'Conclave' descortina eleição papal em história tensa e surpreendente
Um dos maiores mistérios do mundo é guardado a sete chaves dentro das salas do Vaticano. Afinal, como um papa é escolhido? O que não chega a ser um mistério é que tal eleição, chamada de Conclave, como tudo na órbita da Política, envolve jogos sujos, conspirações e uma invariável fome de poder. Diretor do aclamado remake de Nada de Novo no Front (Melhor Filme Internacional e outros três prêmios no Oscar 2023), o alemão Edward Berger filma Conclave como um thriller com saborosas notas de whodunit, no melhor estilo Agatha Christie. Partindo dessa analogia, o Cardeal Lawrence de Ralph Fiennes (Voldemort em Harry Potter e M em 007) faz as vezes do detetive belga Hercule Poirot para se certificar de que a Igreja Católica ficará em boas mãos, uma preocupação trazida pelo recém-falecido papa e surpreendentemente compartilhada pelo atormentado clérigo.
O personagem traz um importante debate para dentro do roteiro de Peter Straughan (indicado ao Oscar por O Espião que Sabia Demais) adaptado do romance de Robert Harris, dissertando sobre as diferenças entre fé e religião. Lawrence, assim como o finado papa, tem sua fé (individualizada) em Deus inabalável, mas o mesmo não pode ser dito em relação à (pluralizada) religião, uma instituição repleta de dogmas e tradições mais próximas do Homem e, portanto, passíveis de suas imperfeições.
E nada melhor do que a Igreja Católica para servir como um laboratório do que de pior a humanidade pode demonstrar. Ainda mais quando seus processos internos são mantidos em sigilo há séculos. Estamos falando de um sistema cujo líder (João Paulo II) fez vista grossa para a explosão de casos de assédio sexual dentro da Igreja e ainda elegeu um nazista como papa (Joseph Ratzinger, o Bento XVI, foi membro da Juventude Hitlerista).
Até nesse ponto, o cardeal Lawrence é bem utilizado, pois prega a sabedoria do equilíbrio, a boa e velha arte de usar a balança moral (“seguimos ideais, mas nem sempre somos ideais”). Tanto é que ele prega ser melhor a escolha por alguém que erra e pede perdão do que alguém que se venda como puro e infalível. Ele mesmo não se considera digno do dever papal. Não por esconder algum escândalo do passado, mas por estar “em dificuldades com a oração”, a já citada preocupação com o catolicismo como instituição. Em mais uma das várias frases inspiradíssimas do roteiro, ele volta a aconselhar seus colegas votantes “a fé anda de mãos dadas com a dúvida. Com as certezas, não há necessidade de ter fé. Vamos escolher um Papa que duvide!”.
Ralph Fiennes, ator que escreveu seu nome na História do Cinema Britânico ao marcar presença em suas duas maiores franquias, é absolutamente perfeito ao ilustrar os tormentos internos de Lawrence, sem abandonar a sabedoria de alguém capaz de conduzir o processo de escolha do próximo pontífice. Investindo numa respiração constantemente pesada e em longos instantes de silêncio (evidenciando reflexão), Fiennes eleva a tensão do filme justamente porque seu personagem está privando a Igreja Católica de ter o melhor Papa possível.
O britânico, inclusive, faz parte da brincadeira de estimular o público a adivinhar quem será o escolhido, com candidatos de peso protagonizando reviravoltas atrás de reviravoltas. Como John Lithgow (o mais memorável vilão da série Dexter) e Stanley Tucci (Dança Comigo?), candidatos que tentam disfarçar a ambição com uma ilusória preocupação com o futuro. Peões num tabuleiro marcado por jogadas ora inteligentes, ora puramente sórdidas, os cardiais são envolvidos pela Política e acabam envolvendo também o espectador.
Parte desse envolvimento deve ser creditado à competência de Edward Berger, que mesmo sem o auxílio de tiroteios e explosões, é capaz de manter o ritmo sob rédeas curtas, evocando tensão com o auxílio da trilha pesada de Volker Bertelmann (Oscar por Nada de Novo no Front). Mas ele também é hábil ao criar imagens repletas de significado como o plano em que observamos um contemplativo Lawrence, no fundo do quadro, e coberto por um portão aberto. A alternância da dinâmica do poder repete estratégias do clássico 12 Homens e Uma Sentença (1957), principalmente graças à predileção por planos fechados, ressaltando a claustrofobia e o ambiente opressor.
Comprovando seu domínio do ritmo e do tom da narrativa, Berger ainda salpica Conclave com um humor homeopático, mas cortante, como na memorável sequência protagonizada por Isabella Rossellini, com sua Irmã Agnes dando um xeque-mate num determinado personagem. A veterana, aliás, é levada a adotar uma postura expressiva em virtude da escassez de diálogos, conseguindo um resultado que deve catapultá-la para a ala dos favoritos ao Oscar.
Com uma última reviravolta saindo da cartola, Conclave se encerra de forma bombástica, chocando na mesma medida que um só um bom thriller é capaz de fazer, mas isso não impede o roteiro de tecer um comentário auspicioso para o futuro da Igreja. O fato de todos nós duvidarmos dessa possibilidade, provavelmente é um ponto positivo, assim como nos ensinou o Cardeal Lawrence.
NOTA 9