Crash - No Limite: Uma análise social ainda atual
O filme escolhido é uma obra que, na verdade, simplesmente não envelheceu, pois mesmo depois de quase 17 anos desde sua estreia, Crash - No Limite permanece assustadoramente atual e esse texto analisará os motivos que levam seu roteiro a representar não apenas um espelho da sociedade contemporânea, como também um retrato preciso e complexo da natureza humana e suas idiossincrasias.
Apresentando-se como uma ambiciosa narrativa que entrelaça a trajetória de nada mais nada menos do que 26 personagens, o roteiro escrito pelo próprio diretor Paul Haggis em parceria com Bobby Moresco, elege a corriqueira Los Angeles como palco de sua tragédia moderna. E se a conveniente escolha da cidade-sede dos grandes estúdios e tradicional quintal de artistas que não querem (ou não podem) viajar, pode sugerir motivações econômicas, aqui ela cai como uma luva em virtude da sua rica diversidade cultural.
Afinal, de acordo com os números do último Censo nacional atualizados em 2019, estamos falando da segunda cidade mais populosa dos Estados Unidos, perdendo apenas para Nova York; dentre os quase 4 milhões de habitantes, 48.5% são de origem latina (a maior do país), 11.3% são de origem asiática e 36.9% vieram de outros 140 países diferentes, falando outros 224 idiomas que não o inglês. Essa característica multicultural e étnica fez de Los Angeles um prato cheio para o diretor Paul Haggis esmiuçar a forma como a sociedade norte-americana lida com as diferenças, construindo alegorias que expõem a hipocrisia e o preconceito de uma nação que vende ao mundo a (falsa) imagem de um povo plural, hospitaleiro e igualitário.
Partindo de uma ideia em que os cidadãos de Los Angeles simplesmente não se tocam (“se separam por vidros ou metal”, alguém diz em certo momento da projeção), sendo preciso uma colisão para que o toque finalmente aconteça, daí o título ser “Crash” (batida, choque, colisão). Uma previsão do que viria a acontecer após a popularização dos smartphones, vale se dizer, quando as pessoas, imersas em seus mundos, passaram a viver com os olhos fixados em telas na palma da mão. Simples coincidência, pois a metáfora serve para ilustrar a estrutura do próprio roteiro do filme, que salta de incidente a incidente à medida que os personagens colidem entre si, tendo suas histórias cruzadas e, consequentemente, modificadas.
Mas o roteiro escrito por Haggis em parceria com Bobby Moresco vai além, ao colocar esse microcosmo representado pela Cidade dos Anjos em perspectiva, possibilitando um estudo sensível, multifacetado e, por vezes, duro sobre a natureza humana, a começar pela seleção cuidadosa de seu elenco, composto por atores e atrizes dos mais diversos grupos étnicos e sociais. São artistas escolhidos a dedo não só pelo talento, mas também pela coragem que um projeto como esse demanda. A estadunidense Sandra Bullock, por exemplo, uma atriz de talento inegável, mas acostumada a papéis superficiais (ainda que de destaque) em comédias românticas na época, desafiou a percepção do público ao surgir como uma personagem tão confiante na influência de sua condição socioeconômica, que já nem esconde seus pré-conceitos sobre quem a cerca, tecendo comentários venenosos a pessoas de origem hispânica ou julgando o caráter de alguém pelo simples fato deste apresentar tatuagens (de gangue, como brada em certo momento).
O que ela não sabe é que a mesma empregada que ela faz questão de destratar, pode vir a ser a única pessoa capaz de oferecê-la um ombro amigo, em determinada situação e o tal funcionário com “tatuagens de gangue” , nada mais é do que um simples pai de família que trabalha em turnos dobrados para garantir que sua filha pequena possa crescer num lar longe das balas perdidas que assolavam o antigo bairro em que viviam. Esse pai de família, interpretado brilhantemente por Michael Peña, ator de origem latina, acaba entrando em conflito com um comerciante Persa, que por sua vez acaba tomando a decisão de comprar uma arma para se defender de vândalos que enxergam sua família como árabe numa época onde os atentados do 11 de Setembro ainda eram recentes e vistos como justificativa para norte-americanos chamarem muçulmanos de “Osamas” e apedrejarem lojas. Voltarei a esse questão mais a frente.
Pois agora é o momento de seguir dois amigos negros. Um, interpretado pelo rapper afro-americano Chris “Ludacris” Bridges, reclama que foi discriminado pela garçonete branca argumentando que, entre outros motivos, ela enxerga os afrodescendentes como pessoas incapazes de darem gorjetas. O outro, interpretado pelo promissor e também afro-americano Larenz Tate, aponta que, de fato, eles não deram um dólar sequer pelo atendimento da moça. O primeiro, então, vê um casal de brancos caminhando. A mulher, ao ver os dois amigos parados na calçada demonstra medo e rapidamente entra num carro de luxo, despertando, assim, uma acalorada discussão sobre a relação entre negros e brancos. Num bairro nobre, majoritariamente branco e bem policiado, não era para os negros estarem com medo? Pergunta o personagem de Ludacris, antes de tirar um revólver da cintura e ir com o amigo até o carro do casal, apontando a arma diretamente para… a personagem de Sandra Bullock e seu marido, o promotor de justiça vivido por Brendan Fraser, famoso por estrelar a franquia A Múmia.
