"Assunto de Família" | União e empatia são tão fortes quanto laços de sangue
De longe, quase toda família é normal, mas basta um olhar mais atento para percebermos peculiaridades que podem, ou não, desafiar essa noção de normalidade. Mas, afinal, o que define uma família?
Em Assunto de Família, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, somos apresentados aos Shibata: há a avó, o patriarca, a matriarca, a filha mais velha e o filho caçula. Aparentemente ligados pelo laço familiar, os cinco constituem um lar de muito amor e calor humano, agindo com respeito e solidariedade. Mas aos poucos descobrimos que, na verdade, essa ‘família’ não é de sangue, pois foi construída com o tempo, através da necessidade de sobrevivência, que cedeu lugar à cumplicidade. Família ou quadrilha?
Pois uma ex-prostituta ao se unir com um experiente larápio, decide acolher uma criança de rua e todos passam a viver sob as asas de uma anciã, maior fonte de renda deste grupo disfuncional. Ao adotarem uma nova criança, vítima da negligência de seus pais que se agridem frequentemente, os Shibata comprovam que não há limites para a solidariedade.
Ironicamente, estamos falando de pessoas que vivem de pequenos furtos em lojas e mercearias (daí o título original, Shoplifters), mas aqui esse é um tipo de julgamento moral que não cabe. No lar dos Shibata, aos olhos do cineasta Hirokazu Kore-eda (Pais e Filhos), o importante é o sentimento que une aquele núcleo familiar, gerando uma atmosfera palpável de aconchego graças ao ótimo trabalho de direção de arte, que transforma o lar dos Shibata numa bagunça colossal proveniente do acúmulo de objetos e alimentos roubados.
Essa desorganização reflete o caráter disfuncional dessa família. Sim, pois para Kore-eda, uma família não necessariamente constitui-se de laços de sangue. Por isso, acompanhamos o cotidiano dos Shibata sem qualquer tipo de demonização de seus delitos, aqui tratados como pecadilhos justificados pela pobreza de uma família rica em afeto. Nos momentos mais sensíveis de Assunto de Família, percebemos claramente as características que se confundem com as de um núcleo familiar tradicional.
O ‘pai’ dá conselhos ao filho, que retribui com confidências. A mais velha, refletindo a cultura japonesa, contribui não apenas financeiramente, como também através de sua sabedoria, obtendo o respeito que nós brasileiros ainda não somos capazes de oferecer aos nossos idosos. E é assim, construindo singelos laços afetivos, que Kore-eda subverte os tabus da sociedade, partindo da inteligente escolha de escancarar a natureza dos Shibata desde o início.
Essa honestidade, em contrapartida, é quebrada no terceiro ato, quando aquele delicioso drama familiar cede espaço para um corpo estranho, representado por uma investigação policial que aproxima a narrativa do melodrama. Os momentos finais de Assunto de Família acabam abandonando toda aquela genuína atmosfera afetuosa em prol de um desfecho puramente dramatúrgico, que nesse contexto reflete artificialidade.
Mesmo cometendo o pecado de, no ato final, atirar o espectador para fora daquele universo tão belamente estabelecido pelo roteiro, Assunto de Família é forte o bastante para não apagar seus êxitos iniciais, que continuarão reverberando no coração de cada cinéfilo após os créditos começarem a rolar.
NOTA 8
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