Em "Mickey 17", diretor de "Parasita" volta a abordar a desigualdade social

Conhecido pela criatividade ao embutir alegorias políticas nas histórias que leva ao Cinema, não importando o tema apresentado, o cineasta sul-coreano Bong Joon Ho finalmente está de volta aos trabalhos, cinco anos após vencer o Oscar por Parasita, o primeiro filme em língua não-inglesa a levar o prêmio máximo da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Para quem já foi capaz de transformar um imenso trem futurístico numa metáfora da desigualdade social que assola o planeta, Mickey 17 não é lá um grande desafio, convenhamos, mas Joon Ho pega o mesmo ponto de partida de O Expresso do Amanhã (2013) para debater a forma como a elite enxerga as classes mais humildes. Saem os vagões, entra a nave espacial, mas o princípio é o mesmo: enquanto os pobres se amontoam em cantos frios, escuros e sujos na esperança de terem o que comer, os abastados ostentam suítes espaçosas, coloridas e sempre com um banquete à mesa.

Essa riqueza no design de produção, cuja atenção aos detalhes salta aos olhos (repare nas gambiarras dos locais ocupados pelos menos afortunados), é apenas um reflexo da amplitude temática oferecida pelo roteiro escrito pelo próprio diretor a partir do romance de Edward Ashton. A trama se passa em 2054 e segue Mickey Barnes (Robert Pattinson), um homem não muito brilhante e sem habilidades especiais que, ludibriado pelo melhor amigo, acaba caindo nas garras de um impiedoso agiota. Desesperado, ele vê numa expedição espacial a chance de fugir e começar uma nova vida. O problema é que ele assina os documentos sem perceber que está se voluntariando para trabalhar como um “descartável”, função de quem, literalmente, topa morrer pelo progresso da humanidade, como uma cobaia de laboratório. Através de uma tecnologia que simplesmente “imprime” cópias perfeitas de seu corpo mantendo memórias e personalidade, ele se torna uma alegoria viva da exploração da classe operária.

Lendo o parágrafo acima, é possível imaginar uma ficção científica de cunho político forte, repleto de diálogos e situações formais, sendo que, na realidade, Bong Joon Ho desenvolve seus argumentos com o mesmo bom humor que caracterizou suas obras anteriores, especialmente Okja (2020), no qual ele também adotava uma abordagem excêntrica. Investindo pesado no conteúdo sem perder a forma de vista, o diretor transforma Mickey 17 numa sátira mordaz em seus melhores momentos e simplesmente estranha demais (especificamente em relação ao humor) em outros tantos.

Nesse aspecto, Mark Ruffalo (indicado ao Oscar ano passado por Pobres Criaturas) faz um belíssimo trabalho ao assumir a caricatura para se integrar à bolha cafona e completamente fora de órbita habitada por seu personagem, o congressista endinheirado Kenneth Marshall e sua esposa, Ylfa (Toni Collete, no mesmo tom). É possível enxergar traços de Donald Trump no personagem, especialmente em função do tópico “migração” e da vocação pública, mas quando ele manifesta seu entusiasmo de colonizar o novo planeta com uma “sociedade branca e superior”, é impossível não lembrar de Elon Musk e suas declarações controversas (para não mencionar seu fascínio pelo espaço e o gesto esquisitíssimo durante uma celebração da posse de... Trump).

Embora os comentários políticos sejam o maior foco do roteiro, é justamente quando este se concentra em Mickey e seus dilemas que a história obtém seus melhores momentos. Novamente oferecendo uma performance boa o bastante para que seus detratores esqueçam Crepúsculo (2008), Robert Pattinson é peça-fundamental na engrenagem concebida por Joon Ho. A Sociedade está irremediavelmente fraturada, o futuro é nebuloso e o presente é melancólico, portanto, Mickey é o ponto de fuga necessário nesse retrato triste e alarmista. E se o protagonista é eficiente ao oferecer uma perspectiva otimista em meio a tanta desilusão, devemos dar o devido crédito a Pattinson.

Compondo o protagonista como um jovem infantil e inseguro, algo ressaltado pela postura acanhada e pela voz fina e hesitante, Pattinson aposta na inocência como o contraste perfeito para aproximar Mickey do público, tendo êxito especialmente quando seu múltiplo entra em cena, oferecendo mais oportunidades para comprovar seu talento. Diferenciando as duas “impressões” sem qualquer dificuldade, ele se aproveita de um detalhe absorvido pela produção a respeito das copiadoras, (afinal, nem sempre as cópias sairão totalmente fiéis ao original, não é verdade?). Os engasgos frequentes na máquina e a sequência em que Mickey é atirado no chão vão ao encontro desse argumento.

Enquanto as já citadas semelhanças com O Expresso do Amanhã são bem articuladas, a almejada excentricidade de Okja alcança resultados irregulares, principalmente quando a comédia toma conta, com exceção do humor negro, quase sempre eficiente (a ideia de ter dois galãs idênticos como namorados é bem aproveitada). O roteiro também não demonstra muito interesse em amarrar todas as pontas, deixando algumas perguntas sem resposta e provocações sem desenvolvimento. Um bônus, no entanto, é o intrigante questionamento que surge a partir do momento em que Mickey 18 entra na história. Acostumado a morrer, fazendo valer o rótulo de “descartável”, de repente Mickey 17 se vê diante da inédita possibilidade de não mais voltar, gerando reflexões filosóficas enriquecedoras.

Tecnicamente competente, a produção merece fartos elogios para a concepção das criaturas que habitam Nifleheim. Chamados de “alienígenas” por Marshall e “nativos” pelos cientistas (os paralelos estão claros), os “Creepers” são seres extraterrestres de aspecto grotesco, mas não tanto a ponto de se distanciarem do público e a forma como são “filmados” enfatiza as intenções do roteiro: repare como inicialmente mal vemos sua constituição física e no clímax somos surpreendidos por close-ups que revelam seus olhos.

Decepcionando ao recorrer a uma narração didática e descartável (com o perdão do trocadilho) que escancara sua natureza preguiçosa além de deliberadamente sumir durante todo o segundo ato, Mickey 17 pode não ser o trabalho mais coeso e original da carreira de Bong Joon Ho, mas só a ideia de mostrar que igrejas e empresas são praticamente sinônimos e também perigosas quando aliadas a propósitos políticos, já merece nossa consideração.
NOTA 7,5