Assim, Haggis e Moresco vão costurando sua história e passeando pelos personagens com a valorosa ajuda da montagem de Hughes Winborne que liga as tramas com elegância através de raccords e rimas visuais que mantém o ritmo fluido e as transições sempre orgânicas. A teia intrincada de acontecimentos, diga-se de passagem, depende majoritariamente da competência de Winborne, que diante do desafio proposto, opta (acertadamente) por jamais subestimar a inteligência do espectador. Sendo assim, se o filme revela-se um sucesso narrativo, muito se deve ao trabalho de seu montador, que prefere pensar no seu espectador como alguém maduro, atento e capaz de compreender a cadeia acidental que move o longa-metragem, sem arroubos estilísticos ou sobressaltos rítmicos.
Assuntos delicados, como o desarmamento e a xenofobia dividem espaço com a violência policial e a corrupção das instituições. E é nesse ponto que começamos a traçar familiaridades com a atualidade, constatando que Crash, infelizmente, permanece fiel. O que vemos na obra de Haggis é algo ainda mais explícito num mundo pós-moderno que ainda tenta entender a globalização e seus efeitos enquanto claudicamos ao evoluir como espécie. E se é triste perceber como os acontecimentos de Crash ainda refletem a atualidade, o mais impactante é notar o quão corriqueiros eles se tornaram hoje em dia, principalmente com o crescimento desenfreado da internet e suas redes sociais.
Redes estas que traem seus propósitos a todo instante, contribuindo mais para o afastamento do que para a união das pessoas. Um ambiente que antes era visto como um espaço democrático para o debate e a troca sadia de ideias, se transformou numa região cáustica dominada por criaturas que se escondem por trás da máscara do anonimato para semearem o ódio. O ambiente perfeito para a proliferação de figuras como a personagem de Sandra Bullock.
E se o desarmamento já era uma pauta delicada na época, a questão da imigração ganhou contornos dramáticos após a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos, o que não só aumentou a tensão social, como dividiu o país. Em meio às polêmicas envolvendo sua política de imigração, Trump ainda teve de lidar com uma recente onda de protestos após episódios de violência policial tomarem todo o território nacional, especialmente aquele que ficou conhecido como “O Caso George Floyd”, mobilizando a população negra a tomar as ruas e amplificar as tensões raciais.
Curiosamente, Crash também não hesita em tocar no assunto ao colocar o novaiorquino Matt Dillon para viver um policial com métodos, no mínimo, reprováveis. Num dos momentos mais emblemáticos da produção, o personagem de Dillon, ao lado do jovem parceiro interpretado pelo conterrâneo Ryan Phillippe, insiste perseguir um carro de luxo ocupado por um casal de afrodescendentes ao invés de permanecer numa busca por um veículo roubado. E não para por aí, pois o oficial não apenas abusa de sua autoridade, como assedia a esposa do motorista, aqui vivida pela britânica de ascendência zimbabuense Thandie Newton.
E é claro que em mais uma daquelas viradas como a que aconteceu com a personagem de Sandra Bullock, os três personagens viverão uma experiência catártica onde serão obrigados a reverem seus (pré) conceitos. Pois, se num primeiro momento, vemos o jovem policial pedir transferência justamente por condenar as ações de seu parceiro, mais a frente, ele mesmo se colocará numa situação onde pré-julgará alguém, seja pelas roupas ou pela quantidade de melanina na pele, ao passo que o mesmo oficial capaz de humilhar um casal de negros, será o responsável por salvar a vida de uma de suas vítimas que, como não poderia deixar de ser, não compreenderá o que leva um salvador corajoso e determinado a agir como um monstro.
Nem nós entenderemos, e essa é a mensagem que permeia o roteiro de Haggis e Moresco, levando ao slogan destacado no cartaz promocional do filme: “Você pensa que sabe quem você é, mas não tem a menor ideia”. Todos nós estamos sujeitos a cometer erros, de diversos tipos e nas mais diversas circunstâncias. Afinal de contas, somos falhos porque somos humanos, ou somos humanos porque somos falhos? A verdade é que ao invés de assumirmos que estamos todos no mesmo barco navegando em águas turbulentas rumo ao (auto) conhecimento e nos unirmos, ajudando uns aos outros, preferimos o contrário, ignorando o inquestionável fato de que somos todos imperfeitos e insignificantes diante da grandeza do universo e suas leis.
Temos a chance de construirmos pontes e derrubarmos fronteiras, nos unindo como uma única comunidade. Não uma comunidade de negros, asiáticos, brancos ou indígenas, mas uma uma comunidade de seres humanos, onde a cor da pele, a orientação sexual, as crenças e as opiniões (políticas ou não) pouco importam. Todos precisamos um dos outros e, mais cedo ou mais tarde, cada um de nós deverá entender isso. Ou vamos continuar construindo muros, banindo pessoas e morrendo em guerras?
Talvez ainda mais importante hoje do que há 17 anos, Crash - No Limite provavelmente teria ainda mais êxito caso chegasse ao público somente agora e talvez dissipasse as críticas daqueles que tentaram tirar seus méritos artísticos e sociais na época em que estreou. Entre os 64 prêmios que conquistou na temporada 2004-2005, destacam-se os 3 Oscars que recebeu: Melhor Montagem, Melhor Roteiro e, claro, Melhor Filme, desbancando o favorito O Segredo de Brokeback Mountain, numa polêmica decisão que colocou os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas numa verdadeira saia justa ao terem de responder a acusações de homofobia, tirando o foco do que realmente importava: Que Crash - No Limite era, de fato, o melhor filme.
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