Disperso, "Não Se Preocupe, Querida" oferece experiência irregular
Produção repleta de confusões em seus bastidores, Não Se Preocupe, Querida conseguiu transformar toda a expectativa positiva que gerou na Indústria num verdadeiro circo midiático. Afinal, tratava-se do segundo longa-metragem dirigido por Olivia Wilde, atriz talentosa que se revelou uma cineasta ainda melhor ao comprovar sua vocação no excelente Fora de Série em 2019. Com Não Se Preocupe, Querida, Wilde deixa o âmbito dos filmes adolescentes para se desafiar como diretora, assumindo um projeto cheio de ambições temáticas e artísticas.
Escrito pelos irmãos Shane e Carey Van Dyke, responsáveis pelo atroz O Silêncio (da Netflix), e reescrito por Katie Silberman (parceira de Wilde em Fora de Série), o roteiro desenvolve sua já instigante premissa pegando carona em alguns elementos de Mulheres Perfeitas (2004), especialmente a aura misteriosa que envolve suas personagens femininas. Na trama ambientada na década de 50, Florence Pugh (indicada ao Oscar por Adoráveis Mulheres) interpreta Alice, uma jovem dona de casa que vive de tarefas domésticas e fofocas com as vizinhas numa pequena cidade estranhamente localizada no meio de um vasto deserto e que abriga o misterioso Projeto Vitória, onde trabalha Jack, seu marido (Harry Styles, de Dunkirk). Aparentemente perfeito, o lugar é administrado pelo enigmático Frank (Chris Pine, o Steve Trevor de Mulher-Maravilha), que passa a ser acusado por uma das moradoras de estar escondendo segredos perturbadores.
Estabelecendo a comunidade em questão como um bairro artificial similar a uma maquete gigante, a produção consegue a proeza de soar verossímil ao mesmo tempo em que sugere um grau suspeito de perfeição. Nesses momentos de estranheza, o filme se apoia no intenso relacionamento amoroso de Alice e Jack, em passagens que abraçam o thriller erótico (com direito a um personagem observando o casal durante um momento tórrido). Nessa sequência, em particular, Olivia Wilde demonstra pouca aptidão para evocar o vigor daquele momento, limitando-se a planos de Alice derrubando objetos numa mesa ou recebendo sexo oral do marido.
Logo depois, Não Se Preocupe, Querida resolve intensificar a atmosfera de estranheza sugerida no início, ao investir em pequenos sinais que vão ao encontro da proposta de fazer o espectador se perguntar o que está havendo, como no instante em que Alice quebra ovos “ocos” ou através dos frequentes tremores que afligem a comunidade. Com a ajuda valorosa da excepcional e surpreendente trilha sonora de John Powell, mais acostumado a trabalhar com animações, o filme se beneficia de acordes que incorporam sons peculiares como suspiros e sopros de vento para construir um clima sempre sinistro.
O problema é que além de flertar com os thrillers erótico e psicológico, o script ainda resolve pincelar tons de paranoia, quando aborda o gaslighting para enriquecer o arco dramático de Alice. Assim, a produção vai deixando pelo caminho ideias que jamais são desenvolvidas a contento, como se a mera provocação já fosse o suficiente, justificando seu abandono logo em seguida. É o que acontece, por exemplo, com toda a subtrama envolvendo Frank e o tal Projeto Vitória, que plantam pistas envolvendo uma suposta missão de “melhorar o mundo”.
Se o roteiro demonstra uma alarmante confusão temática ao se dispersar entre subgêneros, ao menos acerta em seu discurso, quando tece comentários sobre o papel da mulher na sociedade e critica a passividade diante de uma sociedade patriarcal. Nada sutil, vale ressaltar, mas eficiente, como alguns diálogos certeiros que vão desde o “tomara que seja menino” dito por um homem diante da descoberta de uma gravidez, até as várias sequências com Alice exercendo o papel de dona de casa, servindo a Jack quando este volta do trabalho.
Encarnando Alice com a (assombrosa) competência habitual, Florence Pugh (Viúva Negra) é o destaque inquestionável do projeto. Enchendo a tela com uma presença admirável, Pugh oferece uma performance segura e repleta de nuances, protagonizando o melhor momento do filme quando num jantar resolve confrontar o personagem de Chris Pine. A britânica, aliás, é capaz de eclipsar até mesmo Pine, que por sinal é desperdiçado num papel que lhe oferece pouquíssimo trabalho.
Já o músico Harry Styles, também em ascensão no Cinema, oferece uma atuação que, se não compromete o filme, sofre em demasia pela desconcertante falta de química com Florence Pugh. Falhando miseravelmente ao convencer como parte de um casal não apenas apaixonado, mas fogoso, Styles se sai melhor ao interpretar o papel de trabalhador, o que fica ainda mais evidente quando seu personagem ganha mais espaço durante o terceiro ato.
E por falar no terceiro ato, é uma pena que Não Se Preocupe, Querida, após dois atos intrigantes, resolve abraçar de vez o caos, escancarando o fato de que os roteiristas não faziam ideia de como encerrar sua história, ao optarem por um final supostamente enigmático que em nada contribui para a resolução de seus conflitos (repare na última cena de Chris Pine e note que esta deixa mais perguntas do que respostas).
Tecnicamente, por outro lado, o filme se sai melhor. O design de produção, diga-se de passagem, é extremamente eficaz ao evocar a natureza idílica da comunidade mantida pelo Projeto Vitória, com uma vizinhança caracterizada por ruas planejadas, gramados impecáveis, casas de madeira e a ausência de cercas, exatamente como um típico subúrbio estadunidense, esporadicamente empregando cores fortes para caracterizar elementos específicos, como carros.
Enquanto isso, a fotografia do normalmente excelente Matthew Libatique (duas vezes indicado ao Oscar por Cisne Negro e Nasce Uma Estrela) abusa da luz solar para evocar o ambiente impossivelmente aconchegante da comunidade, como se a felicidade daquele lugar fosse inabalável. Já a montagem do brasileiro Affonso Gonçalves (A Filha Perdida), opta por salpicar sequências singulares com dançarinas executando coreografias circulares que ecoam os temas relacionados ao Projeto Vitória, sempre buscando a ordem e a perfeição. Experiente, Gonçalves é hábil ao imprimir um ritmo sempre ágil, escorando-se no mistério como forma de aguçar a curiosidade do espectador.
Beneficiando-se de um clima de paranoia quase palpável, Não Se Preocupe, Querida é um daqueles thrillers que ganham nossa atenção pelo potencial de sua premissa, mas que decepcionam com um desfecho que não faz jus ao seu desenvolvimento.
NOTA 5
Comments