"Batem à Porta" é o melhor filme de Shyamalan em 20 anos
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O cineasta indiano M. Night Shyamalan é um daqueles profissionais que já experimentaram tanto o Céu quanto o Inferno em Hollywood. Depois de despontar em 1999 com O Sexto Sentido, filme que lhe proporcionou uma dupla indicação ao Oscar (como diretor e roteirista), Shyamalan caminhou diligentemente rumo ao fundo do poço à medida que se distanciava cada vez mais do brilhantismo que lhe rendeu o precoce rótulo de “Novo Hitchcock”. Após o ótimo Corpo Fechado, o bom Sinais e o razoável A Vila, o indiano mergulhou de cabeça numa fase terrível iniciada pela bomba A Dama na Água. Engolido pelas próprias pretensões e pela maldição de ter habituado seu público a finais surpreendentes, ele emendou três atrocidades cinematográficas consecutivas (Fim dos Tempos, O Último Mestre do Ar e Depois da Terra), implodindo uma carreira que foi de autor promissor a mão de obra contratada por estúdios.
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Entretanto, dois anos depois de acumular sua nona indicação ao Framboesa de Ouro, tradicional ‘premiação’ que contempla o pior do Cinema e que o considerou como pior diretor do ano em duas oportunidades (e pior roteirista em outra), eis que Shyamalan resolve tentar recuperar sua credibilidade, lançando o terror de baixo orçamento A Visita. Em meu texto sobre o filme, encarado na época como um retorno do cineasta à boa forma, fiz questão de reforçar que o fato de a produção ter sido lançada logo após uma das piores sequências de filmes na carreira de um realizador contemporâneo, poderia levar o espectador ao erro de classificá-la como algo melhor do que realmente era. Bastaram quatro anos (e o também razoável Fragmentado) para que Shyamalan confirmasse minha suspeita, fazendo o decepcionante Vidro. Todavia, foi com o péssimo Tempo que o diretor confirmou seu retorno... ao fundo do poço, beirando o amadorismo em um de seus piores trabalhos como roteirista. Com este Batem à Porta, porém, Shyamalan tenta outro recomeço, mas dessa vez demonstra uma gana poucas vezes vista em suas narrativas anteriores.
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Após uma boa sequência de créditos iniciais, aproveitando para antecipar características dos personagens e suas obsessões (o cardápio rasurado, os desenhos sombrios no meio das provas corrigidas), Batem à Porta tem início com a jovem Wen (vivida pela expressiva Kristen Cui) no meio de uma mata capturando gafanhotos enquanto vemos uma cabana de madeira ao fundo. “Eu não vou machucar vocês, só quero conhecê-los melhor!” diz a menina observando um pote cheio dos tais insetos, como se os roteiristas estivessem se divertindo ao dar sinais do que viria a acontecer com a própria Wen. Em seguida, M. Night Shyamalan dá sua primeira cartada, ao construir uma cena relativamente simples, mas cujos resultados dramáticos são frutos de pura habilidade por parte do diretor.
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Na sequência em questão, o diretor aproveita o físico imponente e tatuado de Dave Bautista (o Drax de Guardiões da Galáxia) para brincar com as expectativas do público que, ao contrário de se deparar com o tipo troglodita e vilanesco que o ex-lutador normalmente interpreta, é surpreendido com o arquétipo do gigante gentil, já que Leonard, seu personagem, é um professor de educação física simpático e de fala mansa, ganhando rapidamente a atenção de Wen.
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Começando a cena com um plano aberto, revelando Leonard desfocado ao fundo, Shyamalan é hábil ao transmitir a aproximação crescente entre os personagens através de ângulos cada vez mais fechados. E quando Wen finalmente começa a desconfiar de Leonard, note como o diretor inclina o plano, investindo no ângulo holandês (normalmente associado à ideia de confusão, desorientação) no exato momento em que a menina pergunta “o que há de errado?”, com o rosto de Bautista enchendo a tela em meio ao horizonte torto.
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Shyamalan também mostra suas credenciais na forma elegante com que conduz os momentos mais enérgicos da história: mesmo que opte por manter a violência off screen, o cineasta volta a demonstrar talento ao movimentar sua câmera, lembrando o início promissor de sua carreira. Sua direção também é estilosa em alguns momentos, como aquele em que um personagem é golpeado furiosamente por outro enquanto a câmera se posiciona atrás da vítima, deslocando-se a cada soco; ou ao manter sua lente paralela ao machado de um dos vilões, enquanto ele quebra algo.
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Mas se a direção merece apenas elogios, o roteiro, escrito pelo próprio realizador em parceria com os novatos Steve Desmond e Michael Sherman, demanda ressalvas, principalmente por depender demais de flashbacks para tentar desenvolver seus personagens. Aliás, a montagem acaba sendo o ponto fraco de Batem à Porta, pois o ritmo é quebrado cada vez que a produção interrompe sua história principal, saindo da cabana para voltar no tempo e revelar um pouco mais do relacionamento entre Eric (Jonathan Groff, de Matrix Resurrections) e Andrew (Ben Aldridge, da série Fleabag) que mesmo diante dos esforços do trio de roteiristas, jamais chegam a forjar uma ligação com o público, diluindo o impacto emocional da obra.
