Criativo e envolvente, terror "Fale Comigo" é grata surpresa
Às vezes a Arte imita a vida e vice-versa, mas felizmente aquele famoso ditado “a primeira impressão é a que fica” não se aplica ao Cinema. Isso porque os primeiros minutos de Fale Comigo, terror australiano produzido pela A24 (a queridinha dos cinéfilos e que esse ano ganhou seu primeiro Oscar de Melhor Filme com Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo), são tremendamente enganosos, levando o espectador a acreditar estar diante de mais um daqueles filmes baratos protagonizados por adolescentes e repletos de jump scares previsíveis.
Contando com um prólogo para lá de convencional, o cenário é uma tradicional festa lotada de jovens com os hormônios à flor da pele. Um deles, no entanto, está procurando o irmão em todos os cantos da espaçosa casa. A iluminação fria e limitada, a movimentação de câmera e o contraste entre a postura hedonista dos presentes e a aflição do sujeito preocupado indicam algo fora do normal. Caso estivéssemos diante de uma comédia ou de um romance adolescente, seria fácil apostar que o irmão sumido estaria se divertindo acompanhado no interior de um dos quartos, mas Fale Comigo é um terror, afinal. O que se segue, apesar de bem conduzido pelos diretores estreantes Michael e Danny Philippou, que valorizam o choque da conclusão, não traz nada especialmente novo ao gênero. Nem os dez minutos seguintes.
O momento responsável por mudar completamente a percepção do espectador acontece no final do primeiro ato, quando um grupo inconsequente resolve brincar com um artefato misterioso. Pois alguém retira da mochila uma mão embalsamada, afirmando que esta “pertencia a um médium”. Sinistro, claro, mas o que impressiona mesmo é o efeito que causa nas pessoas. Essa mão tem o poder de ligar aquele que a está segurando ao mundo dos mortos, bastando algumas palavras (“fale comigo” e “eu deixo você entrar”) para convidar um espírito para o ambiente. O tal espírito, no entanto, não se limita a mover copos, apagar velas, bater portas, ou qualquer outro tipo de clichê e, sim, utiliza a pessoa em contato com a mão como hospedeira. Assim, temos um caso clássico de possessão, mas que não deve exceder noventa segundos sob o risco de torná-la permanente.
Essa experiência por si só já seria suficientemente aterrorizante para qualquer pessoa, mas os jovens de Fale Comigo utilizam essa mão apenas como mais um tipo de droga a ser consumida, gerando consequências imprevisíveis, mas que rendem bons vídeos (O que um jovem não faz para viralizar no TikTok, não é mesmo?). Aquele que se permite possuir, passa por uma espécie de transe, não se lembrando do que aconteceu depois. A diversão é tanta, que a mão torna-se objeto de disputa, com uma fila de amigos brigando para serem os próximos a desfrutarem da “onda” de ter um espírito habitando seu corpo por noventa segundos.
Debutando em longas-metragens, os irmãos australianos Michael e Danny Philippou ficaram famosos no YouTube, onde lançavam curtas e esquetes bem-humoradas (“Harry Potter X Star Wars” obteve mais de sete milhões de visualizações), ou seja, um tipo de conteúdo absolutamente distante do que viria a ser a primeira empreitada dos gêmeos no Cinema. A verdade é que Michael e Danny fizeram muito bem o dever de casa e exibem um domínio da linguagem cinematográfica acima da média para novatos. Estilosos, eles adotam uma lógica visual atraente ao encenar as possessões, por exemplo: note a movimentação de câmera que acompanha o exato instante em que o espírito entra no corpo de cada jovem (numa referência ao celebrado Babadook). Eles também investem em ângulos de câmera longe de serem gratuitos, como aqueles que potencializam o horror de ver um adolescente se transformando ou os planos holandeses utilizados para determinadas funções (e ‘desfeitos’ assim que estas são cumpridas).
É admirável perceber também como a dupla tem ciência de que a atmosfera produz efeitos muito mais poderosos do que meros jump scares. Se um diretor estreante menos talentoso poderia sucumbir à tentação de enfileirar aqueles momentos concebidos sob medida para fazerem o espectador pular da cadeira, os Phillippou preferem investir no estabelecimento de um clima macabro, ressaltado por um trabalho de fotografia que tira bom proveito da iluminação limitada dos ambientes. Além de empregarem planos mais longos, consequentemente mais tensos, os irmãos adotam a mesma estratégia de Ari Aster no excepcional Hereditário: num determinado momento, um som estranho faz com que a câmera percorra os cantos escuros de um quarto à procura de sua fonte, injetando tensão e medo de forma orgânica.
Já o roteiro, assinado por Danny Phillipou em parceria com Bill Hinzman (outro marinheiro de primeira viagem), decepciona inicialmente por apresentar os mesmos arquétipos que há anos povoam o gênero, mas é salvo por um elenco que, encabeçado por Sophia Wilde (desperdiçada no derivativo O Portal Secreto), oferece performances minimamente naturais. O destaque fica por conta de Miranda Otto (também de O Portal Secreto), que apesar dos limites impostos pelo papel raso, arranca boas gargalhadas ao transformar a mãe de um dos personagens numa figura paranoica e sem muita paciência para as tramoias dos jovens. Outro que merece elogios é Joe Bird (Rabbit), hábil ao convencer o público da importância de Riley para a protagonista.
Contando com um ritmo ágil, Fale Comigo se torna ainda melhor conforme se desenvolve, beneficiando-se também da corajosa opção dos diretores de incluir pitadas de humor, que além de não diluírem o impacto da narrativa, enriquecem a experiência. Falando nisso, os roteiristas demonstram desenvoltura ao manusearam alguns artifícios narrativos como o tradicional “pista e recompensa”, isto é, elementos soltos de forma descompromissada no início, mas que retornam com imensa importância mais tarde. Como exemplo, basta reparar como um animal em estado de agonia na estrada torna-se uma dolorosa referência no final; ou o pesadelo relatado pela protagonista.
Criativo ao trabalhar com cuidado clichês e convenções do terror, os irmãos Danny e Michael Phillippou revelam-se nomes promissores a serem acompanhados, pois Fale Comigo, é uma estreia sólida. Envolvente, instigante e, claro, assustador, trata-se de uma obra que apesar dos momentos chocantes, não se deixa definir por eles, oferecendo uma história que ainda conta com o diferencial de se encerrar de forma plenamente satisfatória, amarrando quase todos os acontecimentos. “Quase”, pois algumas lacunas são deliberadamente deixadas para que o espectador possa preenchê-las.
NOTA 7,5
Parabéns pela crítica . Vou assistir.