Em "John Wick 4: Baba Yaga" a violência é uma arte
Atualizado: 22 de mar. de 2023
Numa era tomada pelos debates calorosos nas redes sociais, é comum ver discussões a respeito da eterna dicotomia entre Cinema de Arte e Cinema Comercial. Embora já tenhamos casos concretos de realizadores que borraram as fronteiras entre as duas supostas ramificações acima citadas (Christopher Nolan é o nome mais fresco na memória), reforçando que o Cinema em si já é uma arte, independente de suas obras, há quem ainda defenda uma oposição. A franquia John Wick, no entanto, vem se esforçando para apaziguar os ânimos, apresentando um filme de gênero repleto de predicados artísticos incontestáveis. Inicialmente concebida sob medida para Keanu Reeves, carente de uma franquia num período transicional de sua carreira, a série de filmes desenvolveu um estilo que combinou sequências de ação elaboradas e um apuro estético singular, distanciando-se com personalidade dos colegas de gênero.
O esmero imagético pode ser sentido logo nos primeiros minutos, com um plano pictórico de uma cavalgada durante o nascer do Sol, evidenciando uma atenção pouco usual para a categoria na qual se enquadra. A fotografia de Dan Laustsen (indicado ao Oscar por O Beco do Pesadelo) abusa do neon para entregar composições que misturam azul e vermelho (ou verde e laranja), trazendo um aspecto art house que eleva John Wick a um nível de sofisticação visual praticamente inédito no atual espectro de filmes de ação hollywoodianos. É como se a equipe liderada pelo diretor Chad Stahelski buscasse a todo momento mostrar a arte da violência ou como a violência pode ser diabolicamente artística. O design de produção, que se beneficia dos planos abertos de Stahelski são um show à parte, incorporando a mistura volátil de tonalidades da fotografia (extraindo beleza dos contrastes) em cenários grandiosos, destacando-se a luxuosa mansão do Marquês vivido por Bill Skarsgård.
A sinfonia de destruição perpetrada pelos homens finamente vestidos chega ao ápice em sequências que só estão aguardando para serem incluídas em listas de melhores do ano, impondo uma dificuldade genuína de escolher a melhor de todas. O grande mérito da produção nesse sentido, simultaneamente uma proeza admirável, é jamais se repetir, oferecendo ao espectador uma variedade impressionante que jamais deixa transparecer uma fórmula ou padrão. Há, claro, momentos mais puros, com pancadaria à moda antiga, mas sempre azeitadas pelo estilo requintado de Stahelski e sua trupe, mas também sobra espaço para pequenas epopeias rodadas em longos planos apenas para o deleite da audiência: Para além dos combates corporais brilhantemente costurados ao balé de balas tradicionalmente apresentado pela franquia, há um olhar verdadeiramente artístico para a geração de adrenalina.
Enfileirando set pieces, num bloco mais impressionante do que o outro, John Wick 4 está a todo momento atingindo o apogeu, desafiando a percepção do público com ápices consecutivos. Há uma sequência belíssima no interior de um hotel sob neon verde com dezenas de assassinos empunhando arcos e flechas (e finalizada com uma participação literalmente matadora de Donnie Yen, de quem falarei com mais detalhes adiante), mas que é superada por outra que, gravada num elegante plano aéreo, evidencia a complexidade que passou a ser o lugar-comum dentro da série. Outro ponto a se considerar é o uso de cachorros, uma forma de se redimir dos impactantes eventos emocionais do primeiro filme e que motivaram o protagonista a deixar a aposentadoria. Se o filme anterior aplicava doses “caninas” de adrenalina, com coreografias inventivas, desta vez há um aproveitamento mais refinado e com um ‘arco’ envolvendo uma improvável rivalidade.
Seguindo a linha minuciosa dos demais departamentos, o design de som é fruto de um trabalho inspiradíssimo e confere atenção a detalhes que enriquecem a experiência, como o som de cartuchos caindo no chão quando Wick tira seu paletó (à prova de balas) ou com a diversidade perfeitamente distinguível de armas utilizadas e que ganham ainda mais camadas de acordo com acessórios utilizados, prezando pela verossimilhança ao incorporar silenciadores e explosivos. Enquanto isso, a trilha sonora de Tyler Bates (Guardiões da Galáxia) mostra uma bem-vinda evolução: se o primeiro filme parecia desleixado ao investir em faixas genéricas, este quarto capítulo lança mão de melodias estilosas que se alternam com canções famosas sem perder de vista o caráter erudito da obra, mesclando acordes de guitarras com sinfonias clássicas. Apesar de gastar um tempo considerável exibindo as obras inestimáveis do Museu do Louvre, no interior do Palácio de Versalhes e tocando músicas clássicas, a arte mais difundida por John Wick é a da violência.