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Situada no meio de uma floresta aparentemente isolada do mundo (o que explica a ausência de sinal telefônico e de internet), a cabana presente no título original é produto de um design de produção competente, que complementa o marrom da madeira com tons azuis e dourados, criando uma harmonia visual que além de ecoar elementos da história (as personalidades complementares de Andrew e Eric), reflete a própria fotografia do filme, cuidadosa ao trabalhar o uso da luz (fundamental na trama) em momentos específicos, como aquele em que a enfermeira interpretada por Nikki Amuka-Bird (de O Alfaiate) é banhada por um facho dourado enquanto explica suas intenções a Eric. Os figurinos de Caroline Duncan (Case Comigo) também funcionam ao refletirem a personalidade do casal protagonista: enquanto Eric, mais formal e retraído veste camisas de flanela, calça jeans e sapatos, os trajes informais de Andrew (camisa básica e bermuda) revelam uma personalidade despojada e de modos naturais.
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Além disso, por mais que o filme seja tecnicamente elogiável, é preciso reconhecer sua ineficiência como terror, gênero que escolheu abraçar, pois mesmo que a trilha sonora mais clássica da compositora islandesa Herdís Stefánsdóttir (O Sol Também é uma Estrela), com seus acordes graves, contribua (e muito) para a criação de uma atmosfera sinistra, isso não basta e Batem à Porta, uma produção que trabalha desde o início com a manipulação das expectativas do público, jamais atinge seus objetivos como filme de gênero. E quando tenta, carece de inspiração, recorrendo a clichês como numa sequência dentro da floresta, construída de forma preguiçosa e com resultados previsíveis (quando alguém se esconde atrás de uma árvore, fica claro que dará de cara com o inimigo assim que resolver sair) ou a artifícios tão ridículos como todo o suspense criado em cima de uma suposta fuga por uma janela minúscula.
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Pois o grande foco narrativo não parece ser o terror e, sim, a intrincada premissa oferecida pelo quarteto de vilões. Ciente de ter em mãos um mistério frágil e que não resistiria a eventuais questionamentos (quem os escolheu? Que tipo de poder exercem?), Shyamalan opta por utilizar a suspeita como distração, visto que Leonard e seus associados defendem tão apaixonadamente suas absurdas motivações (que não revelarei, obviamente), que fica difícil para o espectador não conceder o benefício da dúvida. Verdade seja dita, o roteiro é certeiro ao conceber um grupo que compartilha a política do diálogo em detrimento da violência. Inclusive, esses modos atenciosos (eles limpam o que quebram, fazem curativo em quem machucam e arrumam o que bagunçam) são fundamentais para que fiquemos tão divididos quanto Andrew e Eric.
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Enquanto Andrew, mais racional, traz justificativas plausíveis, Eric mostra-se mais vulnerável em virtude de uma concussão. Estaria ele acreditando de fato na narrativa dos vilões ou seu raciocínio debilitado está lhe pregando peças? E é nessa dinâmica que Batem à Porta investe em seus quase 100 minutos de projeção, jogando com a percepção do público enquanto os protagonistas ora parecem convictos, ora nem tanto (Leonard só precisa que um deles duvide, afinal). Enquanto isso, Shyamalan, Desmond e Sherman desfrutam da possibilidade de os vilões serem apenas um grupo de lunáticos afeitos a teorias conspiratórias, mas só até a tese de um possível crime de ódio ganhar força...
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Abusando dos noticiários para trazerem credibilidade a determinadas situações, Batem à Porta até tenta esboçar alguma profundidade, sugerindo subtextos (bíblicos em sua maioria) diretamente ligados à natureza, com o clima moldando o tom do filme, seja através do céu (ensolarado/nublado) ou por meio de tempestades (incluindo raios), mas o que poderia ficar para ser interpretado pelo público acaba sendo escancarado por Eric durante um diálogo extremamente artificial no terceiro ato, dinamitando a intenção de Shyamalan de bombar entre “analistas do YouTube”. Mesmo assim, ainda acredito que muitos vídeos ‘explicando’ o final ou ‘desvendando os segredos’ do roteiro serão publicados num curto espaço de tempo.
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Contando com a já tradicional e hitchcockiana participação especial do diretor/roteirista (como o vendedor de um programa de TV), a verdade é que ele enterrou tão fundo sua carreira, acostumando seu público à mediocridade, que quando finalmente aparece com um filme de verdade, este tenderá a parecer fantástico em comparação com as abominações que comandou recentemente.
De qualquer forma, antes de sugerir aguardarmos o próximo projeto de M. Night Shyamalan para ter certeza de que não se trata de mais um acerto isolado, ao menos podemos cravar que Batem à Porta é seu melhor filme desde Sinais, lançado há 20 anos.
NOTA 6,5