'Beetlejuice 2' comprova que os fantasmas ainda nos divertem
Beetlejuice ou Os Fantasmas Se Divertem, como foi batizado por aqui o filme de 1988, é lembrado como um caso de sucesso para absolutamente todos os integrantes de sua produção (a frente e por trás das câmeras). Desde a performance inspiradíssima de Michael Keaton, cuja versatilidade inquestionavelmente comprovada, passando pela jovem Winona Ryder (atingido o estrelato apenas em sua terceira incursão no Cinema) e chegando ao compositor Danny Elfman (então integrante da banda Oingo Boingo) até culminar no diretor Tim Burton. O cineasta californiano vinha de uma experiência bem-sucedida com As Grandes Aventuras de Pee-Wee (1985), marcando sua transição dos curtas (foram doze ao todo) para os longas-metragens. A aproximação com o Cinema infantil, logicamente, tem a ver com seu primeiro emprego, como assistente de animador nos estúdios de Walt Disney (que já tinha lhe concedido uma bolsa de estudos para frequentar o prestigiado Insituto das Artes da Califórnia, vale frisar).
Os Fantasmas Se Divertem, porém, serviu muito mais para apresentar o estilo de Burton do que qualquer outra coisa. O orçamento baixo até para os padrões da época (somente 15 milhões de dólares), assegurou o sucesso comercial, apesar do retorno apenas razoável das bilheterias. Isso não impediu a comédia sombria de vencer o teste do tempo e alcançar status cult, abrindo portas para a visão peculiar de Tim Burton. Influenciado pelo Expressionismo Alemão (vertente cinematográfica cujas obras se caracterizam pelos temas sombrios e a estilização visual, com personagens deformados, planos inclinados, portas tortas e etc.), o realizador apresentou ao mundo uma imaginação que mesclava traços góticos com o humor negro, trazendo harmonia (como poucos) à união entre o Horror e a Comédia. Trinta e seis anos depois, Burton e Keaton finalmente cedem aos apelos dos fãs e nos trazem Os Fantasmas Ainda Se Divertem (Beetlejuice Beetlejuice, no original).
Mas o contexto agora é outro. Embora Michael Keaton conte com mais prestígio do que nunca, Tim Burton vem de um longo período em baixa. Sua visão já não atrai multidões às salas de projeção e seu último trabalho como diretor foi na versão live-action de Dumbo (2019), tido pelo próprio como “uma experiência traumática”. Criativamente castrado, o artista chegou a considerar a aposentadoria, que quase veio após Wandinha, série que desenvolveu e dirigiu para a Netflix. Com carta branca para dar vazão a tudo aquilo que era tolhido pelos demais estúdios, a carreira de Burton apresentava a famigerada melhora antes da morte, até que surge Os Fantasmas Ainda Se Divertem.
Várias idas e vindas depois (com direito a dois cancelamentos), a produção que chegou aos cinemas no último final de semana é escrita por Alfred Gough e Miles Millar, (colaboradores de Tim Burton em Wandinha) baseada numa ideia original de Seth Grahame-Smith (de Sombras da Noite, outra realização de Burton) e respeita as quase quatro décadas que se passaram desde os eventos do primeiro filme, cujos protagonistas Alec Baldwin e Geena Davis, não retornam. Já a família Deetz segue representada por Lydia e Delia, papéis reprisados respectivamente por Winona Ryder (a Joyce de Stranger Things) e Catherine O’Hara (vencedora do Emmy pela comédia Schitt’s Creek).
Lydia, antes uma adolescente gótica, agora apresenta um daqueles programas sensacionalistas sobre casas mal-assombradas, mantendo um relacionamento com o aparvalhado produtor Rory (Justin Theroux, idêntico ao cantor brasileiro Elymar Santos) e lutando para manter contato com a filha Astrid (Jenna Ortega, a Wandinha). Enquanto isso, Delia segue dando vazão à sua questionável veia artística até ser surpreendida pela notícia da morte do marido Charles (Jeffrey Jones, ausente por motivos a serem esclarecidos mais para frente), tragédia que servirá para reunir toda a família na antiga casa onde moravam. Jones foi preso em 2002 por posse de pornografia infantil, sendo condenado a cinco anos de liberdade condicional após se declarar culpado. A produção, porém, dribla a questão com imensa desenvoltura (a solução encontrada para manter seu personagem é impagável).
