitando pela seara da intelectualidade sem perder o caráter romântico e, por vezes, lúdico. Encaixando-se nessa proposta, Conquistar, Amar e Viver Intensamente, novo filme do cineasta francês Christophe Honoré, busca abordar a AIDS de uma forma mais branda, abraçando sua natureza informativa sem perder de vista a leveza.
Com isso, o filme percorre um caminho radicalmente oposto ao de outra obra sobre a AIDS, o impactante 120 Batimentos Por Minuto, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e que não economizava na carga dramática para retratar a derrocada de um ativista na famigerada década de 80. A visceralidade de 120 BPM é substituída por um tom mais próximo da comédia, mas sem perder a seriedade de vista.
Assim, a história de Jacques (Pierre Deladonchamps), um escritor soropositivo de 35 anos e seu romance com o estudante Arthur (Vincent Lacoste) joga para escanteio o clássico enfoque no penoso tratamento contra a AIDS (implacável nos anos 80 e 90, época retratada aqui). Ao invés de corpos degradados e amigos destruídos psicologicamente, o longa prefere focar no lado b, aquele onde sabemos que a doença está progredindo, mas Jacques não altera sua rotina.
E quando o inevitável se aproxima, é aí que Conquistar, Amar e Viver Intensamente abraça sua natureza francesa, colocando seus personagens em longos diálogos filosóficos sobre sexo e sexualidade e divagações utópicas, mesmo que nesse ínterim o texto escorregue em pequenas frases de autoajuda sobre o amor, motor narrativo do projeto. Claro que a naturalidade com que aborda o homossexualismo é fruto do talento de Christoph Honoré, mas o descuido da burocrática montagem, que investe em longos planos e cortes secos, influencia o desenrolar da história, que perde ritmo e sofre com a morosidade.
Não fosse pela força da dupla formada por Vincent Lacoste (Hipócrates) e Pierre Delandonchamps (Um Estranho no Lago), talvez o projeto caísse por terra. Talentosos e carismáticos, Lacoste e Delandonchamps mostram-se em perfeita sintonia com o tom do projeto, exalando descontração durante toda a projeção, mantendo a pose até mesmo nas várias e pesadas cenas de sexo. Por falar em descontração, é preciso reconhecer a eficácia das piadas espalhadas ao redor da narrativa, que servem tanto para humanizarem seus personagens, como para aproveitarem o talento de Denis Podalydés (Caché), pouco aproveitado como o amigo de Jacques.
Se fosse meia hora mais curto, talvez fosse digno de ser encarado como uma mistura de 120 Batimentos Por Minuto com Me Chame Pelo Seu Nome.
NOTA 6
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