top of page
Foto do escritorGuilherme Cândido

Bingo aborda cultura pop brasileira com acidez irresistível

Antes de contar a história do célebre palhaço Bingo, o roteirista Luiz Bolognesi (do ótimo As Melhores Coisas do Mundo), faz questão de dissipar qualquer dúvida acerca do teor da trama, apresentando Augusto Mendes (alter-ego de Bingo) sem o menor pudor. Logo em sua primeira cena, Mendes (Vladimir Brichta) surge em seu camarim, concentrado, vestindo um roupão vermelho de aparência barata, prestes a entrar em cena. Tudo normal, por enquanto, até que, quando finalmente é chamado para atuar, tira o roupão e revela estar completamente nu (de costas para a câmera), caminhando em direção ao set de um típico filme pornô. Com uma criança (seu filho) presente nos bastidores.


Trata-se de uma forma pouco sutil de mostrar para o público que, apesar das aparências, Bingo: O Rei das Manhãs não é uma produção infantil, e sim uma história adulta. Com ênfase nesta última palavra.


Baseado na história de Arlindo Barreto, que nos anos 80 fez sucesso interpretando o icônico palhaço Bozo (que aqui é chamado de Bingo, para não enfrentar problemas envolvendo direitos), o longa já chega com o pé na porta, dando uma aula de ambientação ao conseguir mergulhar o espectador nos amalucados anos 80, iniciando a projeção com diversas imagens de arquivo, mostrando desde comerciais até novelas da época, num breve e nostálgico prólogo.


Aliás, o trabalho de direção de arte é digno de elogios, não só na reconstrução da época, como também ao contribuir para o desenvolvimento de seus personagens e, nesse aspecto, a casa de Martha Mendes (Ana Lúcia Torre, correta), mãe do protagonista, é irrepreensível: Estrela consagrada na época da TV sem cores, Martha é uma diva, que não tem mais o destaque de antigamente (numa apropriada alfinetada que comentarei mais adiante).


Vivendo reclusa em seu apartamento de madeira dominado pelo escuro, somente suas fotos possuem fontes de iluminação, numa boa sacada que mais tarde ficará completa quando ela própria afirmar que “todo artista precisa/alimenta-se de luz”. Além disso, também não é surpreendente notar que o único aposento realmente aconchegante de seu lar é justamente aquele que abriga a televisão, o que, por sua vez, ecoa no apartamento de Augusto, já que trata-se de um espaço amplo, mas com um televisor bem ao centro, numa espécie de pedestal, mostrando que a família Mendes realmente tem uma relação forte com a TV.


Falando em TV, a produção também mostra coragem ao dar contundentes alfinetadas na Rede Globo (que aqui é chamada de TV Mundial) não só através da trajetória de Mendes/Barreto (rejeitado pela emissora carioca e posteriormente acolhido pelo SBT), como também ao tecer uma digníssima crítica ao atual tratamento das estrelas do passado. Afinal de contas, o grande Chico Anysio não foi o único a reclamar da falta de oportunidades e de seu esquecimento. Hoje em dia, verdade seja dita, muitos astros de outrora já estão tendo mais oportunidades, mas ainda há um número considerável de atores experientes com dificuldades. E temos uma sensação curiosa ao vermos na tela aquilo que já percebemos há décadas, o que fica patente quando um executivo da Mundial (interpretado por ninguém menos que Pedro Bial) diz “Não há vida fora da Mundial!”


Mostrando a mesma acidez ao construir o humor da narrativa, o roteiro não se furta de desafiar o politicamente correto, provocando risos ao mostrar Mendes (já caracterizado como Bingo/Bozo) debochando de seu produtor norte-americano e também em seu relacionamento com a diretora interpretada por Leandra Leal (eficiente como sempre) que, evangélica, protagoniza ao lado de Mendes um dos momentos mais polêmicos do filme: uma cena de sexo em espaço público com Leal gritando “Jesus” durante o orgasmo. Mas não se engane, essa é apenas uma das várias passagens que provavelmente gerarão discussões.


O que não deve gerar controvérsia é a boa atuação de Vladimir Brichta: acostumado a viver personagens carismáticos na TV, Brichta não tem dificuldades em transformar Augusto numa figura simpática, construindo suas cenas sempre com irreverência e algum charme. O que surpreende, todavia, é sua segurança nas cenas de maior carga dramática, principalmente naquelas em que Mendes tem de lidar com a decepção de seu filho.


Mas mesmo que o filme bata de frente com o politicamente correto e mostre o lado sombrio da TV (note a presença das drogas), é preciso reconhecer sua covardia no que diz respeito às subtramas envolvendo o protagonista e seu filho, já que os problemas que surgem, aparentemente não geram consequências ou simplesmente são ignorados, o que fica evidente quando Augusto, logo após cometer um grave erro, se vê diante da ameaça de perder a guarda do menino, ou quando vê outro ator interpretando Bingo (numa cena carregada de simbolismos, ao colocar Brichta caminhando por um corredor enquanto as luzes vão sendo apagadas).


E já que mencionei os simbolismos, é impossível não aplaudir a escalação do finado Domingos Montagner (que começou sua carreira como palhaço) como o mentor de Augusto Mendes, num de seus últimos trabalhos artísticos. Felizmente, porém, mesmo que a produção passe a soar óbvia ao repetir exaustivamente suas alegorias, seu grande destaque (ao lado de Vladimir Brichta) é mesmo Daniel Rezende, o experiente montador de obras como Cidade de Deus e Tropa de Elite que aqui estreia como diretor e comprova sua inteligência.


Abusando dos raccords (e meu favorito é aquele que intercala o momento em que Augusto coloca a cabeça no colo da mãe e outro que em que, ele mesmo, cede o colo para seu filho), Rezende mostra firmeza e bom olhar para os enquadramentos, dividindo os méritos, neste caso, com o diretor de fotografia Lula Carvalho (também de Tropa de Elite), que faz bom uso da luz subjetiva. Em contrapartida, a trilha de Beto Villares (Xingu) salta entre o pulsante (através de acordes de guitarra) e o meloso.


Aliando um delicioso humor sacana a uma história que é interessante justamente por ser centralizada numa figura complexa, Bingo: O Rei das Manhãs é mais uma produção bem sucedida ao mostrar que sempre há um ser humano por trás da máscara, seja ela feita de pano, plástico ou maquiagem e com nariz de palhaço.


NOTA 7,5



Comments


bottom of page
google.com, pub-9093057257140216, DIRECT, f08c47fec0942fa0