Corra! promove suspense com altas doses de críticas sociais
“A vida imita a Arte” ou "a Arte imita a vida”? Desde os primórdios, o Cinema sempre procurou retratar o cotidiano de sua época. Claro, com o passar do tempo, a evolução da tecnologia e a transformação da Arte em cultura de consumo, os filmes passaram a extrapolar essa ideia.
Uma verdade inconveniente (e incontestável) é a estupidez que embasa a segregação racial, um problema antigo, mas que ainda persiste, embora, hoje em dia, muitas vezes esteja travestido das vestimentas da hipocrisia ou da pura e simples estupidez, seja qual for justificativa. O fato é que o Cinema (que como Indústria também não escapou do racismo) jamais fugiu desse contexto, além de incorporar inúmeros elementos que, se feita uma análise aprofundada, podem gerar calorosos debates acerca de suas motivações, racistas ou não.
Quem nunca percebeu o clichê do negro que é o primeiro a morrer em filmes de terror? É justamente sobre isso que o roteirista e diretor Jordan Peele quer falar com este Corra! (Get Out, no original), aproveitando para expor e comentar as idiossincrasias consequentes. Aliás, já ouviu algo semelhante a “não sou racista, eu até tenho amigos negros”? Pois é…
Na trama, Chris (Daniel Kaluuya, de O Retorno de Johnny English) é um jovem negro que aceita passar um final de semana na casa dos pais de sua namorada Rose (Allison Williams, da série Girls), branca de família rica e que admite não ter contado para os pais sobre sua etnia. Lá, ele percebe que os poucos negros do local trabalham justamente para os pais de Rose. Percebendo o estranhamento de Chris, o pai de Rose (vivido por Bradley Whitford, de Perfume de Mulher) explica que não é racista, “até votaria novamente no Obama, se pudesse”, argumenta antes de soltar um “o melhor presidente de todos!”.
Comediante de sucesso que aqui dirige seu primeiro longa-metragem, Jordan Peele (de Keanu e da série Key and Peele) constrói bem toda essa atmosfera de estranhamento, mas também não deixa de aproveitar as oportunidades cômicas que aparecem no caminho. Sendo assim, Corra! é um filme que se equilibra com precisão entre o mistério e o humor (que aqui flerta com o escárnio), ganhando força graças às boas interpretações de seu elenco, encabeçado pelo expressivo Daniel Kaluuya, que não se intimida diante de seus experientes colegas, entregando uma performance intensa e com nuances.
Já Bradley Whitford se mostra confortável na pele do patriarca da família Armitage, que parece sempre preocupado em soar simpático, formando uma bela dupla com a sempre ótima Catherine Keener (e que já havia trabalhado com o tema na minissérie Show me a Hero), que por trás de seu sorriso largo e da fala mansa, esconde uma mulher que estuda cada atitude que toma.
Construindo cada situação como uma espécie de espetáculo circense cuja atração principal é um negro e a plateia é composta por membros da elite branca, Peele não hesita em expor, sem o menor pudor, a hipocrisia daqueles seres, tendo a inteligência de não oferecer interpretações, reservando esse direito ao público que passa a experimentar todo o desconforto sentido por Chris, numa curiosa opção de deixar o terror de lado em prol de uma sensação diferente: a de nojo.
Hábil em criar o suspense de forma gradual, Peele inevitavelmente se entrega a jump scares, que, mesmo eficientes, acabam servindo mais para lembrar ao público do gênero a que estamos assistindo. Além disso a inclusão de um alívio cômico talvez seja um exagero numa história que já demonstrava potencial cômico, o que não se compara ao desinteressante terceiro ato que, embora espetacular em suas extravagâncias (cujos absurdos acabam divertindo), sofre após a revelação do mistério, o que explica a decisão de Peele em encurtar o final.
Merecendo aplausos pela proeza de combinar entretenimento com crítica social, Jordan Peele prova de uma vez por todas que é possível divertir sem sacrificar a inteligência e, sejamos honestos, tudo fica mais divertido quando podemos usar o cérebro para curtir um filme.
Que a boa bilheteria de Corra! encoraja os estúdios a investir em mais filmes que estimulem o pensamento.
NOTA 7,5
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