É interessante notar, também, como Ryder simplesmente não parece envelhecer, mas se por fora Lydia praticamente permanece a mesma, o mesmo não acontece por dentro, já que ela ainda lida com os traumas adquiridos quando ficou frente a frente com Beetlejuice pela última vez. Novamente vivido por Michael Keaton, o putrefato “bio-exorcista” dessa vez é uma espécie de chefe de um escritório povoado por homens de cabeça encolhida (o primeiro de muitos acenos ao filme original), dando prosseguimento à visão burocrática que o filme original possui a respeito do pós vida. No meio disso tudo, o elenco de apoio ainda conta com Willem Dafoe (que dispensa apresentações) e a italiana Monica Bellucci (ícone de Malena e Mandando Bala, e também affair do diretor).
Bellucci, infelizmente, é sabotada por um roteiro que não lida bem com o excesso de personagens e acaba saindo de cena sem mais nem menos, jamais fazendo jus à expectativa criada em sua espetacular apresentação (uma sequência criativa ao som de Bee Gees). Afinal, ela interpreta a ex-esposa de Beetlejuice, de quem planeja se vingar usando poderes capazes de sugar a alma de suas vítimas (matando de vez os habitantes do além). Delores, assim como outro personagem importante (que não revelarei para evitar spoiler), são eliminados sem dificuldade, expondo a natureza esquemática com que foram concebidos pelos roteiristas.
Além disso, o apego do script à nostalgia, pode até, à primeira vista, inserir o filme no cenário saudosista da Hollywood contemporânea, mas também é trabalhada com pouco refino. Sim, é impossível não sorrir durante o reencontro com personagens queridos, especialmente Beetlejuice e suas características marcantes, mas o aproveitamento de objetos cênicos e até canções imortalizadas por Os Fantasmas Se Divertem justificam-se como um estímulo sentimental e nada a mais, pois não desempenham funções narrativas (a escultura assustadora de Delia poderia servir para mostrar sua influência na educação de Astrid, mas se revela redundante quando a própria trata de verbalizar isso). Enquanto isso, o gênio Willem Dafoe, embora divertido, interpreta um personagem cuja conexão com a história principal é frágil (sua ausência não prejudicaria a narrativa).
Essas imperfeições, no entanto, são compensadas por lapsos de engenhosidade que nos fazem lembrar dos melhores momentos de Tim Burton como realizador (e como é bom vê-lo mais uma vez inspirado, livre de amarras criativas). O cineasta demonstra e imprime uma energia como há muito tempo A sacada envolvendo o Trem das Almas (referenciando um popular programa musical da década de 70), as homenagens ao Giallo (vertente do Cinema Italiano com enorme influência no Terror mundial) e a irreverência como ilustra a vida após a morte, tornam o saldo positivo. O tédio exalado pelos ambientes azuis é complementado pela inventividade com que os mortos são concebidos, com visuais que evidenciam o magnífico trabalho do departamento de maquiagem ao recriarem os últimos momentos de homens e mulheres em vida (meu favorito é o personagem que exibe várias piranhas vivas mordiscando sua carne).
No entanto, eu não esperava nutrir tanto carinho por um personagem tão pouco explorado (ainda que protagonista de uma das piadas mais memoráveis) da história original. Bob não é apenas mais um dos homens de cabeça encolhida que aparecem no filme, mas um elemento que rouba a cena, especialmente quando contracena com Michael Keaton. E verdade seja dita, além de ser a alma do filme, Keaton atinge estado de graça na pele do ardiloso Beetlejuice, que só existe e encanta graças às habilidades do mais controvertido ex-Batman do Cinema. Ele ainda compreende o personagem como ninguém, exibindo um timing cômico ainda mais apurado e divertindo-se a valer enquanto destila o humor grotesco típico das obras de Tim Burton, com quem faz ótima dupla.
Seguindo a mesma estrutura do filme de 1988, incluindo a tentativa de replicar seu inesquecível clímax musical, que aqui surge mais elaborado e menos impactante (ainda que eficaz), Os Fantasmas Ainda Se Divertem é uma daquelas continuações tardias que sabem mascarar suas motivações financeiras, trocando nostalgia por dinheiro num feito equiparável apenas, mas em escala consideravelmente menor, ao fenômeno Top Gun: Maverick.
Ao invés de M. Night Shyamalan, que mês passado frustrou novamente aqueles que esperam sua redenção, é Tim Burton quem finalmente retorna à boa forma. E que seja muito bem-vindo de volta.
NOTA 7,5