Keanu Reeves, que um dia já foi apontado como o ator “mais inexpressivo de sua geração” por um deselegante jornalista, há muito tempo se deu conta de que suas qualidades como intérprete são melhor exploradas em filmes de ação, veículos onde pode demonstrar suas habilidades como artista marcial formado. E John Wick cai como uma luva para o ator libanês: frio, o assassino não demanda expressividade e sua personalidade pacata, de diálogos monossilábicos, facilita o trabalho de Reeves, confortável em disparar frases de efeito. Movendo-se com leveza em cena, ele jamais deixa de convencer como o matador, surgindo imponente e ameaçador. Além disso, os ternos bem cortados e a postura calculada denotam uma elegância instrumental para o personagem dentro da narrativa.
Eleger um destaque é difícil, mas ouso apontar toda a sequência rodada no entorno do Arco do Triunfo como a mais espetacular dentre as quase três horas de projeção. Usualmente, a produção fecha as ruas e para o trânsito a fim de realizar as gravações, mas John Wick está longe de ser usual e apresenta Keanu Reeves protagonizando lutas sincronizadas com a precisão de um relógio suíço, mas com o diferencial de ocorrerem no meio do movimentado tráfego parisiense, o que resulta num balé de atropelamentos que merece apenas aplausos de pé. O nível de dificuldade autoimposto pela equipe é transmitido aos personagens, que além das balas e dos socos, precisam desviar de carros, caminhões e motos, nem sempre de formas bem-sucedidas (e a variedade de resultados traz uma enervante atmosfera de imprevisibilidade). Wick, no entanto, aproveita as inusitadas variantes para equacionar a batalha a seu favor, seguindo a tradição de transformar qualquer objeto numa arma em potencial.
No elenco coadjuvante, Donnie Yen rouba a cena como o sidekick perfeito, mantendo o costume da franquia de dar bons parceiros a John Wick. Novamente vivendo um personagem cego (quem não se lembra do estiloso Chirrut Îmwe de Rogue One – Uma História Star Wars?), Yen interpreta Caine como um assassino que exala carisma. Fiel a um código que é posto em xeque ao bater de frente com John Wick, seu velho amigo, Caine é um sujeito de poucas palavras, mas repleto de recursos para contornar suas limitações, o que permite à produção investir em lutas originais e que se beneficiam imensamente das habilidades de Yen como artista marcial. Assim como Yen, Hiroyuki Sanada (o Scorpion do recente Mortal Kombat) também tem química com Reeves, mas não possui tempo de tela suficiente para trazer profundidade a Koji, ao passo que Laurence Fishburne (o eterno Morpheus de Matrix) e Ian McShane (veterano da franquia) divertem-se como os alívios cômicos da história. Fechando o elenco, Bill Skarsgård (o palhaço Pennywise de It – A Coisa), faz o que pode para driblar a superficialidade do Marquês de Gramont, saindo-se relativamente bem, mas sem brilho.
Afinal, John Wick nunca foi famoso por possuir enredos e personagens complexos o que, somente nesse ponto o aproxima dos demais filmes de ação da atualidade. Embora conte com sua parcela de diálogos expositivos (especialmente no terço final), peque na montagem (como Wick escapou do primeiro embate com Caine? Como conseguiu chegar a tempo de encontrar a filha de Koji no metrô?) e não se preocupe em desenvolver mocinhos e vilões, há uma preocupação clara em construir uma mitologia, algo que talvez tenha sido pensado para compensar suas fragilidades narrativas e que é bem executado, pois o universo que envolve a Cúpula e sua gama de assassinos e gângsteres é fascinante o bastante para manter o espectador interessado.
Forte nos filmes anteriores, que apresentaram instituições curiosas como uma escola de balé que serve de fachada para uma organização criminosa e os vários hotéis que funcionam sob rígidas regras, o mundo de John Wick segue em expansão e agora mostra sucursais em países como Japão e França. O país europeu, aliás, merece um capítulo a parte, pois abriga a maior parte da história, permitindo ao espectador fazer um tour completo pela Cidade Luz ao visitar praticamente todos os pontos turísticos famosos, desde os óbvios até os menos badalados, com direito a uma curiosa batalha na escadaria da Basílica de Sacré Coeur.
Insistindo em vender um final definitivo que soa ainda mais tolo ao lembrarmos do encerramento do filme anterior e que foi facilmente revertido neste (sem contar o modus operandi da indústria hollywoodiana), John Wick 4: Baba Yaga, entra em cartaz oferecendo ao espectador 2 horas e 49 minutos de ação quase ininterrupta, mas sob um véu inquestionavelmente artístico. A preocupação com a imagem para além da pura estilização torna esta epopeia da violência um produto singular dentro de uma franquia que sempre buscou algo mais do que tiros e pancadaria.
Com John Wick, a violência é uma arte.
* John Wick 4: Baba Yaga chegará aos cinemas brasileiros em 23 de Março
NOTA 8,5
Gostei dos comentários.Vou assistir.