"Disque Jane" chega ao Prime Video advogando sobre o direito ao aborto
Nos anos 60, Joy (Elizabeth Banks) é uma mulher rica de meia-idade que deixou a vida como advogada para se dedicar ao marido (Chris Messina), também advogado, e à filha. No plano-sequência que abre o filme, ela é vista deixando um jantar num restaurante sofisticado e quando chega à rua se depara com uma manifestação pelos direitos femininos, numa clara metáfora à trajetória pela qual a protagonista passará. Afinal, sua vida perfeita ao lado do marido bem-sucedido é impactada pelo diagnóstico de uma doença cardíaca que a impede de prosseguir com sua gravidez. Portanto, o que poderia vir a ser encarado pelo ponto de vista moral, passa a ser uma questão de vida ou morte, já que o aborto se apresenta como a única solução possível para salvá-la. Mas como convencer a diretoria do hospital em que se trata, composta apenas por homens ricos e conservadores, de aprovar um aborto?
Indicada ao Oscar pelo roteiro de Carol e estreando no Cinema como diretora, Phyllis Nagy é inteligente ao afastar Joy, desde o início, de uma postura política. Se Joy eventualmente entra para o movimento feminista (que defende a decisão de abortar como sendo exclusivamente da mulher), é porque finalmente encontrou o seu lugar, que lhe oferece a chance de ser útil. Sem soar panfletário, o roteiro de Hayley Schore e Roshan Sethi (ambos da série The Resident) coloca o espectador ao lado de Joy em seu descobrimento do submundo dos abortos ilegais. O lado político se apresenta por argumentos que partem de outros personagens, soando convincentes para Joy e, consequentemente, para o público que se identificar/simpatizar com ela.
Marcando posição ao criticar a imposição da função de Dona de Casa às mulheres através da subtrama envolvendo o marido de Joy, os roteiristas cometem alguns tropeços pontuais. Em certo momento, por exemplo, a personagem de Sigourney Weaver (Avatar) afirma que a organização “paga para os monstros certos”, sugerindo um suborno às autoridades, mas isso não impede um policial de aparecer na casa de Joy questionando-a como uma suspeita (e que ele termine pedindo ajuda para uma amiga torna tudo ainda mais embaraçoso). Além disso, o médico que realiza os abortos simplesmente desaparece da história sem a menor justificativa (o diálogo que insinua sua ausência fortalece a teoria de que uma cena mais concreta foi cortada na sala de edição).
Melhor desenvolvido é o argumento pró-aborto, que faz questão de abarcar todos os pensamentos ao articular seu discurso, sobrando até mesmo para a religião, representada por uma freira que oferece apoio a quem exibe a famigerada “culpa católica”. Nesse contexto, durante o Festival do Rio 2022, Call Jane se revela uma das produções menos agressivas em termos políticos, procurando concentrar seus esforços nas mulheres, algo que faz ainda mais sentido quando nos lembramos que a história se passa na década de 60.
Atriz versátil, mas costumeiramente lembrada como comediante, Elizabeth Banks (Brightburn: Filho das Trevas) oferece uma performance contida, mas que ressoa no espectador ao investir num olhar que mescla inocência e honestidade. Já Sigourney Weaver brilha no pouco tempo de tela em que aparece como a líder da organização que possibilita os abortos, em mais uma atuação segura. E se Chris Messina pouco pode fazer com o papel de marido frustrado por não ter o jantar pronto quando chega em casa (leia-se: insatisfeito por ver a esposa fazendo mais do que serví-lo), Kate Mara sofre ainda mais, desperdiçada num papel minúsculo que parece existir apenas para chancelar as mudanças de Joy (“você é democrata?”, ela pergunta espantada).
Encerrando a projeção em tom pacífico ao tentar reunir pessoas de pensamentos distintos (como a filha de Joy e potenciais espectadores), Call Jane se permite alguma exposição ao final, ganhando na voz de Sigourney Weaver uma estranha narração que amarra o filme do jeito mais didático possível. No final das contas, as ótimas intenções de Call Jane facilitam a simpatia do público, que ganha de presente uma história contemporânea sobre um tema que permanece um tabu, principalmente no Brasil.
NOTA 6
* Crítica publicada durante cobertura do Festival do Rio 2022
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